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CAPÍTULO 04 O PROGRAMA MUNICIPAL DE SAÚDE MENTAL: A

4.1 A demanda para a implantação de um Centro de Atenção

Psicossocial

A construção da demanda para a implantação de um CAPS foi realizada através da busca de dados em arquivos do Hospital Márcio Cunha47, dos formulários de TFD (Tratamento Fora do Domicílio), de Prontuários Médicos da Policlínica, entre outros.

A conclusão do trabalho demonstrou a necessidade de priorizar e melhorar a assistência aos psicóticos e neuróticos graves. O percentual de encaminhamentos para internação em Belo Horizonte era altíssimo, reproduzindo a já conhecida prática manicomial. Os gastos do município eram consideráveis e este não recebia verba específica por não oferecer serviços substitutivos à internação. Mostrou-se a urgência de praticar uma assistência integrada a uma rede social, contar com um CAPS II (Centro de Assistência Psicossocial) na Rede Pública e com o apoio do Pronto Socorro Municipal para atendimento às “urgências ou crises subjetivas” (aquelas em que, devido a sofrimento mental intenso, um sujeito põe em risco a si mesmo ou a terceiros) (D5).

47 Hospital filantrópico, pertencente à fundação da principal empresa da região, a USIMINAS. Até meados da década de 2000, não havia hospital municipal, apenas uma unidade de pronto- atendimento, o Pronto Socorro Municipal. O Hospital Municipal de Ipatinga foi inaugurado recentemente, em 2008, em estabelecimento anexo ao Pronto Socorro Municipal.

Os dois psiquiatras que trabalhavam na Policlínica participaram desta pesquisa e constataram o alto índice de atendimentos e encaminhamentos relacionados à psiquiatria ambulatorial. Tornou-se insustentável a manutenção deste recurso visto a sobrecarga de trabalho dos médicos.

(...) se eu me lembro bem, aproximadamente 1850 prontuários no dispensário da policlínica, no arquivo daquele tempo. 1850 prontuários, de usuários, de pessoas, cidadãos que chegavam ali procurando psiquiatria, ou seja, logo os dois caíram fora. Ajudaram a fazer a pesquisa (...) quando eles viram a dimensão do que eles suportavam, quando caiu a ficha de que tava tudo no ombro deles, e que naquela época eles continuariam sendo os únicos psiquiatras do serviço por um período, aquilo se tornou uma situação insustentável, então eles ajudaram a fazer essa pesquisa, essa triagem, e aí aconteceu um segundo fator precipitante dessa situação toda que foi a saída dos únicos psiquiatras do serviço.

E: Da rede municipal inteira?

A: Da rede municipal inteira. Ipatinga ficou, então, sem referência de atendimento psiquiátrico para portador de sofrimento mental (P1).

Com a ausência da psiquiatria na rede pública municipal e a discussão sobre as primeiras experiências de atendimento a pessoas em sofrimento mental nas UBS, a equipe de saúde mental inicia um momento chave em sua trajetória, fortalecendo os encontros da equipe com o objetivo de se pensar alternativas de assistência em saúde mental que prescindissem da assistência psiquiátrica. “Se nós já pensávamos que o caminho seria a descentralização, a partir disso ficou evidente, ficou evidente né.”(P1).

4.2 Saída da psiquiatria da rede de saúde: em destaque o acolhimento em saúde mental na APS pela psicologia

Eu tenho a impressão que foi nesse momento que em que nós ficamos sem o profissional psiquiatra, e aí nós começamos a pensar em alternativas, e aí as alternativas passavam necessariamente por solidariedade entre nós. Porque se a pessoa fosse ao seu posto de saúde e não encontrasse nada lá, e não encontrasse nada na policlínica, e não encontrasse mínimas condições ela ia nos outros, e nos outros, ela ia rodando. Então necessariamente todos nós começávamos a conhecer as práticas uns dos outros, e todos nós

fomos vendo que aquela saída idílica de se ter rapidamente um CAPS, rapidamente um psiquiatra, e deixar um CAPS, e deixar um psiquiatra era infactível pela rotatividade do trabalho do médico, pela maneira como ele atendia, pelos pressupostos que já não batiam mais com o que a gente conhecia de saúde mental né, os pressupostos de atendimento psiquiátrico isolado (P1).

A solidariedade entre os técnicos da equipe de saúde mental e a conseqüente exploração dos recursos existentes na rede de saúde, em especial os da APS, onde estava lotada a maioria dos psicólogos, se caracteriza como primeiro momento da constituição de um Programa de Saúde Mental. A experiência do “ensaio” serviu como base motivadora à invenção de outros arranjos cotidianos na assistência em saúde mental e à busca de parcerias com profissionais de outras áreas na assistência à pessoa em sofrimento mental.

Um segundo momento marco da constituição do Programa de Saúde Mental se deu com a indicação feita pela diretora do DEASA de entrada de um médico clínico para o atendimento na Policlínica de pessoas em sofrimento mental. Foi nessa época que a equipe estabeleceu internamente a necessidade de uma coordenação geral, função atribuída ao psicólogo, que na década de 1990 já havia representado a equipe em encontros sobre o tema e que protagonizou o “ensaio”. Essa referência permanece ainda hoje, mesmo sem nunca ter havido formalmente o cargo de coordenador em saúde mental na Secretaria de Saúde de Ipatinga48. A primeira atuação da coordenação foi a formalização da referência de clínica médica na Policlínica para os psicólogos das UBS, como uma tentativa de cobrir a falta de um psiquiatra.

Destacando o recurso do profissional psicólogo presente nas UBS do município, a equipe estabeleceu que a demanda por consulta psiquiátrica e psicológica deveria passar primeiramente pelo acolhimento deste profissional. Em outubro de 2001, esta prática já experimentada pela equipe na segunda metade da década de 1990, foi implantada nas UBS e na Policlínica Municipal, marcando a inauguração do Programa de Saúde Mental. Hoje, esse acolhimento existe nas Unidades da APS. O profissional responsável pelo acolhimento é sempre o

48 Durante o segundo semestre de 2008, o tema da formalização do cargo de coordenação da saúde mental junto à administração foi mais intensamente discutido nas reuniões gerais do Programa. A solicitação formal foi endereçada à Secretaria de Saúde em setembro de 2008, porém até abril de 2009 não houve nenhuma resposta da administração municipal.

psicólogo. A prioridade do atendimento deve se voltar aos usuários em “crise subjetiva” e/ou “portadores de sofrimento mental grave”. Estabeleceu-se assim uma tarefa padrão para todos os psicólogos da APS que passaram a oferecer à comunidade um momento aberto de escuta individual e avaliação dos casos.

Segundo relatórios e informes da equipe produzidos na época, inicialmente o acolhimento em saúde mental teve por objetivo: a) receber, tratar e encaminhar as demandas por atendimento em saúde mental na cidade; b) acompanhar cada caso sob sua responsabilidade, monitorando o percurso dos usuários nos vários dispositivos de saúde e identificando aqueles casos que poderiam ser beneficiados com o equipamento CAPS, já encaminhado, na época, para implantação; c) participar da preparação de uma rede de atenção em saúde mental, na época denominada “Rede-CAPS”, com orientação no sentido de estimular a produção de recursos alternativos à internação psiquiátrica.

Ainda hoje não há um consenso conceitual entre os profissionais do que seja o acolhimento em saúde mental na APS. Um dos profissionais mais antigos da rede escreveu sobre o conceito de acolhimento numa publicação local sobre o tema.

Desde a implementação do programa, o tema “acolhimento” tornou- se polêmico entre os membros da equipe. Para uns, o termo definir- se-ia apenas como “triagem”, para outros, teria o sentido de uma “porta-aberta” (que daria acesso livre a todos que demandassem a saúde mental). Há, também, os que usam o termo no sentido da “escuta”, tal como na clínica psicanalítica, ou seja, o usuário, ao ser acolhido, de imediato, seria um sujeito a ser “escutado”. Além dessas acepções, surgem outras conceituações, como: “consulta prévia”, “entrevista inicial”, “estudo do caso”, “primeiro diagnóstico”, “definição do profissional de referência”. Percebe-se que a idéia que se tem, ao usar esse substantivo, é, possivelmente, individual, ou seja, praticamente não há uma coincidência, entre os praticantes do acolhimento, no pensar o “acolher” (CARVALHO, 2004, p. 53).

Na tentativa de “desvendar o conteúdo” do conceito “acolhimento”, o autor mencionado acima propõe uma definição:

ACOLHIMENTO: “O significante significando”. A “porta de entrada”, para quem demandar a “Saúde Mental”, será a UBS na sala de “acolhimento”, que estará de “portas abertas” para receber o

“usuário”, que poderá ser ou não o “paciente”, aquele que será “incluído” no PSM (Programa de Saúde Mental). “Portas abertas”, assim, no plural, simboliza que “há vaga”, que não se corre o risco de “levar a porta na cara”.(...) A generosidade de que o usuário necessita e espera daquela porta é que ela não simbolize um obstáculo. Que seja uma “porta aberta”, ainda que fechada, pois que ali é o lugar em que será recebido e, se preciso “acolhido” – aquele que chegar demandando algo da ordem do mental, algo que se traduza em um mal-estar, em um “sofrimento” (CARVALHO, 2004, p. 54, grifos do autor).

Após o acolhimento feito pela psicologia, os procedimentos que se seguem podem ser diversos, como: a) manutenção do tratamento na UBS/USF pelo profissional do acolhimento e/ou pela equipe de PSF; b) encaminhamento para clínica médica em saúde mental da Policlínica; c) encaminhamento dos casos de “urgência subjetiva”49 que não encontraram resolutividade na APS para CAPS (quando ainda não havia esse dispositivo na rede, os casos eram encaminhados para consulta psiquiátrica50); d) encaminhamento para o “Convênio-Escola” (parceria da Secretaria Municipal de Saúde e Faculdade de Medicina da região) para investigação diagnóstica suplementar; e) encaminhamento dos casos de “emergência subjetiva”51 para Pronto-Socorro Municipal. Os recursos de atendimento existentes são: psicoterapia, terapia medicamentosa, acompanhamento domiciliar pelas equipes de PSF e, eventualmente, pelo psicólogo e oficinas locais para usuários da saúde mental. Nestas oficinas, em sua maioria, são desenvolvidas atividades manuais e acontecem sob referência do psicólogo na UBS. Há a recomendação acordada entre a equipe de que os psicólogos incentivem o trabalho das oficinas em seu território, com o objetivo de otimizar os recursos comunitários, desconstruindo estereótipos com relação ao adoecimento mental. Por ter o potencial de envolver comunidade, familiares, profissionais de saúde e outros equipamentos

49 “Neuroses e psicoses graves de curso instável, estado atual agudo, com isolamento social, mas sem agitação psicomotora intensa ou passagens ao ato destrutivas e/ou agressivas”. Casos como “queixa neurótica ansiosa, depressiva ou somática, em que não se encontre perda significativa do trânsito social ou risco evidenciado de passagem ao ato; transtornos relativos ao processo de ensino- aprendizagem em crianças; demandas por relatório, laudo ou exame psiquiátrico de pacientes que não estejam vinculados ao acolhimento; solicitações de avaliação e acompanhamento psicológico de candidatos a cirurgia” que não teriam prioridade (D2).

50 Poucos meses antes da inauguração do CAPS em 2004, dois psiquiatras foram contratados e realizaram atendimentos ambulatoriais como uma fase transitória ao CAPS.

51 “Neuroses e psicoses de curso instável, estado atual agudo, com exclusão social e agitação psicomotora, passagem ao ato ou agressão e/ou destrutividade” (D2).

sociais e políticos, as oficinas atendem estrategicamente para a mudança cultural necessária em prol da construção da cidadania da pessoa em sofrimento mental.

4.3 A implementação do Programa de Saúde da Família: fortalecimento