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4.2 O drama da família Dantica narrado em Brother, I’m Dying

4.2.1 O teor testemunhal

Através de sua narrativa Brother, I’m dying, Danticat conta uma história de imigração

contextualizada entre o Haiti e os Estados Unidos, onde aborda especificamente a experiência migratória de sua família, e, por esse motivo, a obra foi considerada por críticos e estudiosos como uma autobiografia não ficcional (WALCOTT-HACKSHAW, 2008; DAVIES, 2010; AUSTEN, 2014). A respectiva narrativa, além de uma obra literária, funciona também como um discurso de revindicação dos direitos humanos, apesar de algumas controvérsias devido à institucionalização e à comercialização desse tipo de escrita (SHEMAK, 2011, p. 27), na qual a autora, em forma de testemunho, apresenta situações pertinentes à realidade dos imigrantes haitianos em território estrangeiro. O caráter testemunhal da obra é admitido pela autora, quando revela que sua escrita é composta de coisas que viveu, outras que

55 No original: It’s always been something of an obsession of mine but has become more so since my eighty-one-year-old uncle died here in the United States, after never wanting to leave Haiti, except for short periods of time. When my uncle died, his body could not be returned to Haiti so he was buried in Queens, New York. He was always so sure that he was going to be buried in our family mausoleum in Port-au-Prince. He had also taken this very strong stand against leaving Haiti permanently. Someone has to stay, he always said. And he ended up being buried in Queens next to my father, who had been the one who left. Ultimately, we don’t always get a say, but I’d like to be cremated, so that I can rest in many places. A little in Haiti. A little here.

56 No original: “E ai salvati spetta, quindi, il compito di raccontare e analizzare, oltre alla loro esperienza, l’esperienza degli altri, dei sommersi, [...]”.

descobriu através de documentos oficiais de sua família, bem como de lembranças emprestadas de seus familiares, e o mais importante, algumas delas contadas por seu pai e tio, e reconhece que só as escreve porque eles estão impossibilitados de dar seu próprio testemunho (DANTICAT, 2007, p. 27/27, HAVE YOU ENJOYED

YOUR LIFE?)57.

De acordo com John Beverley, o contexto atual onde são lidos testemunhos não é mais aquele da época da Guerra Fria, formado por indivíduos inspirados em leis marxistas ou em experiências socialistas, mas sim um composto por pessoas que vivem em um mundo globalizado, dominado pela hegemonia norte-americana e que compõem novos movimentos sociais e políticos (BEVERLEY, 2004, p. x). O gênero testemunho é considerado um dos mais importantes e, provavelmente, a forma narrativa mais recorrente no campo literário da América Latina nas últimas décadas, onde ocorre a representação da realidade de determinado grupo (BEVERLEY, 2004, p. 45). Quando Beverley cita Gayatri Spivak, em In the Other Worlds, e Fredric Jameson, em Third World Literature (BEVERLEY 1989, p. 11), e, principalmente, quando traz para discussão e análise a escrita subalterna de Rigoberta Menchú

(BEVERLEY, 2004, p. 79),ele está propondo uma visão geral do gênero testemunho

e a dimensão que este vem tomando no campo da literatura latino-americana. O público leitor desta nova forma literária avalia a intenção do autor no texto, bem como sua sinceridade, mais que sua literariedade, colocando em evidência características políticas e sociais, tal como ocorre em discussões sobre a liberação feminina, a teoria de decolonização de Fanon e a pedagogia de Paulo Freire (BEVERLEY 1989, p. 14). Dessa forma, escritores engajados contra a opressão e a condição de subalternidade em seu país de origem, escrevem em ordem de promover a conscientização e de desafiar histórias convencionais contadas ao longo

do tempo58. No caso de Danticat, o gênero testemunho, além de caracterizar a

presente obra, também é evidenciado em outros de seus trabalhos, como em The

Farming of Bones (1988), Breath, Eyes, Memory (1994), Krik? Krak! (1995), The

57 Deste ponto em diante, sempre que se tratar de citações da obra Brother, I’m dying, de Edwidge Danticat, nas referências constará apenas o número da página, seguida do título do capítulo, devido ao fato da fonte consultada reiniciar a contagem das páginas a partir do início a cada capítulo. 58 Julia Alvarez (domínico-americana), em obras como How the García Girls Lost Their Accents

(1991), In the Time of the Butterflies (1994) e In the Name of Salomé (2000); Junot Díaz (domínico- americano), em obras como Drown (1996) e The Brief Wondrous Life of Oscar Wao (2007); Andrea Levy (inglesa, de origem jamaicana), em Small Island (2004); Diana McCaulay (jamaicana), em

Dew Breaker (2004) e Create Dangerously: The Immigrant Artist at Work (2010).

Assim, o contar de histórias pessoais, em que o próprio narrador foi testemunha, tem o objetivo de apresentar ao mundo situações de lutas e dramas vividos em sociedades, que de alguma forma, vivem sob imposições de poderes hegemônicos. O presente raconto aborda três acontecimentos importantes e concomitantes na vida da autora - a doença terminal de seu pai, a espera pelo nascimento de sua primeira filha e a prisão e morte inesperada de seu tio Joseph - que a situam no espaço de contradições em que vive ao mesmo tempo em que corroboram a sua condição de imigrante, negra e haitiana. No decorrer da escrita, a autora assume diversos papéis, onde em algumas ocasiões compartilha seus próprios sentimentos, em outras assume a voz do pai e do tio, e ainda, há aquelas em que se comporta como um repórter que mantém certa distância para assim poder relatar ações de terceiros (AUSTEN, 2014, p. 31). Estas mudanças na narrativa são o que a definem como denúncia, onde a autora, através do relato de fatos, conta o que sentiram, ou o que passaram seu pai e tio, em suas respectivas experiências migratórias.

Conforme pontuado por Carole Davies (2010), elementos importantes relacionados à migração fazem parte desta narrativa, tais como as dificuldades enfrentadas por um povo com uma extensa história de lutas; a emigração como alternativa de uma vida melhor, onde pai e mãe deixam para trás seus filhos até que tenham condições de buscá-los; a alteração do núcleo familiar, a partir do nascimento de outros filhos no país de acolhimento, enquanto os outros aprendem a viver distante dos pais e criam laços com aqueles que os abrigam; o sentimento de estranhamento na ocasião da reunificação da família nuclear no novo país; os problemas econômicos e sociais dos parentes que ficaram no país de origem, que fomentam uma obrigação constante dos que partiram de auxiliá-los financeiramente; a violência resultante das ocupações militares e ditaduras que, inevitavelmente, causam a morte de familiares que ficaram para trás, e, por fim, a perseguição que resulta em fuga e tentativa

frustrada de obter o status de refugiado nos Estados Unidos(DAVIES, 2010, p. 753).

Além dos elementos pertinentes apontados por Davies, a autora recorre pontualmente à contextualização histórica de momentos políticos pelos quais o Haiti estava passando na ocasião de cada experiência vivenciada por sua família. Conforme observado por Veronica Austen, as obras de Danticat têm como característica fundamental o “agarrar-se à memória”, no sentido de superar e lidar

com as dificuldades, foi assim em Breath, Eyes, Memory, em The Farming of Bones,

em The Dew Breaker e não é diferente em Brother, I’m dying, sendo que esta última

revela-se de caráter ainda mais pessoal, onde o resgate da memória funciona como munição para lutar contra uma força maior (AUSTEN, 2014, p. 30). Ainda sob a

perspectiva de Austen, na construção da obra Brother, I’m Dying, a autora navega

pelo espaço que seu discurso ocupa, de modo a incentivar um “engajamento empático” por parte do público leitor em relação à situação vivida por seu tio, Joseph Dantica (2014, p. 32). Nela, Edwidge Danticat adequa sua escrita de forma a atingir seu objetivo, que é o de denunciar a precariedade no tratamento aos imigrantes haitianos que adentram o território estadunidense, fugindo das condições instáveis de seu país de origem.