• Nenhum resultado encontrado

A desconstrução aristotélica da ideia platónica de Bem

A VIDA PRÁTICA NO TEXTO DE ARISTÓTELES

1. Praxiologia e mediedade

1.2. O desafio ético e cívico da Felicidade

1.2.2. A desconstrução aristotélica da ideia platónica de Bem

A conexão “triádica” entre bem [εὖ], belo [καλός] e bom [ἀγαθός] equacionada no subcapítulo anterior a propósito da análise dos modos de vida eticamente elegíveis343 implica forçosamente uma tomada de posição sobre o grau de impacto que a noção de “bem” possui no âmbito mais vasto da reflexão praxiológica de Aristóteles. Deixemos ao Estagirita a tarefa de erguer o pano dessa delimitação conceptual:

tÚ d¢ kayÒl <subent. égayÒn> b°ltin ‡svw §pisk°casyai ka‹ diapr∞sai p«w l°getai, ka¤per prsãntw t∞w tiaÊthw zhtÆsevw ginm°nhw diå tÚ f¤lw êndraw efisagage›n tå e‡dh. dÒjeie d' ín ‡svw b°ltin e‰nai ka‹ de›n §p‹ svthr¤& ge t∞w élhye¤aw ka‹ tå fike›a énaire›n, êllvw te ka‹ filsÒfw ˆntaw: émf›n går

arménien, entre le VIe et le VIIIe siècle, (…) puis du syriaque en (…) deux versions arabes, (…) datant l’une du IXe siècle et l’autre du XIe siècle. Robert Grosseteste en donne une traduction latine qui sera utilisée para Albert le Grand et Thomas d’Aquin, (…) et plusieurs fois traduit et réimprimé, du XVe au XVIIIe siècle. (…) Quant à la question qui justifie l’opuscule – comment se définissent les états auxquels il convient d’adresser des élogues et les états contraires ? – elle fait littéralement écho à un passage de la Rhétorique [not. 12. Rhét. I, 9, 1366a 33 – b 22]. Ces élements ne sufisent assurément pas à étayer l’hipothèse de l’authenticité du traité. Ils tendent paradoxalement à favoriser deux hipothèses concurrentes: a) une appartenance au cercle des primiers successeurs du Stagirite; b) une édition plus tardive, mais soucieuse de privilégier des thèmes authentiquement aristotéliciens. (…) Le traité De la vertu constitue en tout cas un témoignage très intéressant du legs que la philosophie morale a laissé au monde grec et, à travers lui, à ses lecteurs modernes et contemporains. Il relève d’un aristotélisme vulgarisé, populaire, compatible avec les grandes orientations morales du platonisme et du stoïcisme, mais il proclame à sa manière une vérité essentielle de la philosophie pratique d’Aristote: la moral est d’abord une étique de l’action et des vertus. Avant d’être un modèle de vie parfaite, ou l’observance d’une règle, elle est un entraînement à l’action bonne et une éducation continuelle du caractère ou tempérament: l’èthos. (…) Il faut qu’il soit exercé [not.

13. Voir Eth. Nic., II, 1, 1103a 14-18]. (..) Nous ne pouvons en remettre, dans la pratique, à une norme unique et immuable. On perçoit dés lors tout l’avantage que présente un système de définitions concrètes des vertus et des vices: produire ce que nous pourrions appeler des réflexes moraux susceptibles d’accompagner la délibération, (…) dans lequel chaque terme a fonction d’exemple (paradeigma) [note 15. Vide Eth. Eud., II, 3, 1220b 36 sq.].»: MOREL Pierre-Marie, «Introduction» au De la vertu [Pseudo-Aristote], trad. Pierre-Marie MOREL, in AA.VV., «Aristote. Ontologie de l’action et savoir pratique», in Philosophie 73 (2002) 3-5; destacado nosso.

ˆntin f¤lin ˜sin prtimçn tØn élÆyeian.344

Para o objectivo da presente dissertação, interessa-nos sobretudo ressalvar no excerto em que medida a desconstrução da hipótese teórica de um Bem “em-si”, cuja proveniência Aristóteles atribui a Platão e respectivos seguidores na Academia na paráfrase (porventura irónica?...) “aqueles homens que introduziram as ideias” [ἄνδρας εἰσαγαγεῖν τὰ εἴδη], configura o preludial limiar ético de uma forma decisionária de acção que consiste precisamente em decidir-se pela verdade, ou

seja decidir que βέλτιον εἶναι <...> ἐπὶ σωτηρίᾳ γε τῆς ἀληθείας [é melhor estar <...> com a integridade da verdade], antes mesmo de decidir fazer alguma coisa ou

de escolher entre qualquer coisa, incluindo uma afinidade electiva por alguém.345

Assim, embora Aristóteles lance mão da noção de “bem universal” [τὸ καθόλου ἀγαθόν] para, em última análise, sujeitar a teoria platónica do Bem a

344 Melhor seria examinar o <subent. bem> universal e, de igual modo, perguntar o que isso quer dizer. Ainda que tal investigação se torne custosa, por serem amigos aqueles homens que introduziram <o estudo d>as ideias, afigura-se, porém, tanto melhor quanto necessário estar do lado da integridade da verdade e abdicar das ligações pessoais, tanto mais quando, ainda por cima, se é amigo da sabedoria [= filósofo]. Sendo ambas [= amizade e verdade] estimáveis, é <para nós> dever sagrado honrar a verdade: ARIST., EN, I, 6, 1096a 12-17

345 O inciso traz-nos imediatamente à memória o celebérrimo Amicus Plato, sed magis amica veritatis [Platão é amigo, mas muito mais amiga é a verdade] cuja expressão textual comparece pela primeira vez com essa exacta formulação em três das Vitae de Aristóteles: VM 28; VV 9; VL 28. O seu significado, embora passível de múltiplas interpretações, conserva, em nosso entender, um sentido claro: o de que não se trata de preferir a amizade pela verdade à amizade por Platão, numa perspectiva meramente psicológica, mas de conceder primazia, de um ponto de vista ontológico, à radical e originária índole amistosa da própria verdade como horizonte inclusivo das demais formas de amizade por alguém. A expressão não é, por conseguinte, utilizada por Aristóteles para desconsiderar ou subestimar o seu mestre, ao contrário do que parece suceder, por exemplo, com Sinésio de Cirene que, com imaginativo anacronismo, a devolveu nesses exactos termos a Platão, criticando-o por atribuir a Sócrates, na Res publica (cf. PLAT., R., X, 595 b-c), uma expressão similar relativamente a Homero [cf. SYNESIUS, Epistulae, 154]. De qualquer forma, encontramos no diálogo Phaedon, do mesmo Platão, o curioso inciso σμικρὸν φροντίσαντες Σωκράτους, τῆς δὲ ἀληθείας πολὺ μᾶλλον [preocupando-se pouco com Sócrates e muito mais com a verdade: cf. PLAT., Phd., 91c] de onde provém a redacção do referido provérbio que a tradição neoplatónica tanto prezava e difundia, denunciando o desejo, típico de alguns expoentes dessa corrente (v.g. Plotino de Licópolis, Plutarco de Queroneia, Siriano de Alexandria, etc.), em harmonizar Platão e Aristóteles por via da tradução, do comentário ou de um ecletismo doutrinário. Depois dos neoplatónicos, a versão vingou até ao séc. XV, altura em que o humanista Nicolau Leoniceno [professor de medicina em Padova, Bologna e Ferrara, que colaborou activamente na elaboração das editio princeps das Opere di Aristotele (1495-98) e Opere di Galeno (1525)] nela substituiu o nome de Sócrates pelo de Platão, alteração essa posteriormente assumida, v.g. por Miguel de Cervantes no seu aclamado Don Quixote [cf. CERVANTES Miguel de, Don Quixote de la Mancha, c. 51] e por Martinho Lutero no seu polemizante De servo arbitrio [cf. LUTHERUS Martinus, De servo arbitrio, 18, 610].

um teste de resistência346, importa talvez não ceder em demasia à tentação hermenêutica de vislumbrar nesse exame um qualquer obscuro pretexto do Estagirita para desferir um ataque mortífero à teoria das ideias formulada pelo seu mestre. Quer dizer: mais do que obstrutiva ou destrutiva, a posição do Estagirita é crítica ou desconstrutiva. Não se trata tanto, por conseguinte, de inviabilizar “o” Bem [τἀγαθόν], submetendo-o a uma demolidora refutação, mas de discernir em que medida a ideia de “supremo bem” [ἀγαθτὸς μέγιστος] pode ser perfeitamente compatível com a noção ética de “um certo bem” [ἀγαθόν τι] cujo horizonte se determina não apenas em relação com o que é bom [εὖ] e belo [καλός], como também, em termos absolutos, em relação com o que se afigura de “melhor”

[βέλτιον] à luz de uma graduação comparativa ou superlativa. Ora, em nosso entender, tal concepção de bem possui uma inteligibilidade interna de recorte

nitidamente hilemórfico, ou seja

1. encontra-se, por um lado, dotado de uma forma [μορφή] suficientemente modeladora para assumir uma extensão universal [καθόλου], mas não necessariamente abstracta para atingir um estatuto auto-referencial e separado face às circunstâncias a que se liga;

2. encontra-se, por outro lado, dotado de uma matéria [ὕλη] suficientemente moldável para assegurar um vínculo comum [κοινός], mas não necessariamente casuístico para se encontrar sujeito à deriva fortuita e instável do acaso ou de cada veleidade individual.

É no acto decisionário que, de acordo com a nossa perspectiva, esta aristotélica concepção hilemórfica de bem atinge a sua mais eloquente expressão ontológica. Escolher implica sempre exercer (1) uma determinação inteligível em

face do que se encontra formalmente ao dispor da razão, mas também, e por isso

mesmo, (2) uma delimitação empírica em face do que se encontra materialmente

ao alcance do pé e da mão (que pode não coincidir necessariamente com o que se

pretende visar no alcance do olho...): apenas sob tutela ontológica desta espécie de

346 Cf. a propósito SANTAS Gerasimos, «The form of the Good in Plato’s Republic», in Revue Internationale de Philosophie 40 (1986) 97-114

composto hilemórfico [σύνολον] é que se percebe por que razão continua válida a

intuição de que, em termos de decisão ética, “melhor” é sempre “possível”, mas que, ainda assim, “o melhor possível” será sempre possivelmente o melhor [τὸ βέλτιον].

Num certo sentido, poderemos sempre discutir se a reconfiguração aristotélica da noção de “bem” corresponde, de facto, àquilo que Platão realmente disse e defendeu347, ou até se, em suspeição hermeneuticamente mais contundente, Aristóteles terá “percebido” mesmo “bem” o que o seu mestre lhe ensinou.348 Mas também pode muito bem suceder que a nossa fértil imaginação retrospectiva, ansiosa por legitimar interpretações pro domo sua em face de um determinado mainstream cultural, tente domesticar a criação hermenêutica de dois autores na base de um guião pré-definido no qual nenhum deles se revê ou reconhece. Na obra Reler Platão, António Pedro Mesquita oferece-nos algumas pistas que tornam legítima, e até desejável, tal precaução hermenêutica, ao desmontar alguns clichés ligados à filosofia platónica, sobretudo os que historicamente obscureceram e desfiguraram para além do razoável problemas tão matizados e complexos como 1. a separabilidade do mundo noético

das ideias349, 2. a compatibilidade das ideias entre si350 e 3. a superlatividade do Bem enquanto princípio an-hipotético351. Ora, qualquer um dos três vectores apontados apenas confere luminosidade às nossas expectativas hermenêuticas, sejam elas de índole diletante, opinativa ou académica, enquanto reportados às noções

347 Cf. BODÉÜS Richard, «Aristote et Platon. L’enjeu philosophique du témoignage des biographes anciens», in Revue de Philosophie Ancienne 4 (1986) 107-144; GADAMER Hans-Georg, L’idée du Bien comme enjeu platonico-aristotélicien [Suivi de: Le savoir pratique], trad. par Pascal DAVID et Dominique SAATDJIAN, Paris: Vrin 1994; SHOREY Paul, What Plato Said, Chicago-London, The University of Chicago Press, 1933

348 Cf. a propósito o audacioso estudo de HOUSE Dennis, «Did Aristotle understand Plato?», in Dionysius 17 (1999) 7-25

349 Cf. MESQUITA António P., Reler Platão. Ensaio sobre a teoria das ideias, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1995, designadamente os parágrafos dedicados ao “sentido da ideia e a relação ideias/particulares como problema”, onde aborda a questão da «separação» das ideias quer de um “ponto de vista histórico-filosófico” [§21, 101-105], quer “no contexto da filosofia platónica” [§22, 105-110].

350 Cf. Ibid., op. cit., especialmente o parágrafo que aborda “a compatibilidade e a relativização da ideia”: §75, 311-315

351 Cf. Ibid., op. cit., em particular o Apêndice IV, intitulado “O princípio an-hipotético e a doutrina platónica do Bem”: 378-380

platónicas de relação352, de diferenciação e de comunidade353. É na rede conceptual formada por essa tríade de noções que se entende não só a diferenciada participação [μέθεξις]354 com as ideias [ἰδέαι]355 quer por parte dos entes

matemáticos [μαθήματα] presentes no “espaço” inteligível [τόπος νοητός], quer por parte dos seus simulacros naturais ou artificiais [φυσικά / σκευαστά] e respectivos reflexos imagéticos ou sombrios [εἴκωνες / σκίαι] presentes no

“espaço” sensível [τόπος ὀρατός], mas também a relacional coesão [κοινωνία]356 quer das ideias entre si357 quer das ideias enquanto relacionalmente referidas ao

352 Sobre a incidência e o porte relacional da ideia, cf. DIÈS Auguste, Autour de Platon. Essai de critique et d’histoire, II, Paris: G. Beauchesne, 1927, 506 ss.

353 Cf. Ibid., MESQUITA António P., Reler Platão. Ensaio sobre a teoria das ideias, op. cit., sobretudo os parágrafos sobre “A relação – problema fundamental da ontologia platónica” [§69, 285-287]; sobre “O processo do saber como diferenciar: didÒnai lÒgn” [§73, 301-307]; e sobre “A kivn¤a como suposto do diferenciar sapiencial: seu significado ontológico” [§74, 308-311].

354 O emprego platónico de μέθεξις, pelo menos no seu uso técnico (já que o termo na sua forma substantiva não comparece nos diálogos médios), encontra-se atestado em PLAT, Prm., 130c – 131a; 132d; 151e; Phd., 99d – 102a; Smp., 208b – 211b; R., V, 472c – 478e; para uma clarificação sobre a natureza e o alcance da teoria da participação, designadamente no que concerne à sua índole predicativa, cf. ALLEN Reginald E., «Participation and Predication in Plato’s Middle Dialogues», in Philosophical Review 69 (1960) 150; sobre o impacto da doutrina da participação em contexto aristotélico, vide sugestivo estudo de PHILIPPE Marie-Dominique, «La participation dans la philosophie d’Aristote», in Revue Thomiste (Toulouse) 49 (1949) 254-277

355 Cf. GOLDSCHMIDT Victor, Les dialogues de Platon. Structure et méthode dialectique, Paris: PUF, 1947, 18; para uma perspectivação do dinamismo ontológico das ideias; cf. PATTERSON Richard, «On the Eternality of Platonic Forms», in Archiv für Geschichte der Philosophie 67 (1985) 27-46; acerca da relação eidética entre transcendência e imanência, cf. ROSS David, Plato’s Theory of Ideas, Oxford: Clarendon Press, 1951, 228 ss.

356 Cf. PLAT., Phd., 65 a; 100d; Sph., 250 b – 264 e; sobre outras ocorrências de κοινωνία, cf. Idem, Plt., 276 b; 283 d – 285 b; Prm., 152 a; 166 a; Phl., 25 e; Smp., 182 c; 188 c; 209 c; La. 180 a; 197 e; 507 e; 508 a; HpMi., 374 e; R., 333 b; 343 d; 371 b; 402 e; 449 c – 450 c; 461 e – 466 c; 466 d – 476 a; 531 d; 556 c; 611 c; Ti., 46 a; 60 d – 61 c; 87 e; Lg., 636 c – 640 a; 694 b – 695 d; 729 c, 771 e – 773 d; 783 b; 796 a; 805 a – 805 d; 828 d; 833 d – 834 d; 844 d; 861 e; 881 e; 921 c; 967 e; 969 b 357 Cf. ACKRILL John L., «SmplkØ efid«n», in Bulletin of the Institute of Classical Studies of the University of London 2 (1955) 31-35; sobre a perspectiva mais específica de uma comunidade eidética ou das formas, cf. CHERNISS Harold, The Riddle of Early Academy, New-York: Russell and Russell, 1962, 51 ss.; STEFANINI Luigi, Platone, II, Padova: Antonio Milani, 1949, 196 ss.; 332 ss.; CORNFORD Francis M., Plato’s Theory of Knowledge. The Theaethetus and the Sophist of Plato translated with a running commentary, London: Routledge and Kegan Paul, 1935, 252 ss.; KUCHARSKI Paul, Aspects de la speculation platonicienne, Paris: B. Nauwelaerts, 1971, 263; 342 ss.; BURNET John, Greek Philosophy. Part I: Thales to Plato, London: Macmillan, 1914, 282 ss.

Bem358 do seu originário e unificador fundamento an-hipotético359. Tal interacção de componentes e de níveis, encontra-se, a nosso ver, narrativamente plasmada no diálogo Res publica, numa espécie de epopeia gnosiológica (através dos níveis de conhecimento) e antropológica (através das faculdades da alma) que procura assegurar o continuum ontológico da trilogia alegórica da luz [φῶς]360, da linha [γραμμή]361 e da caverna subterrânea [ἐν καταγείω σπήλαιον]362 através da imaginação dialéctica de uma participação gradativa, diferenciada e integrada de todos os seres no ser da realidade toda363. Nessa urdidura holística (mais do que totalística), é fácil perceber até que ponto haverá que abdicar dos cómodos rótulos de idealismo, dualismo, comunismo, totalitarismo e utopismo com que obstinadamente se continua a etiquetar a filosofia de Platão364, tendendo a esquecer 1. o lastro ontologicamente realista da ideia e a tensão realizadora da dialéctica365; 2. o horizonte analogicamente diferenciado da unidade das partes da alma com a das classes sociais correspondentes

358 Cf. CHERNISS Harold, Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy – vol. I, Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1944, 279-288

359 Para uma abordagem mais consistente da doutrina platónica do Bem a partir dos primeiros diálogos, vide SHOREY Paul, The Unity of Plato Thought, Chicago: The University of Chicago Press, 1903, 78-82; revela-se precioso, neste contexto, o estudo de SANTAS Gerasimos, «The form of the Good in Plato’s Republic», in Revue Internationale de Philosophie 40 (1986) 97-114; cf. também, a propósito, STEFANINI Luigi, Platone, I, op. cit., 249 ss.; ROSS David, Plato’s Theory of Ideas, op. cit., 39 ss.

360 Vide Anexo 5: Figurações platónicas da mediação: 880-884 361 Vide Anexo 5: Figurações platónicas da mediação: 885-892 362 Vide Anexo 5: Figurações platónicas da mediação: 894-907

363 Acerca da estrutura gradativa da ontologia platónica, cf. VLASTOS Gregory, Platonic Studies, Princeton: Princeton University Press, 1981, 58-75. Para a visualização gráfica da dialéctica nos seus diferentes entrelaçamentos vide nosso Anexo 5: Figurações platónicas da mediação: Esquemas 3, 4, e 5, 892 ss. No que concerne ao distanciamento crítico de Aristóteles face às teses eidéticas expostas pelo seu mestre no diálogo Res publica, vide MAYHEW Robert, Aristotle’s Criticism of Plato’s Republic, Lanham: Rowman and Littlefield, 1997

364 Acerca dos equívocos e ambivalências na interpretação dualizante da filosofia platónica, cf. o esclarecedor estudo de De VOGEL Cornelia, «Was Plato a Dualist?», in Idem, Rethinking Plato and Platonism, Leiden: Brill, 1986, 206-212

365 Cf. CHEVALIER Jacques, Histoire de la pensée. I: La pensée antique, Paris: Flammarion, 1955, 637; como complemento, vide também MOREAU Joseph, Réalisme et idéalisme chez Platon, Paris: PUF, 1951, 3

e respectivas virtudes366; e sobretudo 3. a geminação daqueles dois passos da Res publica em que se mostra como apesar de se apresentar como ὀδὸν ... τραχεῖα καὶ χαλεπή [um caminho ... áspero e difícil]367, o percurso dialéctico é apresentado como οὐκ ἄρα ἀδύνατά γε οὐδὲ εὐχαῖς ὅμοια [não impossível de todo, nem tão-pouco semelhante a uma utopia]368: quer dizer, Platão desnivela de tal modo a valência semântica dos termos “difícil” e “impossível” que qualquer confusão entre eles redundará em contrafacção hermenêutica muito pouco rigorosa e crítica, para não dizer errática e desleal, face ao sentido originário que do texto se recolhe.

Ora, o modo como Aristóteles procede quer relativamente à filosofia mais próxima e coeva do seu mestre369 quer no tocante às filosofias mais da tradição pré- socrática370 ou até mesmo no que concerne às filosofias de contextos culturais mais afastados e remotos371, tem apenas em vista um peculiar e eficaz método de

366 Cf. PLAT., R., IV, 433 a – 436 a

367 Ibid., I, 328 e; vide, em cotejo complementar, o diálogo Hippias maior onde Platão cunha o conhecido e profusamente citado tÚ xalepå tå kallã [o que é belo é difícil]: Idem, HpMa., 304 e 368Ibid., V, 456b. Seguimos neste passo a tradução de Maria Helena ROCHA PEREIRA, embora o alcance semântico do termo eÈxÆ se encontre, na sua origem, muito mais próximo da conotação religiosa de termos como “voto”, “súplica”, “prece”, “invocação”, “promessa”, do que propriamente com o sentido projectivo ou prospectivo subjacente a “utopia”. Seja como for, percebe-se perfeitamente a conexão íntima entre a atitude animada pela invocação religiosa e a sedução exercida por um desígnio inatingível ou ilocalizável [mais rigorosamente denominável de “a-topia”] ou mesmo propulsionada por uma possibilidade de realização [mais propriamente designável por “u-topia”], sentido que subscrevemos preferencialmente por se inscrever melhor no sentido de “possibilístico” da filosofia platónica, e não pelo sentido “a-tópico” a partir do qual se pretende habitualmente apodar aquela de utópica.

369 Cf. DÜRING Ingemar, «Aristotle and the heritage from Plato», in Eranos 62 (1964) 84-99; FRANK Erich, «The Fundamental Opposition of Plato and Aristotle», in American Journal of Philology 61 (1940) 34-53, 166-185

370 Acerca do modo como Aristóteles “leu”, “apropriou” e “desconstruiu” os pressupostos das filosofias precedentes na maior parte dos seus tratados, cf. CHERNISS Harold, Aristotle criticism of Presocratic Philosophy, New-York: Octagon Books, 1976; MANSION Suzanne, «Le rôle de l’exposé et de la critique des philosophies antérieures chez Aristote», in Aristote et les problèmes de méthode. Communications présentées au Symposium Aristotelicum, ed. Suzanne MANSION, Louvain – Paris: Ed. Béatrice Nauwelaerts (1961) 35-56 [reed. in Études aristotéliciennes. Recueil d’articles, ed. Suzanne MANSION, Louvain – Paris: Ed. Béatrice Nauwelaerts (1984) 55-76]

371 Sobre esta matéria revelam particular interesse, dado o seu carácter inesperado e original, os estudos de Anton-Herman Chroust, designadamente no que concene ao impacto da influência oriental no pensamento grego em geral e no platónico-aristotélico em particular: vide CHROUST Anton- Herman, «The influence of zoroastrian teachings on Plato, Aristotle, and greek philosophy in general», in The New Scholasticism (Washington) 54 (1980) 342-357; LACROSSE Joachim, «La philosophie

investigação que procura não destruir mas evidenciar a insuficiência ou inadequação das soluções existentes372 para, a partir daí, moldar o nicho onde a sua interpretação adquire recuo crítico para uma adequada aproximação ao problema visado. Uma coisa nos parece ser certa: independentemente dos seus mais inconfessáveis intuitos hermenêuticos, a estratégia de leitura de textos filosóficos adoptada por Aristóteles nada tem a ver com aquilo que “nós” hoje “pensamos” e “dizemos” da filosofia platónica, por alegada mediação aristotélica e, posteriormente, treslida quer pela tradição tardo-helénica e helenística373 quer pela medievo-renascentista.374 Quer isto dizer que o texto aristotélico não pode ser usado como reforço hermenêutico de uma espécie de “história subliminar” das desfigurações interpretativas da filosofia platónica

grecque à l’épreuve de l’Inde et de la Chine», in Idem (ed.), Philosophie comparée: Grèce, Inde, Chine, Paris: Vrin, 2005, 7-20, bem como a interessante análise desenvolvida por Christian Froidefond sobre os influxos da civilização egípcia na tradição cultural grega, in FROIDEFOND Christian, Le mirage égyptien dans la littérature grecque d’Homère à Aristote, Gap: Ophrys, 1971

372 Nesse sentido, como explicita A. P. Mesquita, «se é manifestamente impossível contestar a Aristóteles um conhecimento privilegiado do pensamento platónico, é outrossim manifestamente abusivo esperar dele um relato desprovido de pressupostos, i.e., daquelas condições que caracterizam o pensar aristotélico na sua diferença em relação ao pensar platónico, principalmente quando é justamente no interior daquele pesar e, mais do que isso, do seu processo de constituição que este último é convocado para ilustrar determinadas soluções para comuns problemas, que, por uma razão ou por outra, o filósofo considera inadequadas e por isso desejava patentear nessa inadequação mesma. E, nesta medida, se a Aristóteles devemos conceder a genuinidade dos relatos – seja, no caso, a