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A determinação do bem supremo na escolha das formas de vida

A VIDA PRÁTICA NO TEXTO DE ARISTÓTELES

1. Praxiologia e mediedade

1.2. O desafio ético e cívico da Felicidade

1.2.1. A determinação do bem supremo na escolha das formas de vida

O estatuto arquitectónico da política face às restantes artes e saberes práticos traduz à escala epistémica aquilo que, à escala prática, a orientação finalística para a

felicidade [εὐδαιμονία] representa para o agir humano. A montante, porém, de qualquer consideração, convém desde já salientar que a raiz etimológica do termo “εὐ-δαιμονία” levanta um conjunto de dificuldades que tornam árdua, para não dizer incomportável, a tarefa de estabilizar a sua definição conceptual. Deixando de parte o termo δαίμων cujo significado pode apontar para divindade, espírito, génio, disposição, estado, o primeiro obstáculo a vencer prende-se desde logo com o significado a atribuir ao prefixo lexemático “εὐ”: traduzível por “bem” a polivalência semântica desta simples partícula tanto pode apontar para o sentido qualitativo de “bom”, como também para o sentido estético de “belo”, e ainda para o sentido ortológico de “recto” (“direito”, “certo”...). Cruzando a dupla acepção que se desprende nas duas partes de εὐ-δαιμονία, o sentido literal mais acertado para significar o que hoje traduzimos em pauta ética por felicidade equivaleria a algo muito próximo de “bom génio”, “bom ar”, “bom aspecto”, “boa disposição”, “estar bem”, “bem-estar”, “prosperidade”, “plenitude”, cobrindo um vasto leque de dimensões

269 Vide a propósito o provocante desafio teórico lançado por AUBURY Gwenaëlle, « L’ontologie aristotélicienne comme ontologie axiologique. Proposition de lecture de la Métaphysique », in Philosophie Antique [Villeneuve d’Ascq] 2 (2002), 5-32; SCHAEFFER Denise, «Wisdom and wonder in Metaphysics A: 1-2», in Review of Metaphysics 52 (1998-1999) 3, 641-656; STEVENS Annick, L’ontologie d’Aristote au carrefour du logique et du réel, Paris: Vrin 2000; WITT Charlotte, Ways of Being: Potentiality and Actuality in Aristotle’s Metaphysics, Ithaca: Cornell University Press, 2003 270 Vide HAMLYN David, «Aristotle on Dialectic», in Philosophy 67 (1990) 465-470; PELLETIER Yvan, La dialectique aristotélicienne. Les principes clés des Topiques, Montréal: Bellarmin 1991

intrínsecas à experiência humana, desde a clínica271 à económica272. Ora, é a partir deste núcleo primordial de sentido polarizado na acepção de “bom” que o termo εὐ-

δαιμονία virá a incorporar semanticamente o duplo sentido de beleza e de rectitude,

acepções já contidas na partícula “εὐ”, facto que de certa forma explica, por exemplo, a proverbial exaltação grega do homem belo e bom [καλός κ' ἀγαθός].273 Ao tematizar a virtude da coragem [ἀνδρεία], parece ser justamente isso que acode ao espírito de Aristóteles, quando apresenta a felicidade como actividade prática da alma orientada pela razão, visando uma totalidade vivida “bem-sucedida”, “bem conseguida”. A coragem é apresentada neste quadro como exemplo virtuoso de uma acção realizada em vista de bens cujo fim, embora imanente [ἐνυπαρχόν] à totalidade da vida, transcende o carácter efémero e volátil das apreciações momentâneas, sobrepondo-se ao imediatismo dos interesses, emoções ou diletâncias e, nesse sentido, despertando a mesma admiração que aquela suscitada pela contemplação de uma obra de arte. O corajoso assume-se como paradigma incarnado da felicidade porque, segundo as palavras do filósofo,

fbÆsetai m¢n Ôn ka‹ tå tiaËta, …w de› d¢ ka‹ …w ı lÒgw Ípmene› tË kalË ßneka: tËt går t°lw t∞w éret∞w.274

271 Vide, a propósito, o sugestivo estudo de ROTHMAN Juliet, Aristotle’s “Eudaimonia”, Terminal Illness, and the Question of Life Support, New York – Bern: Lang, 1993

272 Vide a propósito as desafiadoras perspectivas teóricas de MURPHY James, The Moral Economy of Labour: Aristotelian Themes in Economic Theory, New Haven – London: Yale University Press, 1993, bem como, em planos distintos mas correlacionados, NARANJO Leticia, «Felicidad y racionalidad teleológica: una aproximación aristotélica a la ética empresarial», in Tópicos 20 (2001) 107-135; NATALI Carlo, «Carl Marx lettore della Politica e dell’Etica Nicomachea (1857-1897)», in Rivista Critica di Storia della Filosofia 38 (1983) 159-189

273 Cf. ARIST., EN, I, 8, 1096a 6; para uma perspectivação bem fundamentada do ideal antropológico do “belo e bom” [καλός καὶ ἀγαθός = καλός κ' ἀγαθός = καλός κἀγαθός], vide o esclarecedor estudo de BOURRIOT Félix, Kalos kagathos – kalokagathia. D’un terme de propagande de sophistes à une notion sociale et philosophique, vols. I-II, Hildesheim: Olms, 1995; seja como for, o binómio lexicográfico “bem e beleza” [καλοκἀγαθία] comparece explicitamente na cultura literária quer grega quer helenizada apenas em três ocasiões: duas em XENOPHON, Symposium, 4, 50, 1; 8, 11, 2; e uma em GREGORIUS NYSSENUS, In sanctum Ephraim, 840, PG 46 Migne

274 É certo que sentirá temor por tais coisas [subent. temíveis], mas [subent. enfrentá-las-á] como deve e como a razão determina em vista do belo, pois esse <é> o fim da virtude: ARIST., EN, III, 7, 1115b 11-13

Esta passagem projecta bem o escopo teleológico da felicidade: o eticamente “bom”, i.e. o que tenho “a” ou “que” fazer, não é simplesmente o que me apetece por impulso ou o que me concita a norma social vigente, mas o que, de acordo com um critério “artístico”, a razão “estabelece” como “belo” na sua “conveniência” e, nesse sentido, como digno de ser admirado, tomando-se como exemplo a seguir.

Para adensar ainda mais a dificuldade, Aristóteles dá conta até que ponto qualquer tentativa de validar filosoficamente uma definição de felicidade tem de abrir trilho por uma floresta compacta de opiniões e percepções, tão díspares quanto divergentes, sobre a sua natureza e essência. Sem, todavia, perder de vista os requisitos epistémicos exigíveis a um saber filosófico especificamente humano ou relativo às coisas humanas [ἀνθρωπίνη φιλοσοφία]275, o filósofo faz notar que as opiniões espontâneas do senso comum sobre o que significa ser feliz constituem, enquanto percepções resultantes das experiências individuais em concreto, uma espécie de texto vivido. São três as formas de vida humana [ἀνθρώπινος βίος] a partir das quais se polariza não só o campo perceptivo das opiniões sobre a felicidade mas, como base deste, o horizonte electivo das aspirações à sua obtenção, a saber 1. uma vida aprazível [βίος ἀπολαυστικός] moldada pela fruição do prazer [ἡδονή]; 2. uma

vida política [βίος πολιτικός] nutrida pelo desejo de honra [τιμή]; 3. uma vida contemplativa [βίος θεωρητικός] consubstanciada na dedicação desinteressada ao

saber [sf¤a]. Numa lúcida e concisa abordagem à intuição aristotélica de uma ética

potenciada e apropriada na sua irrecusável biodiversidade, Manuel J. Carmo Ferreira refere: «A vida é a questão por excelência do pensamento ético de Aristóteles

(…). A comunidade de sentido de tríplice formulação do que virá a estar sempre em jogo reside na reiteração da qualidade de “bem” (εὐ) que cada uma, a seu modo tematiza, e que se identifica com o “fim” (τέλος) que cada coisa persegue. A pergunta que irá reger o percurso discursivo ganha então uma determinação maior, pois o que passa a estar sobremaneira em causa é então a pergunta pelo “bem do homem” (τἀνθρώπινον ἀγαθόν: EN, 1094b 7), pelos fins que lhe são próprios. Mas é como

275 Sobre o alcance filosófico do sentido polivalente da expressão ἀνθρωπίνη φιλοσοφία, cf. o magistral estudo de RODRIGO Pierre, Aristote et les "choses humaines", Bruxelles: OUSIA, 1998

questão vital no contexto de uma dada existência que o inquérito pode começar

(…) (EN, 1095b 15-16). Daí a inevitabilidade da confrontação de respostas díspares, como diversos são os modos de vida, só superável se conseguirmos recuar à

interrogação mais primitiva acerca do “ofício”, da “função”, do “exercício” (ἔργον) ou da competência do homem como homem, transversal e transcendendo o seu

estatuto ou profissão, abrindo à discussão da pluralidade inevitável dos modos de procurar justificar o sentido adoptado para a existência.»276

O que de importante se oferece nas entrelinhas da enumeração aristotélica das formas de vida não é tanto uma apologia dos méritos do filósofo que opta pela vida contemplativa [βίος θεωρητικός]277 em detrimento da motivação hedonista que se infiltra na vida apolaústica, ou da sede de prestígio que se camufla nas honras políticas, mas sobretudo uma fenomenologia da percepção opinativa em cuja descrição se manifesta o sentido pré-reflexivo, mas já muito sage, de uma ética vivida. Tal rastreio opinativo possui um evidente alcance crítico: não se trata de denunciar e de causticar a opinião [δόξαι] enquanto forma espúria de conhecimento, mas de avaliar, valorizar e validar a experiência perceptiva das opiniões admitidas ou consideradas

[τὰ ἔνδοξα], a partir da quais a reflexão praxiológica se pode apoiar, como adiante se verá, numa espécie de mediação discursiva entre o extremo da ignorância gerada pelas

276 FERREIRA Manuel J. Carmo, «Introdução» in ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco, trad. e not. Dimas de ALMEIDA, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2012, 21-22; destacado nosso. 277 Importa desde já desfazer uma confusão que se instala com relativa facilidade entre “teórico” e “teorético”. É verdade que “teórico” se opõe a “prático” naquele sentido em que a actividade especulativa difere stricto sensu da actividade prática. Todavia, o adjectivo “teorético” que qualifica a actividade contemplativa como a mais elevada actividade humana (e não o contrário: a actividade humana tomada como a mais elevada contemplação...) não se opõe de forma alguma à filosofia praticada e vivida por uma razão simples que Aristóteles antecipa de certa forma no Protrepticus [cf. ARIST., Prt., frgm. 42 Chroust] e reforça de modo inequívoco na Politica: ἀλλὰ τὸν <subent. βίον> πρακτικὸν οὐκ ἀναγκαῖον εἶναι πρὸς ἑτέρους, καθάπερ οἴονταί τινες, οὐδὲ τὰς διανοίας εἶναι μόνας ταύτας πρακτικάς, τὰς τῶν ἀποβαινόντων χάριν γιγνομένας ἐκ τοῦ πράττειν, ἀλλὰ πολὺ μᾶλλον τὰς αὐτοτελεῖς καὶ τὰς αὑτῶν ἕνεκεν θεωρίας καὶ διανοήσεις· ἡ γὰρ εὐπραξία τέλος, ὥστε καὶ πρᾶξίς τις [A <subent. vida> prática, porém, não se refere necessariamente aos outros indivíduos, como por vezes se julga, nem são práticos apenas aqueles pensamentos que são elaborados em vista daquilo que resulta da acção, mas são muito mais práticas as contemplações e os pensamentos que têm o fim em si mesmos e em vista de si mesmos, posto que uma boa prática é um fim e, nesse sentido, uma certa acção]: ARIST., Pol., VII, 3, 1325b 16-23; vide a propósito WALKER Matthew, «The utility of contemplation in Aristotle's Protrepticus», in Ancient Philosophy 30 (2010) 135-153; MONAN Donald, «La connaissance morale dans le Protreptique d’Aristote», in Revue Philosophique de Louvain 58 (1960) 58 185-21; La CROCE Ernesto, «Ética y Metafísica en el Protréptico de Aristóteles», in Ethos 10-11 (1982-1983) 169-181

opiniões falsas (ou dialecticamente falseadas) e o extremo oposto do saber potenciado pela exactidão da explicação científica ou pela profundidade da contemplação noética.278

Seja como for, a descrição tripartida dos modos de vida não é cumulativamente aleatória, mas parece obedecer ao intuito de descartar três candidatos à entronização de um critério unívoco para a definição de felicidade: o prazer, a honra e a riqueza. No tocante ao prazer, não há meio de o assimilar à felicidade, visto que a forma de vida que lhe subjaz sujeitaria o homem aos impulsos imediatos de uma vida desprovida de razão: neste caso o problema não reside no prazer propriamente dito (num certo sentido, este desempenhará, como adiante se há-de ver, um papel absolutamente relevante e insubstituível na reflexão ética279), mas no facto de ele representar, na sua tendência impulsiva, uma força contrária e inibidora do discernimento. Quanto à honra, o exame afigura-se mais favorável do que o do prazer: é certo que a sua tentativa de aquisição se explicita e materializa no campo relacional da vida política, todavia, tal vantagem é apenas ilusória, uma vez que pode camuflar um interesse individual mais interessado no reconhecimento dos méritos conquistados do que propriamente comprometido com o diligente e heróico cultivo de uma vida boa em si mesma.

Na candidatura ao preenchimento eudemónico do supremo bem 280, a honra [τιμή] constitui o limiar ético onde a “percepção” do mérito [ἀξία], deve ceder de imediato o lugar à virtude [ἀρετή]. Mesmo assim, nada parece garantido, pois não

278 O valor gnosiológico que Aristóteles confere nesse limiar intermédio ao texto vivido quer das

δόξαι (na forma indicativa de juízos de aparência), quer das ἔνδοξα (na forma indiciária de máximas ou conselhos experientes e experimentados), remete-nos de imediato para o paralelo platónico da “voz da experiência” como um dos factores de credibilização da opinião verdadeira [δόξαἀληθές]: veja- se, com efeito, aquele passo das linhas preludiais da Res publica em que Sócrates expõe por breves instantes o saber filosófico à escuta da voz da experiência prefigurada no ancião Céfalo, [cf. PLAT., R., I, 329 a-d].

279 Cf. ARIST., EN, II, 3, 1104b 4 – 1105a 17; a propósito do papel do prazer [ἡδονή] na filosofia aristotélica, cf. BRAGUE Rémi, «Note sur le concept d’hedone chez Aristote», in Études Philosophiques 1 (1976) 49-55

280 Afigura-se pertinente, a este respeito, o incisivo estudo de ZINGANO Marco, «Eudaimonia e bem supremo em Aristóteles», in Analytica I (1994) 2, 11-40 [= reed. in Idem, Estudos de Ética Antiga, São Paulo: Discurso Editorial, 2007, 73-110], bem como, numa perspectiva mais abrangente, o de LEAR Gabriel, Happy lives and the highest good. An essay on Aristotle’s “Nicomachean Ethics”, Princeton: Princeton University Press, 2004

basta possuir a virtude para se ser virtuoso, se, com efeito, essa aquisição não decorrer de uma apropriação: o indivíduo em vias de “adquirir” a virtude pelo efeito indutor do hábito repetido e treinado deve “fazê-la sua”, conformando a sua posse aos actos efectivamente realizados e vivenciados “por si”. Ainda que acalentada no mérito ou na honra, a aquisição da virtude pode satisfazer como condição necessária, mas não é necessariamente suficiente, dado que, para Aristóteles, a simples posse da virtude não torna ninguém eticamente virtuoso, enquanto ela for apenas “adquirível” como possibilidade potencial mas não activada como capacidade efectiva.281 Vale a pena perceber porquê:

ên tiw t°lw tË plitikË b¤ taÊthn [subent. ≤ éretØ]

Íplãbi. fa¤netai d¢ ételest°ra ka‹ aÏth: dke› går §nd°xesyai ka‹ kayeÊdein ¶xnta tØn éretØn µ éprakte›n diå b¤, ka‹

prÚw tÊtiw kakpaye›n ka‹ étxe›n tå m°gista: tÚn d'Ïtv z«nta Ède‹w ín eÈdaimn¤seien, efi mØ y°sin diaflãttvn.282

Na sequência do excerto, importa notar que a determinação eudemónica da virtude assenta numa subtil e normalmente negligenciada distinção conceptual entre “vida percepcionada” como ζωή e “vida visada” como βίος. Não se trata de ambíguo manuseamento semântico. Cientes da forma oscilante como Aristóteles emprega uma e outra em diferentes latitudes do seu corpus textual283, estamos em crer que, apesar de

281 Vide, a propósito, a estimulante análise teórica de cf. a propósito FREELAND Cynthia, «Aristotle on possibilities and capacities», in Ancient Philosophy 6 (1986) 69-89

282 Talvez alguém possa supor que ela [subent. a virtude] seja o fim da vida política. Todavia, ainda assim afigura-se incompleta, pois aquele que possui virtude pode achar-se a dormir e em estado inactivo ao longo da vida, ou até mais do que isso: a sofrer males e a passar por infortúnios. Ora, ninguém felicitará o que vive desse modo, a não ser para defender a todo o custo essa tese: ARIST., EN, I, 5, 1095b 30 – 1096a 2

283 Encontra-se bem atestada e consolidada a conjectura linguística que faz depender o termo ζωή de um emprego ático que terá evoluído de um primitivo núcleo semântico associado ao termo βίος: vide, a propósito, os diferentes pontos de vista de LIDDELL Henry – SCOTT Robert, Greek-English Lexicon, revis. H.S. JONES, Oxford: Clarendon Press, 1996; BAILLY Anatole, Dictionnaire Grec- Français, Paris: Hachette, 1997; BOISACQ Émile, Dictionnaire Etymologique de la Langue Grecque étudiée dans ses rapports avec les autres langues indo-européennes, Heidelberg: Carl Winter, 1950; CHANTRAINNE Pierre, Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots, vol. I-II, Paris: Ed. Klincksieck, 1968-80. Essa oscilante flutuação semântica subsiste de forma bem patente na filosofia de Aristóteles: se, por um lado, em certos passos, se mantém estável um emprego quase

tudo, que essa flutuação de sentido traduz implicitamente uma dupla concepção de “vida” cujo escamoteamento nos privaria de uma compreensão mais consistente do alcance praxiológico da virtude.284 Ora, há três passos no tratado Ethica Nicomachea onde o Estagirita diferencia claramente a utilização dos dois termos, sem ceder a qualquer tipo de confusão semântica ou utilização sinonímica.

A primeira ocorrência vinga no supracitado excerto 1095b 34 – 1096a 1. Nesse passo a relação entre os dípticos διὰ βίου [ao longo da vida] e οὕτω ζῶντα [o que vive desse modo <subent. dormente, inactivo>] abona fortemente uma

interpretação em favor da precedência da “ética vivida” sobre a “vida ética”, mesmo que nesta se encontrem assegurados mecanismos aquisitivos de virtude. Para assumir a plenitude de uma ética vivida é indispensável, com efeito, estar vivo, isto é dotado de um princípio actualizante [ἐντελέχεια], designado alma [ψυχή], que confere a um corpo a possibilidade de, vinculado àquela numa composição [σύνολον] de índole hilemórfica285, realizar um conjunto funcional de potências ou faculdades [δύναμεις], como sejam a nutrição [τροφή], a sensação [αἴσθησις], a locomoção

[κίνεσις] e a intelecção [νοῦς]286; todavia, este dispositivo “zoo-mórfico”287 de funções vitais não basta, por si só, para elevar a alma humana até àquele patamar de

monológico de ζωή numa triangulação textual que vincula os tratados Metaphysica [a propósito da teleologia da vida in Metaph., IX (Y), 6, 1048b 27 e da vida inerente à substância divina in Ibid., XII (L), 7, 1072b 26-30], De anima [a propósito da alma como princípio vital in De an, II, 2, 413a 21ss.] e Politica [a propósito da existência da polis a partir da vida e em vista do bem viver in Pol., I, 2, 1252b 29-30], por outro lado, muda de registo terminológico, quando na Ethica Nicomachea utiliza βίος para a enunciação dos modos de vida apolaústica, política e contemplativa [in EN, I, 5, 1095b 15 – 1096a 11]; em três outros passos, contudo, o emprego de ζωή mantém-se na imediação semântica de βίος [cf. EN, I, 7, 1097b 9; X, 6, 1176a 35; EE, I, 4, 1215a 35], o que, apesar de insólito e desconcertante, não deixa de ser sintomático quanto à necessidade de uma abordagem não unívoca mas diferenciada à noção de “vida” na sua filosofia: cf. KEYT David, «The meaning of bios in Aristotle’s Ethics and Politics», in Ancient Philosophy 9 (1989) 1, 15-21

284 Cf. MANSION Suzanne, «Deux définitions différentes de la vie chez Aristote?», in Revue Philosophique de Louvain 71 (1973) 11, 425-450

285 Permanece irresistível e insuperável, no plano metafísico, a clássica definição aristotélica de “alma” [ψυχή] como e‰dw s≈matw fsikË dnãmei zvØn ¶xntw [forma específica de um corpo material que possui vida em potência]: ARIST., De an., II, 1, 412a 20

286 Cf. ARIST., De an., II, 2, 413a 20 ss.

287 Afigura-se pertinente, a propósito, o estudo de LEFEBVRE René, «Aristote zoologique: décrire, comparer, définir, classer», in Archives de Philosophie (Paris) 61 (1998) 1, 33-59

plenitude em que a faculdade intelectiva, a mais nobilitada das faculdades do ser humano – esse vivente político [πολιτικὸν ζῷον] que visa um bem-viver [εὖ ζῆν] porque detentor de palavra [λόγον ἔχον]288 – se encontra disponível para a culminância de uma vida contemplativa [βίος θεωρητικός] cuja finalização eudemónica é “biografável” realizada como obra [ἔργον] em aberto e, portanto, aperfeiçoável, na sua radical incompletude, até à morte ao longo de uma vida [διὰ βίου].289

Em idêntica direcção parece apontar a segunda ocorrência que podemos bifurcar em dois momentos textuais onde os dois termos surgem morfossintaticamente coligados no mesmo segmento oracional, a saber

1. em EN 1097b 9, ainda nos momentos preludias do tratado, onde ocorre um sintomático <subent. λέγομεν οὐκ > ... ζῶντι βίον μονώτην [<subent. referimo-nos não> ... àquele que vive uma vida solitária] e

2. em EN 1176a 35, desta feita já no declinar do tratado, onde comparece um provocador <subent. ὑπάρχοι ἄν> φυτῶν ζῶντι βίον [<subent. poderia pertencer> àquele que vive uma vida de plantas].

Em qualquer dos casos, as duas ocorrências mencionadas incorporam o agir ético no cerne de uma distinção crucial que se desdobra entre a “experiência vital” de

ter vida [ζῆν] e a “experiência vivida” de estar vivo [βιώναι]. Neste último caso, mais do que um “ir vivendo”, trata-se de um cônscio e auto-apropriado “viver a vida”, a que Rémi Brague, na sua obra Aristote et la question du monde, concedeu plena relevância ao defender a presença de uma “fenomenologia da vida” na filosofia aristotélica.290 Embora centrada no desígnio metafísico de ensaiar uma interpretação onto-fenomenológica da cosmologia aristotélica, a posição do pensador francês permite-nos vislumbrar com nitidez os contornos de uma “ética vivida” no âmago da

288 Veja-se a canónica formulação aristotélica segundo a qual lÒgn d¢ mÒnn ênyrvpw ¶xei

t«n z–vn [o homem é o único dos viventes que dispõe de palavra]: ARIST., Pol., I, 2, 1253a 9-10 289 Cf. CAPPELLETTI Angel, «El concepto de “vida” en Aristóteles», in Revista Venezoelana de Filosofía 23 (1987) 25-38; PAVLOPOULOS Marc, «Aristotle’s natural teleology and metaphysics of life», in Oxford Studies in Ancient Philosophy 24 (2003) 133-181

290 Cf. BRAGUE Rémi, Aristote et la question du monde. Essai sur le contenu cosmologique et anthropologique de l’ontologie, Paris: PUF, 1988, 474-481; 487-492

reflexão praxiológica de Aristóteles: «(...) Il faut s’arrêter sur un fait digne d’étonnement: Aristote commence par parler de “belle vie” ou de “vie bonne” avant de parler de la vie tout court. Ce faisant, il fait passer le qualifié avant la substance, ce qui n’est pas de bonne logique. (...) Il se pourrait cependant que ce renversement de l’ordre “naturel” soit le fruit d’un courage phénoménologique exceptionel, et qui manifeste, au-delà de l’ordre apparent, l’ordre réel. Faire précéder le simple “vivre”

d’un “vivre” qualifié, c’est montrer qu’il n’est pas question ici d’une vie biologique<291> mais de la vie que nous vivons effectivement et qui, comme telle, est toujours vécue dans des conditions déterminées qui la rendent plus ou moins bonne, plus ou moins heureuse. La mention de la vie bonne et du bonheur n’est donc pas une limitation à un cas particulier – comme s’il y avait une vie neutre. Au contraire, elle permet d’acceder au phénomène même de la vie pure et simple.»292. Deste decisivo excurso de Rémi Brague três ilações podem ser extraídas com imediato impacto na fenomenologia aristotélica dos modos de vida e, a partir dessa base, na vinculação