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4.2 O drama da família Dantica narrado em Brother, I’m Dying

4.2.2 Entre memórias e histórias

4.2.2.4 O engajamento político e social de Danticat através da trágica história

4.2.2.4.3 O Haiti contra Joseph Dantica

Em setembro de 2004, na semana que Joseph Dantica deixou Nova Iorque, abateu- se sobre o Haiti, mais precisamente na cidade de Gonaives, o furacão Jeanne, que atingiu mais de duzentas e cinquenta mil pessoas, ocasionando um número

82 No original: “‘Brother, I’m going, but I’m leaving you with a heavy heart,’ uncle Joseph told my father. ‘I really am.’”

aproximado de cinco mil mortes. Mira, com o estado de saúde agravado, passou por dias de muita aflição, preocupado com o irmão que não mandava notícias. O furacão causou muitos danos, mas uma tempestade pior se aproximava (p. 14-15/16, BROTHER, I’M LEAVING YOU WITH A HEAVY HEART). Em outubro, seis meses depois do segundo afastamento de Jean-Bertrande Aristide, os protestos se tornaram eventos diários em Bel Air. Mais uma vez, civis morrendo pelas ruas e locais da cidade que, desde fevereiro, estava convivendo, primeiro com a Multinational Interim Force (MIF), aprovada pela Res. Nº 1529, na ocasião da transição política do país, e depois, com a Missão de Estabilização das Nações Unidas do Haiti (MINUSTAH), aprovada pela Res. Nº 1542, ambas instituídas pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de estabelecer a paz no país (FAGANELLO, 2013, p. 217). Estes protestos eram originários das gangues que clamavam o retorno de Aristide à presidência.

Na madrugada de 24 de outubro de 2004, Dantica foi despertado por disparos que pareciam estar muito próximos de sua casa. Preocupado, desceu até a sala de estar, onde encontrou seu filho Maxo, netos e nora. Algumas horas se passaram, entre tiroteios e batidas em tachos e panelas, movimento conhecido como “batendo no escuro”83 (em creole, bat tenèb), surgido na época em que Daniel Fignolé foi destituído e que a nova geração resgatou na ocasião das duas deposições de Aristides. Como era domingo de manhã, dia de culto, e o tiroteio havia aparentemente cessado, Dantica resolveu abrir a igreja, mesmo contra a vontade de Maxo. Meia hora depois de haver iniciado o culto, mais um tiroteio que durou em média vinte minutos. Em seguida ao tiroteio, mais ou menos uma dúzia de oficiais da polícia haitiana invadiram a igreja, vestidos de preto, com seus capacetes e máscaras à procura de membros de gangues. Após algumas perguntas sem respostas, iniciou-se um tiroteio dentro da igreja, vindo primeiro do telhado, pegando a todos desprevenidos. Depois do ato de violência, os homens desceram por uma escada e desapareceram pelas ruas de Bel Air. Entre mortos, feridos e o desespero das pessoas que ali se encontravam, houve uma acusação, pela qual Dantica não esperava, “‘Ele é o traidor,’ um homem disse enquanto apontava para ele. ‘O

bastardo que permitiu que subissem em seu telhado para nos matar.’”84 (p. 8/13,

83 No original: “beating the darkness”.

84 No original: “‘He’s the traitor,’ one man said while pointing at him. ‘The bastard Who let them up on his roof to kill us.’”

BEATING THE DARKNESS) Com todos os protestos que aconteciam, havia rumores de que estavam oferecendo recompensa para aqueles que denunciassem gangues que estivessem envolvidas nas revoluções. Equivocadamente, aquelas pessoas acreditaram que Dantica tivesse traído seu país e seus fiéis por dinheiro, “‘Você não viverá mais entre nós,’ outro homem disse, ‘Você trocou seu sangue por

dinheiro.’”85 (p. 8/13, BEATING THE DARKNESS)

A partir do ocorrido, Joseph Dantica foi perseguido por seus vizinhos, deu-lhes todas as suas economias para que pudessem pagar pelo tratamento médico e funerais das vítimas do ataque, tratava-se de todo o dinheiro que havia reservado para o pagamento dos professores enquanto estivesse em Miami visitando algumas igrejas, viagem que já havia programado e marcado para o dia 29, a quatro dias do incidente que dera início à sua sentença de morte. No capítulo intitulado HELL, justamente por representar o inferno por que passou Dantica no decorrer daqueles dias, Danticat descreve os vizinhos de seu tio invadindo seu apartamento, sua igreja e o incêndio do altar. Ao relatar tais atos, a autora reproduz todo o sofrimento do tio ao ver aquelas pessoas, conhecidas suas, que haviam participado de seus cultos e frequentado sua escola, destruírem tudo o que tinha construído e desejarem a sua morte. No início do capítulo, Danticat, talvez como forma de justificar a escolha do título, narra uma história que ouviu de Granmè Melina em sua infância, sobre um homem que certo dia adormeceu e ao acordar deparou-se em uma terra estranha onde não conhecia ninguém e ninguém o conhecia, perguntando onde estava:

“Você está onde está,” respondeu uma voz grossa. “Onde seria?” ele perguntou

“Onde precisa estar,” respondeu a voz.

“Eu não pedi para estar aqui,” o homem disse, “onde quer que esteja.” “Não importa como veio parar aqui,” disse a voz , “aqui está.”

[...] “Eu quero que me diga agora onde estou. Se não vou ficar com muita raiva.”

“Quem se importa com sua raiva?” respondeu a voz. “Ninguém tem medo de você aqui.”

[...] “Me diga onde estou agora!”

“Você está no inferno.”, respondeu a voz. [...] “O que é inferno?” ele perguntou.

“Inferno,” respondeu a voz, “é tudo o que você mais teme.”86 (p. 1-2/13,

85No original: “‘You’re not going to live here amoung us anymore’, another man said. ‘You’ve taken money for your blood.’”

86 No original: “You’re where you are,” answered a booming voice. “Where’s that?” he asked. “Where you need to be,” replied the voice. “I didn’t ask to be here,” the man said, “wherever it is.” “No matter how you ended up here,” said the voice, “here you are.” [...] “I want you to tell me right now where I am. If you don’t, I’m going to be angry.” “Who cares about your anger?” answered the voice. “No one

HELL, aspas da autora)

A narrativa traduz o martírio vivenciado por Dantica no decorrer daqueles dias, tendo que fugir de sua casa e abandonar sua igreja, devido às ameaças que estava recebendo dos chefes das gangues. Atendendo a um pedido de seu pai, na manhã de segunda-feira, dia 25 de outubro, Maxo levou sua família para outra cidade, para a casa de familiares, em busca de proteção. Sozinho, Dantica foi obrigado a presenciar os atos de vandalismo contra a igreja que construíra tempos atrás, com a intenção de que seus vizinhos e amigos tivessem algo em que acreditar e de contribuir para que se tornassem pessoas de bem. Ao decidir que precisava fugir e que não havia muito mais o que fazer no lugar ao qual acreditava pertencer, contou com a ajuda de uma vizinha para escondê-lo até que anoitecesse. Assim, decidiram que durante a madrugada de terça-feira, 26 de outubro, partiriam para a casa de parentes de sua falecida esposa, Denise, que moravam próximo às barreiras montadas pelas gangues. Porém, era também um local vigiado pelo exército, o que significava uma oportunidade de conseguir passar pelas barreiras quando os tanques estivessem por perto. Providenciaram-lhe um disfarce para que ninguém o reconhecesse, foi dessa forma que conseguiram chegar ao local de destino sem maiores problemas. Durante os dois dias que permaneceu na casa da prima Man Jou, ouviu dela que as gangues haviam montado barreiras também na rua de sua casa e feito de seu lar, escola e igreja uma de suas bases, de onde planejavam suas próximas ações (p. 2-13/13).

Ao narrar estes fatos, tão acuradamente pesquisados e descritos, Danticat tem como um de seus objetivos valorizar a vida de seu tio, cedendo-lhe espaço e voz, que outrora lhe foram negados. Sua intenção não é a de gerar sentimentos de compaixão e piedade por parte do leitor, mas sim de propiciar o engajamento a partir de uma consciência social que faça com que as pessoas dirijam o olhar para as nações que vivem uma realidade de guerras, revoluções e catástrofes, e que, como os haitianos, muitas vezes sentem-se obrigados a se deslocarem para outros lugares na esperança de uma vida mais justa. Mas, até que ponto uma história individual pode influenciar tal engajamento? Austen, com base em sua análise das obras Precarious Life e Frames of War, de Judith Butler, afirma que Danticat, ao ___________________________

is scared of you here.” [...] “Tell me where I am right now!” “You are in hell,” replied de voice. [...] “What is hell?” he asked. “Hell,” replied the voice, “‘is whatever you fear most.”

escrever Brother, I’m dying visando tal objetivo, atravessa um caminho sinuoso, pois coloca à prova a eficácia de seu apelo no que diz respeito à produção do engajamento social através do contar da experiência de seu tio e de sua família (AUSTEN, 2014, p. 38).