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4.2 O drama da família Dantica narrado em Brother, I’m Dying

4.2.2 Entre memórias e histórias

4.2.2.2 A decisão de emigrar

Danticat recorre pontualmente à história do Haiti ao narrar acontecimentos das vidas de seu pai e tio, dessa forma, ocorre uma interação entre memória e história, que Pierre Nora define como “a necessidade de memória é uma necessidade da história.” (NORA, 1993, p. 14). É como se sua memória fosse ativada mais eficazmente através da conexão com fatos históricos. Por exemplo, quando descreve a capital de Porto Príncipe, Bel Air, cidade que seus tios foram morar quando, em 1947, decidiram viver juntos, a autora recorda que a casa de seu tio foi construída na montanha onde aconteceu a batalha entre mulatos abolicionistas e franceses colonizadores em 1607, e ainda, faz alusão ao ano de 1804 quando, com a vitória dos negros sobre os franceses, o Haiti se tornou República. A capital também foi palco da revolta dos guerrilheiros Cacos contra as forças armadas dos Estados Unidos, na ocasião da ocupação da Marinha Americana no Haiti, entre os anos de 1915 e 1939 (p. 3/17, BROTHER, I’M DYING). Pouco depois de se mudar para Bel Air, seu tio Joseph tornou-se um ativista político, filiando-se ao Movimento dos Trabalhadores Camponeses (em francês, Mouvement Ouvriers-Paysans) fundado por Daniel Fignolé, político engajado com a causa a favor dos mais necessitados:

“Temos lutado desde que nos tornamos uma nação independente em 1804,” meu tio lembrou dizendo. “Certas pessoas pensam que para o país progredir, somente a minoria rica precisa ter sucesso. Este país não pode avançar sem a maioria. Sem nós.”67 (p. 5/17, BROTHER, I’M DYING, aspas da autora)

Em suas falas, nas reuniões políticas que fazia em sua casa, Joseph Dantica evocava seu pai, Granpè Nozial, que participou da resistência contra a invasão das tropas americanas, causa de haver estado distante de sua família a maior parte do tempo, deixando a Dantica a incumbência de cuidar da mãe e dos irmãos, mesmo sendo ele apenas uma criança. Toda vez que seu pai partia para uma batalha, Dantica temia que não retornasse mais, visto que milhares de guerrilheiros haitianos eram mortos pelos americanos e seus corpos amontoados em estradas e locais públicos, de modo a desencorajar os outros guerrilheiros (p. 5/17). Durante o período que o tio de Danticat fazia sua campanha para Fignolé, quem ocupava o posto de presidente do Haiti era o general Paul Magloire, mais conhecido como “calça de ferro”, por conta de seu discurso de que para combater os encrenqueiros tinha que vestir calças de ferro. Em 1956, Magloire foi deposto do cargo, e em 1957, foi a vez de Fignolé, o que foi motivo de comemoração para a família Dantica. Contudo, Fignolé permaneceu no governo do Haiti somente por dezenove dias, sendo forçado a exilar-se, foi nesta ocasião que François Duvalier assumiu a presidência do país (p. 6/17). Tal acontecimento fez com que Joseph Dantica desistisse da política e ingressasse na Congregação Batista e, posteriormente, se tornasse pastor e construísse sua própria igreja e escola, com a ajuda de missionários americanos - apesar de ainda ser muito cauteloso com estes, devido a suas recordações do período da ocupação americana.

A década de 1960 no Haiti foi um período de ditadura linha dura instaurada pelo então presidente François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, que controlava o país na base da força e desviava grande parte dos recursos afundando-o ainda mais, levando em consideração de que a muito tempo não se encontrava em boas condições econômicas. Foi neste cenário ditatorial, e de conflitos econômicos e políticos, que os pais de Danticat se conheceram, em 1962, e casaram-se, em 1965. Após o nascimento de Danticat, em 1969, e posteriormente, de seu irmão Bob, seus

67 No original: “We have struggled since we became an independent nation in 1804”, my uncle recalled saying. “Certain people think that in order for the country to progress, only the rich minority need succeed. This country cannot move forward without the majority. Without us.”

pais passaram por dificuldades financeiras, o que forçou Mira, além de trabalhar o dia inteiro em uma loja de calçados, a passar parte das noites costurando uniformes e bandeiras com a ajuda de sua esposa, como forma de obter renda extra. A iniciativa de migrar para outro país surgiu da necessidade de melhorar a situação financeira e de oferecer melhor qualidade de vida para sua família, decisão muito comum entre indivíduos que vivem em similar realidade. A decisão de emigrar pode ser impulsionada por diversos fatores, mas, a priori, os deslocamentos derivam de problemas no setor social, onde as pessoas, em um contexto de dificuldades políticas e econômicas, partem à procura de alternativas. Para o pai de Danticat, a oportunidade surgiu quando o proprietário da loja em que trabalhava falava sobre seu filho estar indo passar férias em Nova Iorque, foi quando quis saber se seria muito difícil conseguir o visto. O patrão ofereceu-se para ajudá-lo, escrevendo uma carta de recomendação, e devido ao fato de que deixaria sua família no Haiti, não foi difícil conseguir o visto de turista para um mês, mas na realidade não tinha intenção alguma de retornar (p. 6/9, HEARTSTRINGS, SHOESTRINGS).

A falta que sentiu do pai é algo que marcou a vida de Danticat, por isso, este sentimento é manifestado pela autora no quarto capítulo, quando afirma que não possui lembranças de quando seu pai foi embora, nem de antes disso. As lembranças que tinha dele eram resultado das histórias contadas, na maioria das vezes, por Marie Micheline, filha adotiva de seu tio. A autora ressalta que filhos criados longe dos pais gostam de ouvir histórias a respeito deles, principalmente se essas histórias os asseguram do amor que os pais sentem por eles (p. 7/9). As histórias serviam para alimentar-lhe a esperança de que um dia seu pai retornaria para buscá-los. Não foi um período fácil aquele que precedeu a partida de seu pai. Sua mãe continuou as atividades de confecção e depois do trabalho seu tio costumava passar para ver como estavam, e quando o dinheiro faltava, ele os ajudava como podia (p. 7/9). Mas, para Edwidge e Bob as coisas ficaram ainda mais difíceis quando depois de algumas recusas, sua mãe finalmente conseguiu o visto de turista e partiu para encontrar-se com o marido nos Estados Unidos (p. 8/9, HEARTSTRINGS, SHOESTRINGS). Nos anos que se seguiram, não estariam apenas distantes do pai, mas também da mãe, sem previsão de quando ou se iriam encontrar-se novamente:

Quando era hora da minha mãe embarcar, eu passei os braços ao redor de suas pernas para impedir seus pés de se moverem. Ela se inclinou e me soltou dela pelos meus punhos enquanto tio Joseph puxava a parte de trás do meu vestido, segurando minhas mãos, tirando-me dela.68 (p. 9/9)