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O horizonte ergonómico do bem prático: do uso finalístico dos meios à realização mediacional dos fins

A VIDA PRÁTICA NO TEXTO DE ARISTÓTELES

1. Praxiologia e mediedade

1.2. O desafio ético e cívico da Felicidade

1.2.3. O horizonte ergonómico do bem prático: do uso finalístico dos meios à realização mediacional dos fins

Não podendo ser equiparado a uma pura forma [ἰδέα] unitária ou universal, mesmo quando esta assume o estatuto noético de condição de possibilidade, a noção aristotélica de bem rompe em definitivo com uma vinculação puramente eidética414 para passar a ligar-se, desta feita, à modelação da forma [μορφή // εἶδος] dos princípios racionais na matéria [ὕλη] da facticidade contingente em vista de um fim

[τέλος] cuja aperfeiçoabilidade prática deve inerir a todos os actos humanos. É justamente nessa base que Aristóteles sugere em que medida o bem “em/por si mesmo” [καθ' αὐτό] constitui o fim último do designado τὸ πρακτόν, ou seja no

horizonte exequível e realizável415 de uma obra [ἔργον] cuja razão de ser se determina no impulso zetético para a felicidade [εὐδαιμονία], tomada esta como τῶν ἀνθρώπῳ πρακτῶν ἂριστον [o melhor das coisas realizáveis pelo homem]416. Uma vez mobilizado pela tensão ergonómica de um aperfeiçoamento em aberto, mais do que potenciado pelo requisito metafísico de uma perfeição essencial, o agir humano parece responder de forma plena ao desafio de demarcação mesótica em face da

dúplice possibilidade de conceber o bem nos limites extremos quer de uma

413 Cf. FINE Gail, On Ideas. Aristotle’s Criticism of Plato’s Theory of Forms, Oxford: Clarendon Press, 1993; FIGUEIREDO Maria José, O PERI IDEÔN e a Crítica Aristotélica a Platão, Lisboa: Colibri, 1996

414fanerÚn ˜ti Îte ≤ fid°a tégayË tÚ zhtÊmenn aÈtÚ tÚ égayÚn §st¤n, Îte tÚ kinÒn [é evidente que o bem em si que procuramos não é nem a ideia de bem nem <o bem entendido como> comum: ARIST, EE, I, 8, 1218b 7-8].

415 Cf. Ibid., I, 8, 1218b 9 416 Cf. Ibid., I, 7, 1217a 39-40

equivocidade de travo sofístico, quer de uma univocidade de feição eleático-platónica. Segundo o Estagirita, a honra [τιμή], o prazer [ἡδονή] e, em certa medida, a

inteligência [νοῦς] e própria virtude [ἀρετή], não constituem fins [τέλη] sobre- determinados por um “Bem em si” [τἀγαθόν], mas antes “bens determinados” [ἀγαθόν τι] em vista [τὸ οὗ ἕνεκα] da felicidade [εὐδαιμονία].417 Se em Platão é a prática fundada num Bem que nos torna finalmente felizes, em Aristóteles, por seu turno, é a felicidade que se deve converter finalisticamente num supremo bem prático [πρακτὸν ἀγαθόν]: esse bem é supremo não porque o seu fim está “acima” ou para “além” dos outros bens, mas porque necessita de outros fins para ser visado na sua finalidade imanente [ἐνυπαρχόν]. Tal opção explica a razão pela qual o bem prático aristotélico, longe de ser definido como um género separado, é reconduzido a

uma identidade multipolar e proporcional de diferentes significações em torno de uma significação focal.418 É essa focalização polissémica que assegura a composição e a estratificação hierarquizada dos diferentes bens em relação a um fim supremo e arquitectónico, embora ela não permita ainda esclarecer que supremo bem é esse que se consubstancia na felicidade. O problema é detectado por Aristóteles na Ethica Nicomachea com a indicação preventiva de que o seu esclarecimento δεῖ ὑποτυπῶσαι πρῶτον [deve sujeitar-se a um esboço prévio]419. A respectiva e subsequente tematização só se estabilizará, em nosso entender, pelo recurso a uma formulação de tipo mediacional a partir do qual se clarifica a efectiva conexão entre supremo bem

e felicidade.

A exigência praxiológica de coadunar um uso teleológico dos “meios” a uma

determinação eudemónica dos “fins” no quadro de uma modelação mediacional,

levanta, todavia, uma dificuldade de monta. Na verdade, o modelo tecno-poiético, que

417 Cf. PURINTON Jeffrey, «Aristotle’s definition of happiness (NE 1.7, 1098a 16-18)», in Oxford Studies in Ancient Philosophy 16 (1998) 259-297; HAIR Howard, Pourquoi l’éthique? La voie du bonheur selon Aristote, Paris, L’Harmattan, 2003

418 O sentido metafísico dessa convergência focal dos bens encontra uma chave interpretativa no estimulante estudo de Marco Zingano intitulado «Dispersão categorial e metafísica em Aristóteles», in ZINGANO Marco, Estudos de Ética antiga, São Paulo: Discurso Editorial, 2007, 521-548; no que concerne à textura metafísica da noção aristotélica de bem, vide RYAN Eugene, The notion of good in books alpha, beta, gamma and delta of the Metaphysics of Aristotle, Copenhagen: Munksgaard, 1961 419 ARIST., EN, I, 7, 1098a 20

subjaz quer à execução de uma arte pericial [τέχνη] quer à realização de uma

produção criativa [ποίησις], manifesta claramente em que medida o bem coincide com o aperfeiçoamento finalizado de uma determinada obra ou acção [ἔργον τι καὶ πρᾶξις]420. Apesar de tudo, partindo do princípio de que o bem [τἀγαθόν], segundo Aristóteles, incarna num agir bem [εὖπράττεῖν] concomitantemente tomado como belo e bom [καλός κ' ἀγαθός], permanece ainda por esclarecer até que ponto:

1. existe uma “perfeição” inerente ao homem;

2. a acção humana repercute ou não um finalismo natural de que a execução tecno-poiética parece constituir paradigma evocador.

Reescrevendo a dificuldade de outro modo: como acomodar um sentido ergonómico de “aperfeiçoamento” incarnado no dinamismo in fieri de uma finalidade aberta ao princípio onto-teleológico de uma “perfeição” determinada na natureza finalizada da functio de cada ser? Poderá a natureza conceder ao reino humano da liberdade o que para si própria não consente como necessidade inviolável? Até que ponto a aparente incompletude finalística do agir não colocará a nu uma espécie de indeterminação da própria ordem natural, desafiando aquele proverbial adágio segundo o qual ἡ δὲ φύσις οὐδὲν ποιεῖ μάτην [a natureza nada faz em vão]421? Por que razão o olho, a mão e o pé haveriam de possuir uma actividade perfeitamente finalizada à escala funcional e orgânica, e, ao invés, a acção do ser humano que a incorpora encontrar-se desprovida desse inelutável ditame natural?

Importa, portanto, determinar e tipificar o fim próprio do homem, caso se pretenda identificar o bem supremo a partir do qual se perspectiva a felicidade do ser naturalmente tendente para ela. A exigência nada tem, aliás, de original: com efeito, já na Res publica de Platão nos deparamos com idêntica conexão argumentativa a propósito da questão axial do diálogo, a saber εἰ δὲ καὶ ἄμεινον ζῶσιν οἱ δίκαιοι

420Ibid., I, 7, 1097b 26

τῶν ἀδίκων καὶ εὐδαιμονέστεροί εἰσιν [se a vida dos justos é melhor e mais feliz do que a dos injustos]422. Tivesse ou não recebido tal influxo hermenêutico423, o certo é que Aristóteles confere à problematização da felicidade uma matização diferente da que assimilou do magistério académico do seu mestre.

Para o Estagirita, a delimitação eudemónica da esfera ética do bem implica um prévio escalonamento das faculdades humanas cuja diferenciação se espelha nos múltiplos níveis de vida que a alma proporciona na sua complexidade. Dispensando não só a comparência do nível vegetativo [φυτικός], que nada acrescenta, aliás, à diferenciação do homem face aos restantes seres vivos (todos dotados de uma faculdade de nutritiva [θρεπτικήν] e de crescimento [αὐξητικήν] como também a do nível afectivo [παθητικός]424, também ele comum a todos os seres vivos dotados de uma faculdade sensitiva [αἰσθητική]425, Aristóteles centra a sua análise praxiológica naquilo que designa de <sub. ζωή> πρακτική τις τοῦ λόγον ἔχοντος [uma espécie de <vida> prática do ser dotado de razão]426. Descontando o facto de o acusativoλόγον introduzir no referido vector sintagmático uma indesejável

ambivalência [ἀμφιβολία] quanto ao valor semântico do segmento genitivo

τοῦ ... ἔχοντος – ou seja saber se se trata de um ser “sujeito à razão” ou de um ser

“utente da razão” –, o importante a reter é que a faculdade detida, a razão [λόγος], seja assumida na sua condição finalizada de acordo com o modelo geral da perfeição inerente a cada ser natural: apenas a partir dessa base teleológica estável é possível definir, de um ponto de vista praxiológico, o “próprio” do homem como “actividade racional da alma”.

Tomada como excelência, a virtude decorre não de uma imitação [μίμησις] da lei da natureza [φύσις] mas de uma realização criativa [ποίησις] da acção cujo

422 Cf. PLAT., R., I, 352 d ss.

423 A conjectura é alvo de uma cuidadosa análise histórico-filosófica in SPARSHOTT Francis, «Aristotle’s Ethics and Plato’s Republic. A structural comparison», in Dialogue 21 (1982) 483-499 424 Cf. ARIST., De an., II, 12, 424a 17 – b 18

425 Cf. Ibid., II, 1, 412b 25 ss.; 2, 413b 5 ss., 12 ss.; 4, 416b 12 ss.; GA, II, 6, 744 b 34-36 426Idem, EN, I, 7, 1098a 3-4

aperfeiçoamento, longe de lhe denunciar uma condição deficitária ou deficiente, completa ontologicamente a sua dimensão finalizável. Lançando mão precisamente de uma analogia poiética ligada à execução musical da cítara, Aristóteles mostra em que medida a arte da cítara pode ser desdobrada finalisticamente em dois planos: a que decorre κιθαριστοῦ μὲν γὰρ κιθαρίζειν, σπουδαίου δὲ τὸ εὖ [de um citarista tocar

cítara, e a do bom citarista tocar bem]427. A partícula εὖ, cuja valência semântica configura a dimensão tecnicamente valorizada da acção “bem conseguida” ou “bem- sucedida”, é o pivot morfossintáctico sobre o qual recai a função hermenêutica de articular os conceitos de virtude [ἀρετή] e de bem [ἀγαθόν] com o conceito de

obra [ἔργον], assinalando à acção humana a vocação teleológica à “sobre- excedência” de um aperfeiçoamento. Não poderia ser mais pertinente e incisivo, a este propósito, o reparo de Paul Ricoeur segundo o qual «(...) la transition entre les visées limitées des pratiques (métiers, genres de vie, etc…) et la visée de la vie bonne est assurée par le concept médiateur de l'ergon, de la tâche — qui oriente une vie humaine considérée dans son intégralité. La tâche d'être homme déborde et

enveloppe toutes les tâches partielles qui assignent une visée de bonté à chaque pratique. Quant au dénombrement de ces excellences de l'action que sont les vertus, il ne doit pas barrer l'horizon de la méditation et de la réflexion; chacune de ces excellences découpe sa visée du bien sur le fond d'une visée ouverte magnifiquement désignée par l'expression de la vie bonne ou mieux du vivre bien; cet horizon ouvert est peuplé par nos projets de vie, nos anticipations de

bonheur, nos utopies, bref par toutes les figures mobiles de ce que nous tiendrions pour les signes d'une vie accomplie. (...)».428

É claro que a escolha do conceito de obra [ἔργον] para validar a nossa pretensão de perspectivar a ética aristotélica a partir de uma matriz ergonómica

levanta algumas dificuldades do ponto de vista estritamente etimológico e, ipso facto, do ponto de vista da exegese filosófica. De facto, seria, no mínimo, temerário, ignorar

427Ibid., I, 7, 1098a 11-12

428 RICOEUR Paul, «Éthique. De la morale à l’éthique et aux éthiques», in http://www.philo.umontreal.ca/documents/cahiers/Ricoeur_MORALE.pdf, 5 [vide Ibid., in Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale, dir. par Monique CANTO-SPERBER, Paris: PUF, 2001, 580-584]: destacado nosso.

ou rejeitar liminarmente esse risco interpretativo, risco a que, aliás, o próprio Aristóteles se expôs ao admitir a profunda ambivalência que dilacera a significação do termo em causa:

tÚ ¶rgn l°getai dix«w. t«n m¢n gãr §stin ßterÒn ti tÚ ¶rgn parå tØn xr∞sin, Ân fikdmik∞w fik¤a éll' Èk fikdÒmhsiw ka‹ fiatrik∞w Íg¤eia éll' Èx Íg¤ansiw Èd' fiãtresiw, t«n d' ≤ xr∞siw ¶rgn, Ân ˆcevw ˜rasiw ka‹ mayhmatik∞w §pistÆmhw yevr¤a. Àst' énãgkh, œn ¶rgn ≤ xr∞siw, tØn xr∞sin b°ltin e‰nai t∞w ßjevw. — tÊtvn d¢ tËtn tÚn trÒpn divrism°nvn, l°gmen ˜ti <taÈtÚ> tÚ ¶rgn tË prãgmatw ka‹ t∞w éret∞w, éll' Èx …saÊtvw. Ân skttmik∞w ka‹ skteÊsevw ÍpÒdhma: efi dÆ t¤w §stin éretØ sktik∞w ka‹ spda¤ skt°vw, tÚ ¶rgn §st‹ spda›n ÍpÒdhma. tÚn aÈtÚn d¢ trÒpn ka‹ §p‹ t«n êllvn.429

Ora, partindo do princípio de que o termo ἔργον tanto pode significar “função”, como ainda “trabalho”, “obra”, “tarefa”, seja-nos permitido descartar liminarmente a acepção funcionalista430 e sugerir, ao invés, uma concepção

operática de eticidade.431 Nesse caso, isso significa que o agir em que o homem se

429 O termo obra pode ser referido num duplo sentido; há aqueles casos em que uma obra existe independentemente do seu uso (por exemplo, a obra da construção de edifícios é uma casa e não

propriamente o acto de construir; a da medicina é a saúde e não o acto de tratar ou curar); e há, por outro lado, aqueles casos em que o uso coincide com a obra (por exemplo, a obra do olho é o acto de ver; a da ciência matemática é a contemplação). Assim, nos casos em que o uso se identifica com a obra, o uso é necessariamente melhor do que o estado. Uma vez estabelecidas estas distinções, dizemos que a obra de uma coisa equivale à da virtude, ainda que não da mesma forma; por exemplo, uma sandália é obra onde converge a arte do sapateiro e o respectivo exercício. A existir, portanto, uma certa virtude da arte de fazer sapatos e do bom sapateiro, a sua obra é o bom sapato. E o mesmo se aplica aos restantes casos.: ARIST., EE, II, 1, 1219a 13-18

430 Vide a propósito LAWRENCE Gavin, «Human Good and Human Function», in KRAUT Richard (ed.), The Blackwell Guide to Aristotle's Nicomachean Ethics, op. cit., 37-75

431 Se restituída ao seu subsolo etimológico, a noção de “função” encontra-se demasiado hipotecada à acepção jurídico-administrativa romana de fungor [= “desempenhar um cargo”, “cumprir uma incumbência” (muito raramente “alimentar alguém”)] para poder acomodar convenientemente a conotação operante ou operativa que Aristóteles pretende visar na utilização do termo grego ἔργον. Por isso mesmo, mantemos sérias dúvidas quanto à tendência mais ou menos generalizada para, no presente contexto hermenêutico, traduzir ἔργον por “função” (em vez de “obra” ou até mesmo “operação”), como sucede, por exemplo, na tradução de António CAEIRO [vide ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, Lisboa: Quetzal, 2004, 91, not. 47], na de Dimas de ALMEIDA [vide

ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 50] nas de Julio PALLÍ BONET [vide Ética Nicomáquea. Ética Eudemia, introd. Emilio LLEDÓ IÑIGO trad. y not. Julio PALLÍ BONET, Madrid: Gredos, 1985, 167] e de Julián MARÍAS y María ARAUJO, ao traduzi-lo por “función” [vide Ética a Nicómaco, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1989, 8] e possivelmente na de Franz DIRLMEIER, ao traduzi-lo por “eigentümliche Leistung”, na acepção autocentrada de “prestação”, “rendimento”, “desempenho” [vide Nikomachische Ethik, Übersetzt und kommentiert von Franz DIRLMEIER, Bd. 6, in ARISTOTELES WERKE in deutscher Übersetzung, Begründet von Ernst GRUMACH, herausgegeben von Hellmut FLASHAR, Berlin: Akademie-Verlag Berlin: Akademie-Verlag, 1956 (2003)], em sentido diverso ao de um conjunto apreciável de traduções que captam, em nosso entender, o sentido mais “aberto” e “criativo” de uma realização exigido pelo alcance ergonómico do termo, como acontece, por exemplo, com a de David ROSS, revista por James URMSON, ao traduzir ἔργον por “work” [vide Nicomachean Ethics, in THE COMPLETE WORKS OF ARISTOTLE, ed. Jonathan BARNES, op. cit., 1747 (apesar de J. Barnes caucionar a tradução do termo como “function” no General Index da edição, 2477)], de Harris RACKHAM, ao traduzi-lo igualmente por “work” [vide The Nicomachean Ethics, in ARISTOTLE, XIX, London – Cambridge (MA): The Loeb Classical Library – Harvard University Press, 1934, 93], de Jules TRICOT, ao traduzi-lo por “oeuvre” [vide Éthique à Nicomaque, Paris: Vrin, 1959, 104] e de René-Antoine GAUTHIER e Jean-Yves JOLIF ao traduzi-lo por “tâche” [vide L’Éthique à Nicomaque, Louvain – Paris: Publications Universitaires de Louvain – Éditons Béatrice Nauwelaerts, 1970]. A propósito dessa dimensão operativa da virtude, não se estranha, aliás, que

S. Tomás de Aquino, citando a definição de virtude de Pedro Lombardo obtida pela mediação textual S. Agostinho [cf. AUGUSTINUS, Retractationes, c. 9. n. 3; Idem, De libero arbitrio, II, c. 18. 19.], refira na quaestio 55 da II Pars da Summa Theologiae que Virtus est, sicut ait Augustinus, bona qualitas mentis, qua recte vivitur, et qua nullus male utitur, quam Deus solus in homine operatur [a virtude é, como refere Agostinho, uma boa qualidade da mente, pela qual se vive rectamente, e da qual ninguém faz mau uso, apenas na medida em que Deus opera no homem [cf. PETRUS

LOMBARDUS, Sententiae II, d. 27, a. 2., in Sententiarum Quatuor Libri: Liber Secundus Sententiarum (De rerum Creatione et formatione corporalium et spiritualium et aliis pluribus eo pertenentibus), Distinctio XXVII., Cap. VI. De gratia, quae liberat voluntatem, si virtus est, vel non (textus latinus apudSancti Bonaventurae Commentaria in Quatuor Libros Sententiarum [I-IV: 1882- 1889]: vol. II, 1885, 649-652, in Sancti Bonaventurae Opera Omnia Edita studio et cura PP. Collegii a S. Bonaventura,, Ad Claras Aquas <Quaracchi>, Vols. I-XI, 1882-1902]. Apesar de formalmente correctas, as definições de Agostinho e de Pedro Lombardo carecem, pelo seu confinamento teológico, de outros ingredientes igualmente relevantes para uma teoria da acção de alcance ético, motivo pelo qual o Aquinate procura reconfigurá-las, concedendo primazia à definição aristotélica de virtude [cf. ARIST., EN, II, 6, 1106b 36 – 1107a 2: passo explicitado in THOMAS AQUINATIS, Summa Theologiae, II-II, q. 47 a. 5; também Idem, Priora Super Sent., lib. 3 d. 33 q. 1 a. 2.]. Seguindo a lição do Estagirita, o insigne pensador medieval concebe as virtudes como resultado do exercício de disposições estáveis e uniformes (hábitos), cujo aperfeiçoamento culmina na apropriação de uma

faculdade operativa teleologicamente orientada para uma vida boa. Entendem-se assim as clássicas

definições tomistas de virtude, formuladas lapidarmente como habitus operativus, segundo as quais virtus humana non importat ordinem ad esse, sed magis ad agere. <...> Unde virtus humana, quae est habitus operativus, est bonus habitus, et boni operativus [a virtude humana não releva da ordem do ser, mas sim da do agir. <...> Daí que a virtude humana, sendo um hábito operativo, ela é bom hábito, e também produtora de bem (= de boas obras): THOMAS AQUINATIS, Summa Theologiae, Ia- IIae, q. 55, a.2. <...> a. 3.]; o destacado é nosso. Quando Aristóteles faz uso do termo ἔργον, este já comporta em grego uma dupla significação conexa: por um lado incorpora o sentido actividade, entendida na acepção laboral de “trabalho” ou “tarefa”, e por outro, o resultado final da mesma. Quando vertido para a língua latina, o termo ofereceu protagonismo à dimensão jurídico- administrativa de cargo ou função e secundarizou a acepção remanescente, desdobrando a sua originária acepção laboral em dois registos semânticos autónomos, a saber opus (actividade) e operatio (resultado): é certo que, do ponto de vista do desenvolvimento histórico-pragmático da linguagem, a perspectiva jurídico-burocrática e administrativa de “cargo” e “função” assumiu quer o matiz psicomoralista de um “desempenho comportamental”, quer a ressonância biofisiologista de um “desempenho orgânico”, acabando por esbater e eclipsar gradualmente a índole mais ética da

realiza como tal já não é encarado como “papel” ou “cargo” a desempenhar a título de incumbência, mas enquanto tarefa a realizar como vocação, vocação essa que Aristóteles vislumbra eudemonicamente plasmada na resposta humana ao apelo do

λόγος.432 É, aliás, nesse contexto logóico que Aristóteles poderá clarificar em que consiste o carácter específico da obra humana [ἔργονἀνθτρώπου], recorrendo à sua consagrada definição de ψυχῆς ἐνέργεια κατὰ λόγον [actividade da alma de acordo com a razão (= reflexão)]433. Assim sendo, a felicidade identificar-se-ia com a realização de um conjunto de actividades reflexivas próprias do homem, no suposto de que tais capacidades reflexivas se recortem nas múltiplas actividades e saberes tecno- poiéticos (artesanais, artísticos e retóricos), práticos (éticos, económicos e políticos) e

primordial acepção laboral de “tarefa” e “obra”; todavia, é precisamente esta última acepção que, em nosso entender, parece subsistir no quadro mental em que Aristóteles se move culturalmente: cf. a propósito INNERARITY Carmen, «La comprensión aristotélica del trabajo», in Anuario Filosófico (Pamplona) 23 (1990) 2, 69-108; MONDOLFO Rodolfo, «Trabajo y conocimiento según Aristóteles», in Imago Mundi (Buenos Aires) 1 (1953) 1, 14-22. Acerca dos problemas inerentes à tradução de noções terminologicamente complexas no contexto da ética aristotélica, cf. GOTTLIEB Paula, «Translating Aristotle’s Nicomachean Ethics», in Apeiron 34 (2001) 1, 91-99.

432 Mais do que traduzível imediatamente por “razão”, o termo λόγος pode ser traduzido, neste contexto específico, por “pensamento” ou, melhor ainda, por “reflexão”. Enraizado no nicho etimológico de λέγω / λέγειν [ler-contar-narrar / colher-contar-calcular], o termo associa discursivamente um leque policromático de significações que vai da palavra dita ou comunicada ao cálculo formalizável. Para Aristóteles tal estatuto discursivo constitui um componente-chave da sua antropologia política, começando por ocupar um lugar de destaque precisamente no contexto da “vida prática”: lÒgn d¢ mÒnn ênyrvpw ¶xei t«n z–vn: ≤ m¢n Ôn fvnØ tË lphrË

ka‹ ≤d°w §st‹ shme›n, diÚ ka‹ t›w êlliw Ípãrxei z–iw (m°xri går tÊt ≤ fÊsiw aÈt«n §lÆlye, tË ¶xein a‡syhsin lphrË ka‹ ≤d°w ka‹ taËta shma¤nein éllÆliw), ı d¢ lÒgw §p‹ t“ dhlËn §sti tÚ smf°rn ka‹ tÚ blaberÒn, Àste ka‹ tÚ d¤kain ka‹ tÚ êdikn: [só o homem, de entre todos os animais, possui a palavra; assim, enquanto a voz assinala dor ou prazer, e nesse sentido ela constitui também atributo dos outros animais (cuja natureza também faculta sensações de dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para exprimir o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto: ARIST., Pol., I, 2, 1253a 9-15]. A tradução de λόγος por “razão” torna-se, por conseguinte, não só muito controversa e discutível, como até insustentável se por “razão” se entender aquela conotação de faculdade certeira e infalível que, desde a modernidade cartesiana [cf. DESCARTES René, Méditations Métaphysiques, AT, IX, 13-26] ainda hoje lhe está subjacente; seguindo uma pertinente sugestão hermenêutica de Franz Dirlmeier [cf. tradução comentada in ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, Berlim, 1999 (10ª ed), 279], melhor será, em nosso entender, colocar λόγος na proximidade quer de λογίζεσθαι quer de λογισμός

(richtiger Plan; rationales Element; erwägende Reflexion), cujas acepções semânticas incorporam significados como “reflectir”, “calcular”, “estabelecer regras”, etc.; outros reputados tradutores e comentadores de Aristóteles seguem uma tendência análoga, como sucede com René-Antoine Gauthier (calcul; règle moral) e com Jonathan Barnes (reason; discours; language; calcul): vide infra Anexo 3: Catálogo lexicográfico, 866

lógico-teoréticos (naturais, formais e teológicos).434 Qualquer que seja o tipo de vida prática humana, o ἔργον do homem encontra-se assim tutelado pela mediação de