• Nenhum resultado encontrado

A delimitação aporética entre ética e política

A VIDA PRÁTICA NO TEXTO DE ARISTÓTELES

1. Praxiologia e mediedade

1.1. A delimitação aporética entre ética e política

A tentativa de determinação do objecto da filosofia prática esbarra, nas linhas preludiais da Ética a Nicómaco, com uma inesperada dificuldade: em vez da imediata comparência de uma reflexão “em torno dos assuntos éticos” [περὶ τῶν ἠθικῶν]233, o texto começa, ao invés do que seria expectável, por conceder uma clara precedência à

política [ἡ πολιτική]234. Refere, a propósito, Aristóteles:

peirat°n tÊpƒ ge perilabe›n aÈtÚ [subent. tégayÚn ka‹ tÚ êristn] t¤ pt' §st‹ ka‹ t¤nw t«n §pisthm«n µ dnãmevn. dÒjeie d' ín t∞w krivtãthw ka‹ mãlista érxitektnik∞w. tiaÊth d' ≤ plitikØ fa¤netai: t¤naw går e‰nai xre∆n t«n §pisthm«n §n ta›w pÒlesi, ka‹ p¤aw •kãstw manyãnein ka‹ m°xri t¤nw, aÏth diatãssei: ır«men d¢ ka‹ tåw §ntimtãtaw t«n dnãmevn ÍpÚ taÊthn Îsaw, Ân strathgikØn fiknmikØn =htrikÆn: xrvm°nhw d¢ taÊthw ta›w lipa›w [subent. praktika›w]

t«n §pisthm«n, ¶ti d¢ nmyetÊshw t¤ de› prãttein ka‹ t¤nvn ép°xesyai, tÚ taÊthw t°lw peri°xi ín tå t«n êllvn, Àste tËt'ín e‡h tényr≈pinn égayÒn.235

233 ARIST., EN, V, 5, 1134a 1

234 Ibid., I, 13, 1102a 21; acerca da noção de “política” [πολιτική] e respectivas ocorrências terminológicas conexas, cf. Ibid., III, 8, 1116a 17; VI, 7, 1141a 29 [vide Anexo 7 Sinopse Topográfica Livro VI EN, tabela VII 4d, pg 944]; 8, 1141b 23, 26, 32 [vide Anexo 7 Sinopse Topográfica Livro VI EN, tabela VIII 10, IX 2, 5, pg 945-946]; VIII, 9, 1160a 9, 22; Idem, MM, I, 33, 1194a 25; b 7

235 Há que tentar delimitar, em traços gerais, o que ele é [sub. o supremo Bem] e de que ciências ou capacidades é objecto. Parece que depende daquela que é a mais suprema [= dominante] e directiva [= arquitectónica]. Ora, a política é a que se apresenta como tal, posto que ela é que estabelece quais as ciências úteis nas cidades, bem como aquelas que cada um deve aprender e até que nível; além disso, vemos que a ela se subordinam as actividades mais dignificadas como a estratégia, a economia e a retórica. Assim, dado que a política não só se serve das restantes ciências [sub. práticas] como, além disso, prescreve o que se deve fazer e o que se deve evitar, o fim <da política> envolverá os fins das demais <ciências práticas>, de tal forma que <o fim daquela> será o bem do homem: ARIST., EN, I, 2, 1094a 24 – b 7

A par da inaugural relevância concedida à ciência política [πολιτικὴ

ἐπιστήμη], o excerto levanta uma outra dificuldade não menos aporética: o domínio da reflexão política não só circunscreve “de fora” o campo da investigação ética no plano horizontal de uma delimitação epistémica dos saberes teóricos, como também se posiciona “acima” da mesma no plano vertical de uma hierarquização prática das faculdades que lhe são antropologicamente inerentes. A intersecção deste dúplice alinhamento revela, em nosso entender, algo mais do que uma ameaçadora dicotomia ou uma trágica bifurcação teórica entre ética e política: ela explicita o desígnio

arquitectónico de tipificar e topografar o vasto e complexo território onde se

entrecruzam as ciências práticas nas suas múltiplas interacções de acordo com uma orientação de fundo que coordena, por um lado, bens imediatos em vista de uma

finalidade última e que mobiliza, por outro, finalidades imediatas em vista de um bem supremo.236 Nesse sentido, nada há de particularmente anacrónico ou inconsequente na tese segundo a qual o exame [σκέψις] das coisas éticas implica um tipo de investigação [μέθοδος] cujos pressupostos se encontram vinculados a uma prática epistémica plitikÆ tiw Ôsa [que é de uma certa forma política]237.

Esta distinção e subordinação arquitectónica de planos, longe de traduzir um bloqueio sistémico impossível de superar, incorpora na filosofia prática de Aristóteles uma ambivalência [ἀμφιβολία] de fundo a que Marie-Hélène Gauthier-Muzellec foi sensível, ao destacar, na sua obra Aristote et la juste mesure, um conjunto de razões pelas quais «le prologue de l’Éthique à Nicomaque peut dès lors être soumis à une double lecture: ou bien Aristote livre d’emblée l’unité d’intention qui anime les Éthiques et la Politique, et la visée pédagogique prendrait simplement le relais d’une pensée déjà structurée, ou bien il présente les éléments d’une réflexion en voie de constitution, et les affirmations devraient être prises autant pour des connaissances déjà disponibles que pour des instruments d’une recherche dont le résultat final

236 WOLF Francis, Aristote et la politique, Paris: PUF, 1991

237 ARIST., EN, 1094b 10-11; chamamos a atenção, neste inciso, para a partícula tiw cujo alcance, na língua grega, pretende captar algo de indeterminado mas não puramente indefinido, opção morfo- semântica que reforça o carácter ambíguo da relação entre ética e política.

soulignerait le dépassement».238 A saída mais fácil e indolor para dissolver o aparente hiato passaria, portanto, em reduzir a alternativa 1. ou à perspectiva holística e pensada de uma unité d’intention, solução que, nesse caso, asseguraria a coerência doutrinária entre os campos teóricos da ética e da política, como se pressente, por exemplo, tanto na obra Le philosophe et la cité239 de Richard Bodéüs, como ainda na tese do papel unificador de uma philosophia practica universalis defendida por Günther Bien na sua obra Die Grundlegung der politischen Philosophie bei Aristoteles240, 2. ou então à abordagem mais plástica de um texto vivido en voie de constitution241 que colocaria a ética numa simbiose com a realização política de uma obra viva e com a criação poiética de uma vida boa, hipótese esta com a qual procuraremos sintonizar

gradualmente na presente dissertação.242 Com efeito, na tese sugerida por Gauthier-

238 GAUTHIER-MUZELLEC Marie-Hélène, Aristote et la juste mesure, Paris: PUF (1998) 7; noutra linha de desenvolvimento vide TRÉPANIER Emmanuel, «La Politique comme philosophie morale chez Aristote», in Dialogue (Montréal) 2 (1963) 3, 251-279

239 Tal unidade de intenção obedece a um intuito pedagógico cuja finalidade consiste em enraizar as virtudes morais na acção política, conditio sine qua non para o legislador [νομοθέτης] induzir nos cidadãos o exercício das virtudes cívicas indispensáveis à vida política; este quadro constituiria o horizonte de uma «filosofia das coisas humanas» [ἀνθτρώπεια φιλοσοφία]: vide BODÉÜS Richard, Le philosophe et la cité. Recherches sur les rapports entre morale et politique dans la pensée d’Aristote, Paris: Les Belles Lettres (1982) 225; 148 ss. Por esta linha de análise segue a nossa interpretação in AMARAL António Campelo, “Ontologia da relação ética-política na filosofia prática de Aristóteles”, in AA.VV., Os Longos Caminhos do Ser. Homenagem dedicada a Manuel Barbosa da Costa Freitas, UCP Editora: Lisboa (2003) 35-51

240 Cf. BIEN Günther, La filosofia politica di Aristotele [= Die Grundlegung der politischen Philosophie bei Aristoteles, Freiburg: K. Alber, 1973], trad. Maria Lucia VIOLANTE, Bologna: Il Mulino, 1985, sobretudo o capítulo "Delimitazione della distinzione aristotelica rispetto alle categorie moderne", in op .cit., 201-217

241 GAUTHIER-MUZELLEC Marie-Hélène, Aristote et la juste mesure, op. cit., 7

242 Não é o momento para, a propósito da clivagem temática e temporal dos diferentes tratados praxiológicos, empreender hic et nunc um inquérito exaustivo sobre a forma como Aristóteles terá alegadamente procedido à “calendarização” das suas obras e à “planificação” dos conteúdos teóricos nelas visados. O debate intensifica-se a partir do momento em que Werner Jaeger [transpondo a porta entretanto entreaberta pelo afamado verbete enciclopédico de CASE Thomas, “Aristotle”, in Encyclopaedia Britannica (1910), vol. II, 501-522] sistematiza o problema com a publicação, em 1923, de Aristoteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung, propondo então o paradigma “genético” como chave-mestra de leitura [= JAEGER Werner, Aristoteles. Foundations of the History of His Development, trans. Richard ROBINSON, Oxford – New York: Oxford University Press, 1948; Aristóteles. Bases para la historia de su desarollo intelectual, trad. José GAOS, México – Madrid – Buenos Aires: FCE, 1995]. A perspectiva jaegeriana sobrevive até tempos mais recentes num largo especto teórico de posições onde se entrecuzam1) autores que procuraram “genealogicamente” precursores históricos da própria tese “evolucionista” [vide, e.g., MORAUX Paul, «L’évolution d’Aristote», in Aristote et Saint Thomas d’Aquin. Journée d’Études Internationales, ed. Paul MORAUX,Louvain – Paris: Ed. Beatrice Nawelaerts, 1957, 9-41; LEFEVRE Charles, «Du platonisme

Muzellec segundo a qual «les deux registres conceptuels présents dans ce chapitre [prologue], du politique et du poïétique, pourraient alors aussi bien désigner les limites de la réflexion d’Aristote en matière d’éthique, que les sources de sa libération», não se consuma apenas o entrelaçamento hermenêutico da “unité d’intention” epistémica com um desígnio textual “en voie de constitution” na relação triádica ética-política- poiética, mas projecta-se sobretudo a abertura mediacional de um nicho prático à l'aristotélisme», in Revue Philosophique de Louvain 59 (1961) 62, 197-248; BERTI Enrico, La filosofia del primo Aristotele, Roma – Bari: Laterza, 1997; CHROUST Anton-Hermann, «Werner Jaeger and the Reconstruction of Aristotle’s Lost Works», in Symbolae Osloenses 42 (1967) 7-43; LLOYD Geoffey, Aristotle: The Growth and Structure of His Thought, Cambridge: At the University Press, 1968], 2) autores que procuraram apurar, sofisticar ou até reinterpretar a dita tese “evolucionista” [vide, v.g., GRAHAM Daniel, Aristotle’s Two Systems, Oxford: Oxford University Press, 1987; RIST John, The Mind of Aristotle. A Study in Philosophical Growth, Toronto: Toronto University Press, 1989; OWEN Gwilym, «The Platonism of Aristotle», Proceedings of the British Academy 51 (1966) 125-150 <reed. in Articles on Aristotle, I: Science, ed. Jonathan BARNES, Malcolm SCHOFIELD and SORABJI Richard, London: Duckworth, 1975, 14-34>; DUMOULIN Bertrand, Recherches sur le premier Aristote. Eudème, De la philosophie, Protreptique, Paris: Vrin 1981], 3) autores que procuram dissecar as “teses evolucionistas” aplicando a cada uma delas o próprio “critério evolucionista” [vide, e.g. WIANS William (ed.), Aristotle’s Philosophical Development. Problems and Prospects, Lanham: Rowman & Littlefield, 1996], 4) autores que extraíram o padrão “evolucionista” a partir da análise interna de uma obra específica [vide, e.g., René A. GAUTHIER, «Introduction», L’Éthique à Nicomaque, I, Publications Universitaires de Louvain: Éditons Béatrice Nauwelaerts, 1970, 10-62; LEFÈVRE Charles, Sur l’évolution d’Aristote en Psychologie, Leuven: Editions Peeters, 1972; NUYENS François, L'Évolution de la Psychologie d'Aristote, Louvain: Éditions de l’Institut Supérieur de Philosophie, 1973]. Em todo o caso, o status quaestionis empreendido recentemente por António Pedro Mesquita, no capítulo “2. Evolução e linhas de força do pensamento de Aristóteles” da sua obra Introdução Geral às Obras Completas de Aristóteles, parece-nos, de momento, o mais consistente não tanto quanto às conclusões (de resto, como o próprio autor admite, “sempre em aberto”, como se espera da obra de um autor clássico desta envergadura), mas sobretudo no tocante às prudentes posições conjecturais que adopta face à tentação de unilateralismo redutor de cada uma das teses rastreadas [vide «Parte II. Estudos sobre o Texto e a Língua Filosófica de Aristóteles», in Ibid., op. cit., 343-438] cujos pressupostos hermenêuticos desconstrói minuciosamente e relativamente aos quais se demarca [vide especificamente capítulo “VIII. Balanço da abordagem genética do pensamento aristotélico”, in Ibid., op. cit., 423-432] acabando por propor que o corpus aristotelicum evidencia uma conectiva unidade espelhada em “cinco aspectos transversais de ideação” que constituem um núcleo estável de “grandes constantes” de pensamento, a saber 1. na ordem da investigação, o cruzamento da observação e da análise; 2. na ordem da explicação, a opção finalista; 3. na ordem da compreensão, a recusa da unicidade; 4. na ordem da exposição, o primado do argumento [vide especificamente capítulo “IX. As grandes constantes do pensamento aristotélico”, in Ibid., op. cit., 433-438; vide ainda, em continuidade, o capítulo “3. Problemas de cronologia”, in Ibid., op. cit., 441-463, bem como o capítulo “IV. Cronologias propostas dos escritos aristotélicos”, in Ibid., Apêndices, op. cit., 575-586. Seja como for, pela parte que nos toca, mais do que estabelecer a “historialidade” cronográfica ou cronológica do “tempo medido” dos textos, interessa-nos sobretudo sublinhar a “historicidade” cairológica da filosofia prática mediante a qual Aristóteles urde, em cada um dos tratados que a explicita, o “tempo vivido” da própria discursividade da acção. Na mesma linha crítica militam posições como as de WHERLE Walter, The Myth of Aristotle’s Development. The Betrayal of Metaphysics, Lanham: Rowman and Littlefield Publishers, 2000; LACHTERMAN David, «Did Aristotle “Develop”? Reflections on Werner Jaeger’s Thesis», in Revue de Philosophie Ancienne 8 (1990) 3-40; FREDE Michael, «Doxographie, historiographie philosophique et historiographie historique de la philosophie», in Revue de Métaphysique et de Morale 3 (1992) 311-325

[τὸ πρακτόν] relativamente ao qual as noções de justo meio [τὸ μέσον] e de

mediedade [μεσότης] se constituem como figura [σχῆμα] da acção [πρᾶξις] numa narrativa que se tende a consubstanciar não tanto num retardatário discurso sobre a acção, mas sobretudo como texto vivido da acção discursiva. Não basta, portanto,

indagar até que ponto a ética se diferencia da política243, mas também, e porventura acima de tudo, perceber em que medida a realização ética sobrevive no limiar crítico que medeia a íntima coalescência entre acção [πρᾶξις] e criação [ποίησις] em vista da realização de uma obra [ἔργον].244

Ora, dado que λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων [o homem é, de

entre os seres vivos, o único que dispõe de palavra]245, é no limiar crítico entre “fim político” e “bem humano” que se instalará mediacionalmente a possibilidade discursiva de uma reflexão ética, tal como Aristóteles a concebe de um ponto de vista epistémico. Será, com efeito, uma ética do meio, ela própria a meio, na tensão entre a

contingente singularidade do bem humano e a necessária universalidade do fim político para o qual aquele tende teleologicamente. Ao contrário do que se poderia supor, o fim do homem não é o bem da política: o homem não tem propriamente um fim, visto que este é assegurado pela política; o que o homem tem, isso sim, é um bem com o qual visa o fim político de uma vida boa [εὖ ζῆν] enquanto vivente dotado de palavra [ζῷον λόγον ἔχον]. Por outro lado, o mesmo pode ser dito mutatis mutandis da dimensão política; esta não encerra propriamente um bem, visto que este se domicilia no horizonte propriamente humano; o que a política encerra, isso sim, é um fim cujo desenlace se plasma num bem em vista do qual o homem é capaz de decidir e decidir-se racionalmente por uma forma de vida boa não como mónada

243 Cf. ADKINS Arthur, «The connection between Aristotle’s Ethics and Politics», in Political Theory 12 (1984) 29-49; AUBENQUE Pierre, «Politique et éthique chez Aristote», in Ktema (Strasbourg) 5 (1980) 211-221; VERGNIÈRES Solange, Éthique et politique chez Aristote: physis, ethos, nomos, Paris: PUF, 1995

244 Para um exame crítico da articulação “ergonómica” entre a esfera ética e política na praxiologia aristotélica, vide o vasto e minucioso estudo de MÉTIVIER Pierre, L’éthique dans le projet moral d’Aristote. Une philosophie du bien sur le modèle des arts et techiques, Paris: Cerf, 2000, designadamente o cap. «La relation éthique-politique», 57-87

isolada dos demais, mas em atestada relação com o outro. É nesse contexto relacional que adquirem peso específico as proverbiais palavras de Aristóteles quando refere

efi går ka‹ taÈtÒn §stin •n‹ ka‹ pÒlei, me›zÒn ge ka‹ teleiÒtern tÚ t∞w pÒlevw fa¤netai ka‹ labe›n ka‹ s–zein: égaphtÚn m¢n går ka‹ •n‹ mÒnƒ, kãllin d¢ ka‹ yeiÒtern ¶ynei ka‹ pÒlesin.246

A precedência e a prevalência do bem comunitário sobre o bem individual explica, portanto, em larga medida a relação arquitectónica entre ética e política sem que exista, por mais intrigante e paradoxal que o pareça, um ethos epistémico definido, um lugar cativo previamente reservado per saecula saeculorum para cada um dos referidos saberes. Ora, ainda que a acção política não se confine nem reduza ao desempenho pericial de uma arte – tal como a realização ética de uma acção também não usurpa o espaço ontologicamente demarcado de uma execução técnica ou de uma produção criativa – cabe, todavia, à política determinar a razão de ser e o fim último inerente a todas as ciências práticas [πρακτικαὶ ἐπιστήμαι]247. A posição de Aristóteles é a esse respeito meridiana:

t∞w krivtãthw ka‹ mãlista érxitektnik∞w. tiaÊth d' ≤ plitikØ fa¤netai: (...) xrvm°nhw d¢ taÊthw ta›w lipa›w [praktika›w]

t«n §pisthm«n, ¶ti d¢ nmyetÊshw t¤ de› prãttein ka‹ t¤nvn ép°xesyai, tÚ taÊthw t°lw peri°xi ín tå t«n êllvn, Àste

246 Ainda que o bem de um só indivíduo seja o mesmo do da cidade, afigura-se melhor e mais perfeito alcançar e salvaguardar o bem da cidade: tal fim é, por certo, estimável para um só indivíduo, mas mais belo e divino o é para um povo e uma cidade: ARIST., EN, I, 2, 1094b 7-10

247 ARIST., EN, I, 2, 1094a 26. A nossa opção sobre a forma de interpretar o inciso “ciências práticas” converge em parte com a de René Antoine Gauthier segundo o qual a expressão tende a incluir no mesmo campo semântico as actividades “práticas” (termo aqui usado em sentido estrito) e as actividades “poiéticas”, sem qualquer preocupação em sujeitá-las a uma distinção mais refinada do ponto de vista formal: cf. L’Éthique à Nicomaque, II, introd., trad. et comment. par R.A. GAUTHIER – J.-Y. JOLIF, Louvain – Paris: Publications Universitaires de Louvain – Éditons Béatrice Nauwelaerts, 1970, 9. De resto, há boas razões para admitir uma parceria conceptual acção-produção na relação arquitectónica de todas as actividades com a Política, sem que daí advenha qualquer contradição, por cotejo com o par Física (=Filosofia Segunda=ser) – Ontologia (=Ousiologia=Filosofia Primeira=ser como tal) na relação metafísica com a Teologia (=Ousiologia primeira=substância divina) entendida como a mais arquitectónica das ciências teoréticas, sem que o emprego lato do termo “filosofia” precipite qualquer incoerência no critério de diferenciação dos saberes envolvidos.

tËt'ín e‡h tényr≈pinn égayÒn.248

A distinção aristotélica entre ética e política, espelhada no binómio cidadania- moralidade249, não é apenas nominal ou semântica. Sendo certo que, a um certo nível, a adequação entre meios e fins pode não requerer necessariamente a caução de um juízo de legalidade ou de moralidade (basta para tanto que seja eficaz), também não é menos certo que, a partir de um certo nível, torna-se perfeitamente legítimo questionar em termos de licitude ou legitimidade acerca da qualificação ética “dos” meios e “dos” fins, antes mesmo de avaliar e validar a adequação “entre” meios e fins.250 Tal inquirição é possível (e em certos casos desejável até) na medida em que a política se encontra dotada de um cânone que lhe permite regular arquitectonicamente o uso

[χρῆσις] de todos os saberes práticos, bem como pronunciar-se sobre o modo como cada indivíduo deve agir [δεῖ πράττειν] e do que se deve abster [δεῖ ἀπέχεσθαι]. Compreende-se por que razão a política possui, segundo Aristóteles, o singular destino de conciliar todas as finalidades práticas do agir humano. Em bom rigor, a política não concorre nem muito menos litiga com a ética: oferece-lhe outrossim uma forma capaz de maximizar as suas potencialidades e finalidades práticas, como de resto se depreende daquele tão visitado e trilhado passo da Politica segundo o qual a capacidade racional para pensar, entender, compreender, inteligir, etc., vinculada à capacidade discursiva para exprimir sentimentos, indicar preferências, assinalar o justo e o injusto, etc., constitui a marca constitutiva do vivente político [πολιτικὸν ζῷον] que realiza a busca comum e partilhada de uma vida boa. Não se trata, por conseguinte, de politizar a moral ou de moralizar a política, nem tão pouco de desqualificar uma através da outra. Embora tentadora, qualquer uma destas opções é

248 A política é, manifestamente, a ciência arquitectónica por excelência. É mediante ela que se decide, com efeito, quais as ciências indispensáveis à cidade, e quais as ciências que cada classe de cidadãos deve aprender. (...) Dado que a política se serve de todas as restantes ciências práticas, e dado que ela prescreve pelas suas leis aquilo que cada indivíduo deve fazer e do que se deve abster, o seu fim deve incluir os das outras ciências: tal fim é o bem especificamente humano: ARIST., EN, I, 2, 1094 a 26 – 1094b 7

249 Cf. PEONIDIS Philimon, «The relation between the Nicomachean Ethics and the Politics revisited», in History of Political Thought 22 (2001) 1, 1-12

250 Cf. WELLER Cass, «Intrinsic ends and practical reason in Aristotle», in Ancient Philosophy 21 (2001) 1, 87-112

redutora e, no limite, adultera o sentido de unidade diferenciada da acção Aristóteles pretende preservar. De resto, apenas nesse sentido se entende a razão pela qual a ética envolve um μέθοδος πολιτική τις οὖσα [investigação que é de uma certa forma

política], embora tal estudo não deva excluir de todo aquela. Aristóteles procurará a esse propósito dissipar quaisquer dúvidas e equívocos: de uma certa forma δεῖ τοῖς ἔθεσιν ἦχθαι καλῶς τὸν περὶ καλῶν καὶ δικαίων καὶ ὅλως τῶν πολιτικῶν ἀκουσόμενον ἱκανῶς [é necessário ter sido bem formado nos hábitos para se tornar

propriamente num estudioso das coisas boas e justas e, de forma ainda mais completa, das coisas políticas].251

Esta opção aristotélica por dotar o estudo da ética de uma “certa forma” política252 pode decepcionar quem esperasse da ética outra coisa que não a de facultar um catálogo de instruções e procedimentos para uma vida virtuosa firmemente suspensa no límpido firmamento dos seus princípios prescritivos, das suas máximas reguladoras, das suas leis invioláveis ou, então, afirmadamente sustentada em convicções e certezas inabaláveis. Mesmo que fosse isso, a ética aristotélica sobraria sempre para além disso. Na verdade, ela não se esgota apenas no estudo que descreve