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A virtude como condição possibilitante de aquisição da felicidade

A VIDA PRÁTICA NO TEXTO DE ARISTÓTELES

1. Praxiologia e mediedade

1.2. O desafio ético e cívico da Felicidade

1.2.4. A virtude como condição possibilitante de aquisição da felicidade

existência, mas no cômputo geral de uma vida inteira, na esteira aliás daquele

memorável aforismo segundo o qual μία χελιδὸν ἔαρ οὐ ποιεῖ [uma andorinha não

faz a primavera]460.

1.2.4. A virtude como condição possibilitante de aquisição da felicidade

Tomando a Ethica Nicomachea como aferidor textual, o acesso do vivente humano à felicidade só se efectiva, segundo Aristóteles, por quatro vias possíveis:

1. por aprendizagem [μαθητόν],

458 Cf. ARIST., EN, II, 4, 1105a 26 ss. 459Ibid., III, 4, 1113a 33

460 A fórmula adverte, como é sabido, para o facto de, antes de emitir um juízo avaliativo nunca se dever tirar conclusões definitivas a partir de um único indício, nem se deixar empolgar precipitadamente pela percepção isolada de um elemento favorável à análise. A associação metafórica de uma extemporânea chegada primaveril à figura da andorinha é antiga, sendo Aristóteles um dos primeiros e raros autores gregos [o outro é Aristófanes de Atenas (cf. ARISTOPHANES, Aves, 1417)] a dar-lhe o aspecto final que a expressão exibe na Ethica Nicomachea a propósito do equívoco de se considerar alguém feliz antes que a sua vida tenha completado o seu curso, não deixando de acrescentar um sugestivo οὐδὲ μία ἡμέρα que, na forma completa, conferiria à fórmula o seguinte aparato textual: m¤a går xelid∆n ¶ar È pie›, Èd¢ m¤a ≤m°ra [<nem> uma andorinha nem um único dia faz<em> a primavera> : cf. ARIST., EN, I, 7, 1098a 18-19]. Esta forma proverbial não parece ter tido muito acolhimento na tradição latino-romana e a sua utilização nalguns autores cristãos foi muito escassa, ao contrário do que faria supor o seu disseminado emprego coloquial em quase todas as línguas modernas.

2. por habituação [ἐθιστόν] – ou outro exercício [ἀσκητόν] do género,

3. por destinação divina [θεία μοῖρα] ou 4. por acaso [τύχη].461

Duas das quatro alternativas são liminarmente descartadas logo à partida: a do desígnio divino (3), seja ele tomado na sua forma providencialista ou demiúrgica (mesmo que vagamente platónica462) e a do influxo aleatório (4). Nenhuma delas (3 e 4) satisfaz convenientemente o primado ético da decisão humana na delimitação (até onde ir?...) e da determinação (o que fazer?...) da acção. Aquela (3) porque preconiza uma solução religiosa “exógena”, isto é fora do alcance humano, pese embora o facto de, em nosso entender, ainda se encontrar longe de estar cabalmente esclarecido o impacto da religião no contexto da praxiologia aristotélica dadas as flutuantes hesitações e aporias do Estagirita em torno do problema463; esta (4) porque, à luz de um topos amplamente sedimentado desde os alvores da cultura grega segundo o qual a fortuna caeca est [a sorte é cega]464 compromete uma indeclinável orientação

461 Cf. ARIST., EN, I, 9, 1099b 9: vide em paralelo EE, I, 2, 1214b 7 ss.

462 Cf. PLAT., Men., 99e; a este propósito torna-se pertinente a investigação levada a capo por BOS Abraham, Providentia divina. The theme of divine “pronoia” in Plato and Aristotle, Assen: Van Gorcum, 1976

463 Cf. a propósito um relevante conjunto de estudos, de entre os quais se destacam os de BRACHET Robert, L’âme religieuse du jeune Aristote, Paris – Fribourg: Éditions Saint-Paul, 1990; CHROUST Anton-Hermann, «Aristotle’s religious convictions», in Divus Thomas (Piacenza) 69 (1966) 91-97; DÉCARIE Vianney, «Le divin dans l’éthique aristotélicienne», in La question de Dieu selon Aristote et Hegel, dir. par Thomas De KONINCK, Paris : PUF, 1991, 37-68; GRAMMATICO Giuseppina, «El dios y lo divino en la ética de Aristóteles», in Philosophica (Valparaíso) 11 (1988) 31-54; VAN der EIJK Philip, «Divine movement and human nature in Eudemian Ethics 8, 2», in Hermes 117 (1989) 24-42

464 Embora a expressão surja extraída de um excerto do De amicitia de Cícero onde se refere que non enim solum ipsa Fortuna caeca est, sed eos etiam plerumque efficit caecos quos complexa est [na verdade, não só a sorte é cega, mas também, na maior parte das vezes, cega aqueles que abraça: cf. CICERO, De amicitia, 15, 54], a associação da sorte e da cegueira constituía um topos bastante difundido no Oriente antigo e no mundo clássico grego onde comparece amplamente registada em diversos tipos de arte plástica, desde a olaria à estatuária. Embora nos Monosticha de Menandro de Atenas sejamos já brindados pela exortação tflÒn ge ka‹ dÊsthnÒn §stin ≤ tÊxh [a sorte é um ser cego e infeliz: cf. MENANDRUS, Monosticha, 463 Jaekel], é na literatura latina que, todavia, o tema revela toda a sua força plumitiva, designadamente nalgumas passagens imortalizadas por Cícero (cf. CICERO, Philippicae, 13, 5, 10), Ovídio (cf. OVIDIUS, Epistulae ex Ponto, 4, 8, 16; Fastos, 6, 576), Séneca (cf. SENECA, Phaedrus, 979 ss.) e Apuleio (cf. APULEIUS, Metamorphoses = Asinus Aureus, 8, 24; 11, 15). Interessante é a posição expressa num dístico moral de Catão que parece remar contra a corrente do sentido geral da elocução, ao advertir, em pauta racionalista acentuadamente

teleológica da acção. Restam as duas primeiras alternativas, a saber a da aprendizagem (1) e a da (2). Segundo Aristóteles, estas constituem, de facto, as duas vias possíveis para obviar a exequibilidade de qualquer acto humano eticamente determinado: ambas implicam da parte do agente um exercício efectivo que o domiciliam no campo simultaneamente aberto e delimitado das suas possibilidades. Com efeito, enquanto a primeira alternativa instaura o conceito de efectividade do agir como determinação formal (o que hei-de fazer?), já a segunda pressupõe o conceito de contenção do agir como limite material (até onde posso chegar?) da eticidade. Neste caso

concreto, a Ethica Eudemia oferece precioso reforço hermenêutico à Ethica Nicomachea. Vale a pena reproduzir em cotejo o passo paralelo:

pr«tn d¢ skept°n §n t¤ni tÚ eÔ z∞n ka‹ p«w kthtÒn, pÒtern fÊsei g¤gnntai pãntew eÈda¤mnew fl tgxãnntew taÊthw t∞w prshgr¤aw, Àsper megãli ka‹ mikr‹ ka‹ tØn xriån diaf°rntew, µ diå mayÆsevw, …w Îshw §pistÆmhw tinÚw t∞w

aristotélica, que cum sis incautus nec rem ratione gubernes, / noli Fortunam quae non est dicere caecam [se és temerário ou não orientas as coisas com a razão, não digas que a sorte é cega, pois não o é: CATO, Disticha de moribus, 4, 3]. Seja como for, o tema persiste na sua versão originária ao longo da tradição dramatúrgica ocidental, aflorando por exemplo em Henry V de William Shakespeare no passo onde se assevera que Fortune is painted blind, with a muffler afore her eyes, to signify to you that Fortune is blind: vide SHAKESPEARE William, Henry V, 3, 5. Com efeito, o carácter cego da sorte parece bafejar de sobremaneira as situações afectadas por acasos infelizes e desafortunados: fortunae filius! era a expressão usada para designar os recém-nascidos enjeitados que certas matronas romanas recolhiam poupando-os a uma morte certa: de acordo com a inclemente sátira de Juvenal aos costumes sociais romanos, estes afortunados recém-nascidos salvos pela “cegueira” da sorte formariam a base social de uma inexaurível reserva de futuros magistrados [cf. JUVENALIS, Satirae, VI, vv. 605 ss]. Na literatura grega, assumem particular relevo dois trechos bem ilustrativos daquela difundida tirada gnómica, de que a Suda dá conte com particular acuidade, ée‹ går eÔ piptsin fl DiÚw kÊbi [os dados de Zeus caem sempre do lado certo: (cf. Suda a 613), muito provavelmente inspirando-se naquele passo dos Septem contra Thebas de Ésquilo de Elêusis em que os deuses lançam os dados para decidir a sorte da humanidade (cf. AESCHYLUS, Septem contra Thebas, 404)]: o primeiro trecho, ligado à composição épica de Homero, brota de um verso da Ilias, em que o rei troiano Príamo define o seu homólogo micénico Agamémnon como mirhgenÆw [nascido da sorte] pelo seu estatuto afortunado e privilegiado (cf. HOMERUS, Ilias, 182); o segundo trecho, vinculado à criação dramatúrgica de Sófocles de Atenas, tragediógrafo profusamente referenciado por Aristóteles, num trecho em que o rei Édipo é denominado pa›da t∞w tÊxhw [filho da sorte], querendo com isso dizer que, apesar do desconhecimento das origens paternas, aquele se encontra protegido pela sorte, facto que, neste caso particular, assume uma inesperada intensidade trágica pela carga irónica que comporta: Édipo descobrirá, com elevado preço, aquilo que, no fundo, o auditório já conhece, ou seja capturado na trama de uma condição desventurada e catastrófica, completamente inversa daquilo que o seu epíteto indicia (cf. SOPHOCLES, Oedipus rex, 1080 ss.).

eÈdaimn¤aw, µ diã tinw éskÆsevw (pllå går Îte katå fÊsin Îte mayËsin éll' §yisye›sin Ípãrxei t›w ényr≈piw, faËla m¢n t›w faÊlvw §yisye›si, xrhstå d¢ t›w xrhst«w), µ tÊtvn m¢n kat' Èd°na t«n trÒpvn, d›n d¢ yãtern, ≥ti kayãper

fl nmfÒlhpti ka‹ yeÒlhpti t«n ényr≈pvn, §pipn¤& daimn¤ tinÚw Àsper §nysiãzntew, µ diå tØn tÊxhn (pll‹ går taÈtÒn fasin e‰nai tØn eÈdaimn¤an ka‹ tØn eÈtx¤an).465

O cruzamento dos vários aspectos expostos até ao momento não só permitirá colocar fora de circuito a fonte divina e aleatória da felicidade, como ainda restringir fortemente a hipótese da origem didáctica da mesma por um motivo bem esclarecedor: o de que as matérias práticas [τὸ πρακτόν] não se podem aprender dado que são insusceptíveis de ensino teorético ou científico. Sobra, portanto, a habituação

[ἐθιστόν]. Vejamos.

Empreender a busca da felicidade significa colocar-se em acção mediante um

exercício [éskhtÒn] que implica esforço aplicado, diligente e constante. A inscrição

eudemónica do agir ético adquire, neste caso, uma particular acuidade praxiológica: na busca da felicidade não há lugar nem para a sorte, nem para o favor divino, nem para a ciência. Existe sim um leque de disposições naturais cuja explicitação instaura um

modo de relação do homem consigo mesmo no texto da sua acção.466 Trata-se, portanto, de apreender a natureza da felicidade à luz do esquema geral das respectivas condições de acesso num contexto de organização lógica da sua essência, por forma a obter uma definição que articule o problema da sua obtenção com o da virtude tomada

465 Primeiro há que atender ao que significa viver bem e ao modo de o adquirir, quer dizer se será devido à natureza que se tornam felizes todos os que assim são chamados (como acontece com os indivíduos de grande ou de reduzida estatura e com os de diferente compleição), ou se será por aprendizagem (como se a felicidade fosse uma certa ciência) ou por um determinado exercício (com efeito, muito daquilo que o homem adquire alcança-o não por natureza ou aprendizagem, mas por hábito: qualidades más por maus hábitos, boas por bons hábitos), ou então se será devido não a qualquer uma destes vias, mas antes a uma das duas que se seguem: ou por uma certa inspiração daimónica (como no caso dos homens possuídos por ninfas ou divindades, à maneira dos «entusiastas»), ou por mero acaso (são numerosos, de facto, os que identificam felicidade com boa sorte): ARIST., EE, I, 1, 1214a 14-25

466 Cf. GILL Christopher, Personality in Greek epic, tragedy and philosophy. The self in dialogue, Oxford: Clarendon Press, 1998

não apenas como disposição [διάθεσις] mas também como exercício, ou seja como

actividade ou acto em devir [ἐνέργεια]. Quanto aos restantes bens, ou estes decorrem imediatamente dessa efectividade, como sucede com o prazer, ou não passam de meios para atingir finalidades imediatas ilusoriamente tomadas por últimas e supremas, como a riqueza e a fama por exemplo. De acordo com esse ângulo de abordagem quase-naturalista, a felicidade pode ser definida como vida virtuosa inerente a um estado intrínseco de excelência, o que implica, desde logo, descartar quer a realidade divina como elemento possibilitador da sua aquisição, quer todos os seres viventes que a ela não podem aceder, incluindo-se neste caso quer os desprovidos de razão quer os que ainda não fazem uso dela.

Pode-se, portanto, reduzir o problema do acesso a uma vida feliz ao da obtenção da virtude, visto que, para ser feliz, é necessário uma prática da virtude completamente inscrita e consumada numa vida aperfeiçoável. Importa esclarecer, todavia, que o sentido de perfeição ou completude [τέλειον], terminologicamente associado ao parentesco semântico de fim [τέλος], apela muito mais à deveniência em acto de um dinamismo aberto de maturação e de desenvolvimento, do que propriamente ao momento terminal de consumação de um percurso ou processo. Trata- se sobretudo de evocar teleologicamente um “estado em vias de” aperfeiçoamento, do que propriamente a perfeição de um “estatuto já adquirido”: nesse sentido, ninguém pode afirmar em bom rigor que “é feliz”, mas que, no mínimo, “está feliz”. Por outro lado, a reflexão sobre a aquisição da virtude como condição de possibilidade de acesso à felicidade [como chego lá?...], impõe colateralmente um exame sobre a questão da sua permanência [como me mantenho aí?...]. A questão adquire, em nosso entender, um pouco mais de nitidez recorrendo a um passo da Ethica Nicomachea onde, a propósito da tipificação teleológica da acção humana como propensão ou aspiração projectada [ἔφεσις] para um fim [τέλος], se refere

≤ d¢ tË t°lw ¶fesiw Èk aÈya¤retw, éllå fËnai de› Àsper

ˆcin ¶xnta, √ krine› kal«w ka‹ tÚ kat' élÆyeian égayÚn aflrÆsetai, ka‹ ¶stin eÈfØw ⁄ tËt kal«w p°fken: tÚ går m°gistn ka‹

¶f tiËtn ßjei, ka‹ tÚ eÔ ka‹ tÚ kal«w tËt pefk°nai ≤ tele¤a ka‹ élhyinØ ín e‡h eÈf˝a.467

Do excerto ressalta com toda a clareza até que ponto as questões relacionadas quer com a forma antropológica da aquisição da virtude, quer com a forma ontológica da sua manutenção e conservação, se tornam cruciais no contexto da acção humana. A partir do pressuposto de que a disposição virtuosa é o estado que nos protege tanto dos golpes cegos, imprevisíveis e aleatórios do acaso como da ameaçadora incerteza que paira sobre o desfecho da busca de felicidade, não existem actividades humanas cuja estabilidade se lhe compare.

É graças ao vínculo onto-antropológico entre virtude e felicidade que se explica, por conseguinte, a matizada diferenciação entre acto elogiável [ἐπαινετόν] e acto honrável [τιμητός]. Enquanto o elogio [ἔπαινος] pressupõe uma causa inscrita na excelência intrínseca do acto em si, já a honra [τιμή], por seu turno, exige que o agente, seja ele homem justo, corajoso ou de bem, seja exaltado em virtude da forma bela e apropriada como realiza as acções. Nesse sentido, a honra afigura-se mais conformada a valores que, pela sua excelência imanente [ἐνυπαρχόν], não requerem qualquer critério extrínseco de apreciação ou de avaliação visto que é graças àqueles que todos os actos podem ser considerados como bons e, nesse sentido, dignos de elogio ou, em termos públicos, de louvor [ἐγκώμιον]. Esta distinção, que parece emergir de modo um tanto ao quanto deslocado do presente contexto interpretativo, revela-se, contudo, decisiva para o desenvolvimento da filosofia prática de Aristóteles tendo em conta a subsequente e gradual focalização da teorização ética no limiar crítico da modelação decisionária. Com efeito, é justamente através da distinção entre acto elogiável e acto honrável que é introduzida na reflexão praxiológica do Estagirita a crucial distinção entre as coisas que dependem de nós, ou seja que estão ao nosso

467 A aspiração a um fim não depende de escolha própria [trad. altern. por si/em si mesma], mas deveria, como no caso da visão, encontrar-se já detida [subent. pelo próprio] quer para discernir correctamente, quer para escolher o bem de acordo com a verdade, pois um ser bem dotado é aquele que já se apresenta belamente provido disso [= dessa faculdade]: com efeito isso é o que há de mais excelente e formoso e que de modo algum pode ser adquirir ou aprender de outro, mas que o conservará de acordo com a sua manifestação espontânea, pois o encontrar-se bem e belamente provido disso constituirá a sua perfeita e verdadeira índole: ARIST., EN, III, 5, 1114b 5-12

alcance [ἐφ' ἡμῖν], e as que estão fora do nosso raio de acção, ou seja que não dependem de nós [μὴἐφ' ἡμῖν]. Vale a pena convocar a passagem da Ethica Nicomachea onde, não a propósito do elogio [ἔπαινος] da virtude [ἀρετή], mas do seu correlato oposto, a censura [ἐπιτίμησις] do vício [κακία]468, ocorre essa decisiva diferenciação ética de planos

È mÒnn d' afl t∞w cx∞w kak¤ai •kÊsi¤ efisin, éll' §n¤iw ka‹

afl tË s≈matw, Âw ka‹ §pitim«men: t›w m¢n går diå fÊsin afisxr›w Ède‹w §pitimò, t›w d¢ di' égmnas¤an ka‹ ém°leian. ım¤vw d¢ ka‹ per‹ ésy°neian ka‹ pÆrvsin: Èye‹w går ín Ùneid¤seie tfl“ fÊsei µ §k nÒs µ §k plhg∞w, éllå mçlln §leÆsai: t“ d' §j finflg¤aw µ êllhw éklas¤aw pçw ín §pitimÆsai. t«n dØ per‹ tÚ s«ma kaki«n afl §f' ≤m›n §pitim«ntai, afl d¢ mØ §f' ≤m›n Î. efi d' Ïtv, ka‹ §p‹ t«n êllvn afl §pitim≈menai t«n kaki«n §f' ≤m›n ín e‰en.469

A ideia-chave do excerto parece assentar na tese de que os actos humanos só são merecedores de elogio [ἔπαινος] ou de louvor [ἐγκώμιον] na medida em que puderem ser reconduzíveis ao horizonte alcançável do agente, e não porque são justificáveis a partir de uma apreciação exógena de capacidades ou feitos sobre- humanos. Ora, é justamente na percepção do limiar ôntico daquilo que é humanamente alcançável que a acção traduz, do ponto de vista metafísico, uma potência [δύναμις], cuja actualização [ἐντελέχεια]470 se expressa não numa actividade perfeita, i.e.

468 Vide a propósito o incisivo estudo de MOLINE Jon, «Aristotle on Praise and Blame», in Archiv für Geschichte der Philosophie 71 (1989) 3, 283-302

469 Não são apenas os vícios da alma que são voluntários, mas também, nalguns casos, os do corpo, motivo pelo qual os censuramos. Na verdade, ninguém censura os que são feios por natureza, mas os que o são devido à falta de exercício e ao desleixo. O mesmo acontece com debilidade e as deformações físicas: ninguém reprovará o que é cego de nascimento ou <subent. que assim ficou> na sequência de uma doença ou de um golpe, mas antes terá compaixão dele; todavia ao que <subent. ficou cego> devido à embriaguez ou a outro excesso qualquer, todos o censurarão. Assim, no tocante aos vícios do corpo censuram-se os que dependem de nós; mas não de modo algum os que não dependem de nós. Se assim for, também em tudo o mais os vícios censurados dependerão de nós.: ARIST., EN, III, 5, 1114a 21-31

470 Cf. GRAHAM Daniel, «The etymology of entelekheia», in The American Journal of Philology 110 (1989) 1, 73-80

terminada e concluída [τέλειον], mas, por mais paradoxal que isso pareça, no aperfeiçoamento poiético de uma actividade [ἐνέργεια] explicitada em obra

[ἔργον].471

Partindo então do princípio de que o exame genérico da virtude se confina aos limites da virtude propriamente humana [ἀνθτρωπίνη ἀρετή], parece óbvia a confluência entre ética e psicologia, se por “psico-logia” [ψυχή /λόγος] entendermos um estudo dos seres dotados de alma traduzido, aristotelicamente falando, numa ontologia do ser vivente, i.e. animado.472 Como se manifesta tal interconexão? Vale a pena escutar Aristóteles, no contexto da Ethica Nicomachea:

l°getai d¢ per‹ aÈt∞w ka‹ §n t›w §jvterik›w lÒgiw érkÊntvw ¶nia, ka‹ xrhst°n aÈt›w: Ân tÚ m¢n êlgn aÈt∞w e‰nai, tÚ d¢ lÒgn ¶xn. [...] tË élÒg d¢ tÚ m¢n ¶ike kin“ ka‹ ftik“, l°gv d¢ tÚ a‡tin tË tr°fesyai ka‹ aÎjesyai: [...] taÊthw m¢n Ôn kinÆ tiw éretØ ka‹ Èk ényrvp¤nh fa¤netai [...], §peidØ t∞w ényrvpik∞w éret∞w êmirn p°fken. ¶ike d¢ ka‹ êllh tiw fÊsiw t∞w cx∞w êlgw e‰nai, met°xsa m°nti p˙ lÒg. tË går §gkratËw ka‹ ékratËw tÚn lÒgn ka‹ t∞w cx∞w tÚ lÒgn ¶xn §painËmen: Ùry«w går ka‹ §p‹ tå b°ltista parakale›: fa¤netai d' §n aÈt›w ka‹ êll ti parå tÚn lÒgn pefkÒw, ˘ mãxetai ka‹ éntite¤nei t“ lÒgƒ. [...] ‡svw d' Èd¢n ∏ttn ka‹ §n tª cxª nmist°n e‰na¤ ti parå tÚn lÒgn,

471 Cf. BLAIR George, Energeia and Entelecheia: “Act” in Aristotle, Ottawa: University of Ottawa Press, 1992; CHUNG-HWAN Chen, «The relation between the terms energeia and entelekheia in the philosophy of Aristotle», in Classical Quarterly (London) 52 (1958) 12-17; AUBRY Gwenaëlle, «Dunamis et energeia dans l’éthique aristotélicienne. L’éthique du démonique», in L’excellence de la vie. Sur L’ "Éthique à Nicomaque" et L’"Éhique à Eudème" d’Aristote, dir. par Gilbert ROMEYER DERBEY, Paris: Vrin (2002) 75-94; BRADSHAW David, Activity, Actuality and Energy: “Energeia” in Aristotle and Later Greek Philosophy [Dissertatio], Austin: University of Texas, 1996

472 Cf. SHUTE Clarence, The Psychology of Aristotle. An Analysis of the Living Being, New York: Russel and Russel, 1964; ROBINSON Daniel, Aristotle’s Psychology, New York: Columbia University Press, 1989; GRANGER Herbert, Aristotle’s Idea of the Soul, Dordrecht - Boston: Kluwer, 1996; Des CHENE Dennis, Life’s Form: Late Aristotelian Conceptions of the Soul, Ithaca (N.Y.): Cornell University Press, 2000; acerca dos precedentes arcaicos da “psicologia” na cultura literária grega, vide SIMONDON Michèle, La mémoire et l’oubli dans la pensée grecque jusqu’à la fin du Ve siècle avant J.-C.: psichologie archaïque, mythes et doctrines, Paris: Les Belles Lettres, 1982, e sobretudo De ROMILLY Jacqueline, «Patience, mon cœur»: l'essor de la psychologie dans la littérature grecque classique, Plon: 1994

§nantiÊmenn tÊtƒ ka‹ éntiba›nn. [...] lÒg d¢ ka‹ tËt fa¤netai met°xein, Àsper e‡pmen: peiyarxe› gËn t“ lÒgƒ tÚ tË §gkratËw - ¶ti d' ‡svw eÈhk≈terÒn §sti tÚ tË s≈frnw ka‹ éndre¤: pãnta går ımfvne› t“ lÒgƒ. fa¤netai dØ ka‹ tÚ êlgn dittÒn. tÚ m¢n går ftikÚn Èdam«w kinvne› lÒg, tÚ d' §piymhtikÚn ka‹ ˜lvw ÙrektikÚn met°xei pvw, √ katÆkÒn §stin aÈtË ka‹ peiyarxikÒn: [...] tÚ d' Àsper tË patrÚw ékstikÒn ti.473

O supramencionado excerto sai, aliás, reforçado no cotejo com um passo da Ethica Eudemia onde manifestamente se sugere que:

§peidØ dÊ m°rh t∞w cx∞w, ka‹ afl éreta‹ katå taËta diπrhntai, ka‹ afl m¢n tË lÒgn ¶xntw dianhtika¤, œn ¶rgn élÆyeia, µ per‹ tË p«w ¶xei µ per‹ gen°sevw, afl d¢ tË élÒg, ¶xntw d'ˆrejin (È går ıtiËn m°rw ¶xei t∞w cx∞w ˆrejin, efi meristØ §st¤n).474

473 Alguns aspectos acerca da alma já foram suficientemente referidos nas lições exotéricas, e são-nos úteis agora também; por exemplo, que uma parte da alma é irracional [lit. sem razão = privada de