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A delinquência como expressão de falhas vividas no desenvolvimento

Em “Tendências criminosas em crianças normais”, Klein (1927/1996) apresenta as bases psicodinâmicas envolvidas no comportamento delinquente, esclarecendo que a diferença entre a criança “normal” daquela mais pré-disposta a uma personalidade antissocial deve-se à intensidade das fixações sádicas, ao desenvolvimento do superego, à capacidade de suportar a ansiedade e de tolerar o sentimento de culpa, bem como à relação destes fatores interligados na história de vida da criança. Destaca que o elemento norteador da delinquência não é a falta de superego, mas a menor evolução dessa instância psíquica, fixada em estágio precoce do desenvolvimento. Caracterizando-se pelo sadismo, o superego mais primitivo promove ansiedade e culpa difíceis de suportar, o que induz à busca da transgressão, como forma de minimizar esses sentimentos através das retaliações do ambiente. Partindo da analogia entre alguns atos criminosos e as fantasias infantis observadas em sua prática clínica, Klein (ibid) aponta a delinquência como um caminho de obtenção de alívio mental para uma culpa e ansiedades intoleráveis para um ego imaturo, caracterizando um círculo vicioso onde a necessidade de castigo instiga os atos de destrutividade.

Considerando a agressividade como uma tendência inata, relacionada à pulsão de morte, Klein (1933/1996), descreve a conexão causal entre os medos da criança e suas tendências agressivas, evidenciando a luta egoica contra as forças mortíferas atuantes no psiquismo. A constituição de um superego violento e sádico em seu estágio mais primitivo deve-se justamente ao deslocamento de uma grande quantidade de impulsos agressivos para essa instância, como forma de proteção intrapsíquica. A ansiedade despertada por essa sobrecarga de agressividade, todavia, é percebida como temor de um objeto externo, uma vez que a criança emprega o mecanismo de projeção de seus impulsos sádicos. Daí o círculo vicioso identificado no comportamento antissocial, mobilizado pela ansiedade que impele a destruir os objetos, aumentando os temores e incitando novos ataques. À medida que o superego modifica seu caráter sádico, suavizam-se seus efeitos sobre o ego e a intensidade dos mecanismos de defesa empregados, gerando menos ansiedade e abrindo um caminho para a constituição de uma atitude moral, através de tendências de reparação mobilizadas pela culpa subjacente aos danos imaginários infligidos aos objetos.

As contribuições kleinianas sobre a compreensão dos comportamentos antissociais podem ser identificadas na obra de Winnicott, apesar das modificações importantes do ponto de vista teórico. Para Winnicott (1939/1987), a agressividade

constitui uma força que originalmente faz parte do apetite primário do bebê, ou seja, sua voracidade. Com o tempo, os elementos agressivos do apetite passam a ser isolados pela criança e mobilizados quando ela sente a necessidade de combater a realidade externa sentida como má. Ela poderá usufruir dos impulsos agressivos e convertê-los em ações criativas/construtivas no plano da realidade externa, dependendo do estado do seu mundo interior. A presença de esperança no mundo interno possibilita as atitudes reparatórias, enquanto a destrutividade sentida como excessiva e intolerável instiga a necessidade de colocá-la para fora, para que seu controle seja exercido pelo ambiente. Neste mesmo trabalho, o autor (ibid) adverte contra ambientes sentimentalistas, afirmando que eles estão imbuídos de uma negação da destrutividade subjacente a qualquer tipo de produção, levando a criança a expressar diretamente sua agressividade, ao invés de fazê-lo indiretamente, mostrando desejo de construir.

No clássico artigo sobre o desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott (1945/1993) indica a existência de três processos inerentes à constituição das bases da saúde mental: integração, personalização e realização. O autor afirma que a integração começa logo no início da vida, quando os primeiros cuidados propiciam ao bebê uma reunião de experiências, tanto próprias (seus estados de sono e de vigília, por exemplo), quanto externas a ele (rosto, sons e cheiros associados à figura materna). A personalização consiste no desenvolvimento do sentimento de que se está dentro do próprio corpo. Ela surge a partir da constância de cuidados, que possibilita repetidas e tranquilas experiências de atendimento às necessidades corporais do bebê, apaziguando a experiência pulsional (estados de excitação). A realização diz respeito ao estabelecimento de uma relação primária com a realidade externa, baseada inicialmente no fenômeno da ilusão. Trata-se da experiência vivida juntamente com a mãe, quando esta se apresenta para atender às necessidades do bebê justamente no momento em que ele alucina/cria o objeto de sua satisfação. Ainda neste artigo, o autor (ibid) apresenta o conceito de crueldade primitiva, postulando que o início do desenvolvimento caracteriza-se por uma relação de objeto cruel, evidenciada no jogo da criança normal com a mãe. Sem a possibilidade de brincar cruelmente com a figura materna, afirma Winnicott (ibid), a criança precisa ocultar este aspecto do self, deixando-o vir à tona em estados de dissociação, que podem emergir em algumas formas de delinquência na infância.

Ao tratar dos aspectos psicológicos da delinquência juvenil (Winnicott, 1946/1987), o autor retoma a ideia de que os estágios iniciais do desenvolvimento estão repletos de conflitos e desintegração potencial. Relembra que a relação com a realidade

externa também não está consolidada e a criança ainda não aprendeu a tolerar as experiências pulsionais, particularmente os propósitos destrutivos do amor primitivo. Ela precisa de um ambiente amoroso, tolerante e forte para não sentir medo excessivo de seus próprios pensamentos e imaginação. A delinquência plenamente desenvolvida, para o autor (ibid) reflete a necessidade aguda deste ambiente mais firme, observando- se justamente a demanda por uma figura paterna rigorosa e severa, que permita ao jovem recuperar seus impulsos primitivos de amor, seu sentimento de culpa e o desejo de corrigir-se.

Cabe lembrar que no início da vida este ambiente amoroso e continente é representado pela figura materna, cuja constância de cuidados possibilita a passagem gradual de uma realidade puramente subjetiva para uma realidade objetiva compartilhada. Winnicott (1951/1993) esclarece que neste percurso emerge o uso do objeto transicional, primeira possessão não-eu do bebê (um brinquedo, uma fralda, um cobertor, por exemplo). Este objeto não pode ser considerado interno, nem externo, razão pela qual precisa ser mantido sob o controle do bebê, sendo excitadamente amado ou mutilado, mudando suas características apenas pelo resultado das ações da criança. O objeto transicional só existe e tem valor para a criança se puder interiorizar um objeto interno suficientemente bom. Este, por sua vez, depende da qualidade do objeto externo, isto é, da maternagem propiciada nesta etapa do desenvolvimento. Fracassos na adaptação ativa às necessidades do bebê podem resultar na emergência de uma organização defensiva contra o que é vivido como invasão do ambiente (Winnicott, 1952/1993).

Ao formular o conceito de tendência antissocial, Winnicott (1956/1987) associa mais claramente a manifestação da agressividade infantil às vivências de ruptura no desenvolvimento inicial, postulando que os atos antissociais constituem um pedido, uma reivindicação ao ambiente para que se retorne ao ponto em que houve uma perda, a fim de dar curso ao desenvolvimento interrompido. Seja na mentira, no furto ou nos atos destrutivos, a manifestação da tendência antissocial tem início na família, podendo estender-se à escola, à comunidade e ao “país com suas leis” (Winnicott, 1956/1987, p. 132), numa busca incessante de um ambiente capaz de reconhecer aquilo que faltou e de suprir essa lacuna. A manifestação de comportamentos antissociais, porém, não ocorre o tempo inteiro, mas nos períodos de esperança, quando o meio transmite elementos de confiabilidade, embora nem sempre a criança consiga fazer uso do suprimento ambiental. Quando a tendência antissocial firma-se como defesa organizada,

sobrecarregada de ganhos secundários, tem-se o comportamento delinquente, de difícil manejo e contenção.

Quando o desenvolvimento emocional segue o curso esperado, tem-se um avanço importante em termos da relação com o outro, pela conquista da capacidade de envolvimento (Winnicott, 1963b/1987). A capacidade de se preocupar ou de se importar também depende do quanto os cuidados maternos propiciaram uma experiência de fusão ótima para o bebê, permitindo-lhe a vivência dos impulsos amorosos e agressivos em relação ao mesmo objeto, ao mesmo tempo. Neste artigo, Winnicott (ibid) postula a existência de duas mães que são sentidas pelo bebê, no dia-a-dia de cuidados para com ele: a mãe-objeto e mãe-ambiente. A mãe-objeto é aquela que detém o objeto parcial que satisfaz as necessidades urgentes, enquanto a mãe-ambiente refere-se àquela que afasta o imprevisível e cuida ativamente da criança, dando-lhe conforto em um sentido mais abrangente. Por isso, é a mãe-ambiente quem recebe a afeição da criança, enquanto a mãe-objeto torna-se alvo da experiência de excitação, onde o objeto é usado implacavelmente, sem levar em conta as consequências. A capacidade de envolvimento depende sumamente da integração dessas duas figuras na mente da criança, numa nova experiência de fusão. Para que isso aconteça, a mãe deve permanecer acessível física e psiquicamente, ou seja, sem estar preocupada com outra coisa ao mesmo tempo em que cuida do bebê. A mãe-objeto deve sobreviver ao que Winnicott denomina de “episódios guiados pelo instinto” (1963b, p. 108), que adquiriram a força das fantasias de sadismo oral. A mãe-ambiente, por seu turno, deve continuar empática às necessidades do bebê e, principalmente, aberta e presente para ser agradada, oferecendo o que o autor chama de “oportunidade de dar e de fazer reparação” (1963b, p.109). Para ele, a criança sente angústia pelo temor de consumir a mãe por inteiro, e mesmo de apossar-se dos seus conteúdos. Entretanto, à medida que sente poder contribuir com algo à mãe-ambiente, reduz-se sua ansiedade. Confiando cada vez mais na sua capacidade de dar à mãe- ambiente, a criança consegue dominar sua ansiedade, emergindo daí o sentimento de culpa reparatório. Por isso, quanto mais confiável for a mãe-ambiente em termos de disponibilidade, mais audaciosa pode ser a vivência pulsional do bebê, dadas as oportunidades para a reparação. Com o estabelecimento crescente da confiança no ciclo

benigno de ansiedade-capacidade de dar-oportunidade de reparação, o senso de

culpa se firma como capacidade de envolvimento. A criança torna-se capaz, então, de assumir a responsabilidade por seus próprios impulsos.

Todo este processo é gradual e depende sobremaneira da capacidade materna de identificação com seu bebê, denominada por Winnicott (1963c/1990) de preocupação

materna primária. Ao encontrar-se em um estado de dependência e vulnerabilidade, a mãe se apresenta mais sensível para reconhecer o que a criança está sentindo e atender suas necessidades.

A ausência de um sentimento de culpa (Winnicott, 1966/1987) envolve medo e inibição. Decorre da inconfiabilidade da figura materna, que torna vão o esforço construtivo, levando a criança a inibir-se em seus impulsos devido à intensidade do sentimento de culpa. É esta exigência além de sua capacidade que provoca a reorganização defensiva da criança, despertando-lhe a necessidade de manifestar comportamentos antissociais. Para o autor (1968/1975), a psicopatia constitui justamente o produto final deste processo, quando o indivíduo, em momentos de esperança, busca fazer a sociedade reconhecer a perda de um objeto bom e amado ou de uma estrutura satisfatória.

Além de considerar a agressividade como parte do amor primitivo infantil, Winnicott (1969/1975) lembra sua importância para a aquisição da capacidade de usar o objeto, isto é, reconhecê-lo como fenômeno externo e usufruí-lo na experiência relacional. O autor esclarece que o ataque ao objeto implica dirigir a destrutividade para fora da área de controle onipotente do bebê. Trata-se de uma mudança para o princípio de realidade. Se o objeto sobrevive, pode contribuir para o indivíduo, agora imerso no mundo dos objetos. Percebe-se, mais uma vez, o quanto o autor enfatiza a confiabilidade a ser inspirada pela figura materna ao sobreviver aos ataques do objeto, mantendo-se disponível.

Compreendendo a importância de intervenções precoces com crianças consideradas agressivas a fim de prevenir o comportamento transgressor futuro, Souza (2001) vem desenvolvendo pesquisas nesta área há aproximadamente quinze anos. Os estudos têm comprovado os efeitos da privação emocional em meninos com queixa de agressividade no ambiente escolar (Souza, Soldatelli & Lopes, 1997; Sandri & Souza, 2005) e a repercussão das manifestações da tendência antissocial para o entorno (Souza & Castro, 2005).

Atualmente, a delinquência juvenil vem sendo estudada no conjunto das chamadas patologias do agir, que incluem a passagem ao ato. Com um enfoque de inspiração winnicottiana, dado o olhar sobre a influência das primeiras relações objetais, Jeammet e Corcos (2005) assinalam que a violência das fixações infantis e das construções fantasmáticas retomadas na adolescência dependem não apenas da intensidade (excessiva ou insuficiente) das estimulações ou traumatismos vividos pelo indivíduo, mas da sua força egoica. Nessa perspectiva, enfatizam a qualidade das bases

narcísicas, formadas a partir das primeiras trocas entre a criança e o ambiente. Nesta fase, é preciso que ocorra uma diferenciação lenta e gradual entre sujeito e objeto, garantindo o desenvolvimento de um sentimento de continuidade e segurança interna. Para eles (ibid), os problemas na travessia da adolescência acontecem justamente quando se precisa dominar impositivamente a realidade externa para contrainvestir uma realidade interna que não oferece segurança. Por isso, entendem que a passagem ao ato na adolescência visa restaurar os limites de uma identidade ameaçada pelo próprio desejo e pelas relações objetais internas, ambos experimentados como provenientes do exterior. A realidade também tem seu peso e traz o medo da submissão, que pode conduzir a atitudes de total recusa. Por isso, na busca de autonomia, defesas psíquicas muito primitivas são acionadas por essa parcela de jovens, impedindo uma troca viva com o ambiente, capaz de nutrir, efetivamente, o mundo interno. Pode-se observar também a emergência de um comportamento opositor ou de uma fascinação pelo negativo, que resulta em autodestrutividade.

Marcelli e Braconnier (2007) esclarecem que o agir constitui um importante modo de expressão de conflitos e angústias do adolescente. Contudo, a passagem ao ato implica uma ação quase sempre agressiva, com caráter impulsivo e delituoso, cuja repetição sugere uma conduta patológica. Clinicamente, podem ser encontrados diferentes modos de passagem ao ato – do furto à dependência química – que podem assumir os seguintes sentidos: a) estratégia interativa; b) mecanismo de defesa e c) entrave da conduta mentalizada. O agir como estratégia interativa representa um meio indireto de adquirir, disfarçar ou revelar uma informação a outra pessoa, seja para constrangê-la ou atrair sua atenção. Na interação com outros adolescentes, pode representar uma tentativa de pertencer ao grupo. O agir como mecanismo de defesa pode expressar a necessidade de recuperar um papel ativo que contrabalance a passividade frente às mudanças decorrentes da adolescência. Quando se caracteriza como entrave à conduta mentalizada, o agir evita o sentir, representando uma conduta de fuga. Do ponto de vista dos autores (ibid), a passagem ao ato consiste em uma das consequências da não integração das pulsões libidinais e agressivas, que evita o sofrimento trazido pela ambivalência, mas inibe o psiquismo. Lembram que os adolescentes mais predispostos à passagem ao ato são aqueles que possuem frágil sentido de realidade. E destacam como fatores de proteção contra a passagem ao ato na adolescência: a tolerância à frustração, a capacidade de adiar, a capacidade de deslocamento (sublimação) e o espaço do jogo, este último ameaçado pela invasão

pulsional e a consequente utilização de defesas que podem substituir o ato lúdico por atos sintomáticos (evitação, racionalização, conformismo).

A partir destas referências, percebe-se que há um significativo trabalho psicológico a ser desenvolvido com os adolescentes que infracionam, no sentido de favorecer uma restauração do mundo interno e uma ampliação da capacidade de troca com a realidade externa. Entende-se que a compreensão do fenômeno da assiduidade dos adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa em meio aberto pode contribuir para a revisão dos modos de atendimento hoje adotados, fortalecendo as possibilidades de atuação do psicólogo nesta área.