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A incorporação: relação pedagógica e produção de corpos

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 64-68)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

1. A singularidade do corpo dançante: lugar de criação da dança

1.2 A incorporação: relação pedagógica e produção de corpos

Antes de ver quais as características singulares do corpo-dançante contemporâneo engajadas no jogo estético, faz-se necessário, antes, nos deter sobre um momento crucial da dança contemporânea: a incorporação. Assim, analisaremos essa operação que produz a singularização do corpo- dançante.

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Tradução nossa: “partir a procura desta corporeidade, interrogando-a, aceitando todos os fenômenos para evitar reduzi-la a noção de corpo, fechado e adquirido”.

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Tradução nossa: “o dançarino não saberia mover com “o” corpo, instrumento ou envelope, encarregado de “exprimir” uma emoção, ou uma “interioridade”, num espaço concebido como um espaço vazio, a ser investido”.

1.2.1. Incorporação da dança contemporânea: a lógica da singularidade

A incorporação da dança contemporânea é regida, conforme os estudos de Sylvia Faure (2000), não mais segundo uma “lógica da disciplina”, mas uma “lógica da singularidade”. Essa lógica da singularidade trata da incorporação da dança, do trabalho técnico, como também do “savoir- danser”, que compreende e produz a singularidade do corpo-dançante.

Alguns pontos consideramos importantes expor aqui de modo a nos ajudar a compreender como essas lógicas se diferenciam. Um primeiro diz respeito à formação técnica na dança contemporânea, que está a serviço do bailarino, o qual, em sua aprendizagem, é já considerado como um criador. Segundo Laban, é necessário “considérer chaque danseur comme un artiste, chaque danse comme une création artistique, et l’art de la danse lui-même

comme une forme d’expression ouverte et libre59”. (1991, p. 44). Não há mais,

na dança contemporânea, o princípio do “savoir-danser” à superar para poder dançar. Um outro ponto está centrado na aprendizagem, cujo trabalho não é mais submetido ao risco da padronização. Um signo dessa transformação: os bailarinos contemporâneos não utilizam mais o espelho para visualizar seus movimentos. Eles são “vistos” a partir das percepções internas, próprias a cada estrutura corporal. Laurence Louppe ao analisar essa diferença de prática e a incidência do espelho sobre os corpos, diz:

La danse contemporaine a banni le miroir du studio, pour ne pas travailler sur le vieux fond spéculaire, par où notre corps reproduirait à l’infini l’apparition fantasmée du même. Mais aussi pour que le schéma corporel échappe à la puissance meurtrière et directe des repères scopiques60. (2000, p. 63-64).

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Tradução nossa: “considerar cada dançarino como um artista, cada dança como uma criação artística, e a arte da dança, ela mesma, como uma forma de expressão aberta e livre”

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Tradução nossa: “A dança contemporânea baniu o espelho do estúdio para não trabalhar sobre o velho fundo reflexivo, por onde o nosso corpo reproduziria ao infinito o aparecimento fantasmático do mesmo. Mas também de modo que o esquema corporal escape à potência mortífera e direta das referências escópicas”.

Enfim, um último ponto nos mostra que a dança contemporânea busca não sujeitar o corpo e seus movimentos a modelos e padrões. Em todo trabalho de dança contemporânea é a especificidade corporal que inicia o movimento, mesmo em um trabalho mais formal. A dança, diz François Raffinot, “suppose que le texte ne soit pas préexistant et se fasse à la mesure de l’interprète61”. (2002, p. 18). Como na performance – onde o intérprete é chamado a “fazer”, a “estar presente”, ou seja, “ao vivo”, “art vivant” – podemos dizer que a dança, e mais precisamente a dança contemporânea, é cravada no corpo que a faz “viva”. A esse respeito, observa-se que seu modo de incorporação usa práticas de linguagens orientadas. Por exemplo, nos cursos de dança contemporânea escutamos mais “em abertura” do que “em primeira” para jogar com as qualidades de estados de corpos que se quer provocar em cada corpo-dançante62. Com efeito, não se faz mais referência às posições clássicas codificadas e, portanto, normatizadas. A referência, nessa outra abordagem da dança, permite a cada um executar os movimentos escutando seu corpo, indo até onde ele pode – um trabalho cujo limite centra-se em suas próprias possibilidades. A explicação que faz Odile Duboc de seu trabalho pedagógico resume bem essa lógica da singularidade; diz ela:

Je ne leur montre jamais une position à reproduire. Je ne travaille pas sur la forme, mais sur un imaginaire de l’espace et un développement rythmiques. Si j’ai envie que leur corps soit incliné en diagonal, avec le bras allongé en avant, je leur dirait de pousser le haut de leur corps à deux kilomètres devant eux, de faire pression sur le sol avec leur pieds. Je leur parlerai d’un volume d’air sur lequel repose le corps. Ce que je recherche,

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Tradução nossa: “supõe que o texto não seja preexistente e se faça à medida do interprete”.

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“Em primeira” designa a posição dos pés (a primeira das cinco, na codificação do balé clássico), cuja disposição tem como estrutura calcanhares juntos, as pontas dos pés em abertura máxima das pernas a partir do quadril. A expressão “em abertura” tende ao mesmo resultado, com a diferença que a atenção é explicitamente conduzida ao quadril, assim como sobre o estado de alongamento do corpo segundo seu eixo. Ou seja, o trabalho se faz de acordo com a morfologia de cada um.

c’est la perfection d’une sensation ou d’une matière63. (DUBOC, O., Apud. : CRÉMÉZI, S., 1997, p. 58).

Esta lógica pedagógica se inscreve, então, numa pesquisa ligada à “perfeição” do sensível. Dito de outra maneira, ela não pode ser elaborada senão a partir da singularidade do corpo-dançante.

1.2.2. Corpo e corporeidade

A incorporação, perpassada pelo processo de relação pedagógica, é um momento crucial na maneira como se vai considerar e construir o corpo- dançante. É isso que analisa Michel Bernard em seu texto sobre o qual traz um conceito importante: a corporeidade. A relação pedagógica tem enormemente se transformado na dança contemporânea; e isso teve como primeira conseqüência a mudança no conceito de corpo. Diz Bernard:

(...) la visée éducative est lourde de la sédimentation des

modèles conceptuels qui régissent toute conduite

d’apprentissage. Le modèle du “corps” en est sans doute le principal, ou l’un des principaux, puisqu’il a été considéré traditionnellement comme le support, le véhicule et le terme de la relation avec autrui64. (2001, p. 23-24).

Segundo Michel Bernard, a conceituação da dança contemporânea engendra o da corporeidade. O conceito de “corporeidade” pertence a uma teoria do corpo-dançante das mais potentes que, se deifernciando de visões

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Tradução nossa: “Eu não lhes mostro jamais uma posição a reproduzir. Não trabalho sobre a forma, mas sobre um imaginário do espaço e um desenvolvimento rítmico. Se tenho vontade que seus corpos estejam inclinados em diagonal, com o braço alongado para frente, eu direi a eles para empurrar a parte superior de seus corpos à dois quilômetros na frente deles e fazer pressão sobre o solo com seus pés. Eu falaria a eles de um volume de ar sobre o qual descansa o corpo. Isso que pesquiso é a perfeição de uma sensação ou uma matéria”.

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Tradução nossa: “(...) a finalidade educativa é pesada pela sedimentação dos modelos conceituais que regem toda conduta de aprendizagem. O modelo do “corpo” é sem dúvida o principal, ou um do principais, dado que foi considerado tradicionalmente como o suporte, o veículo e o fim da relação com outro”.

filosóficas e científicas do corpo, faz emergir com pertinência as questões da dança contemporânea. Michel Bernard a define como:

(…) un réseau plastique instable, à la fois sensoriel, moteur, pulsionnel, imaginaire et symbolique qui résulte d’une interférence d’une double histoire: d’une part, celle collective de la culture à laquelle nous appartenons et qui a forgé nos premiers habitus de nutrition, d’hygiène, de marche, de contacts, etc., et celle, essentiellement individuelle et contingente, de notre histoire libidinale qui a modelé la singularité de nos fantasmes et de nos désirs65. (1990, p. 68).

Em outros termos, a corporeidade é uma ligação afetiva em encontro incessante com seu meio. Esta é, nesse sentido, de natureza “rizomática”: uma ligação tomada numa teia de forças que resulta, segundo a concepção de Michel Bernard, de um “jeu chiasmatique instable de forces intensives ou

de vecteurs hétérogènes66”. (2001, p. 21). Dessa ligação de forças, emana a

especificidade expressiva do corpo-dançante, a matéria corporal – que consideramos como a singularidade corporal.

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 64-68)