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CAPÍTULO 01 SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE:

1.2 A construção da Política de Saúde Mental no Brasil: o movimento pela

1.2.4 Quarto e quinto períodos: 1992 a 2001

O quarto período proposto por Vasconcelos (2000) compreende os anos de 1992 a 1995 e refere-se à expansão dos serviços de atenção psicossocial por todo o país, consolidando a perspectiva da superação manicomial. O quinto período proposto por esse autor refere-se ao intervalo dos anos de 1995 até a publicação de seu trabalho, momento em que inicia a difusão crescente das equipes de saúde da família no país. Apresentaremos aqui os dois períodos numa mesma seção por considerar que as investidas dos dois movimentos em tais períodos – pela desinstitucionalização psiquiátrica e sanitarista – buscaram consolidar simultaneamente a descentralização e territorialização dos serviços, e a integralidade na assistência em saúde.

Até o ano de 1990, vários eventos nacionais e internacionais da saúde mental foram realizados, propondo a discussão ampla, centrada na necessidade de reorganização da rede de serviços e de crítica ao modelo asilar. Entre eles está a Conferência de Caracas, promovida pela OPAS/OMS em 1990 na cidade de mesmo nome, e que teve o Brasil como país participante. A Declaração de Caracas (1990) orientou que a reorganização da assistência psiquiátrica nos países americanos deve estar integrada à Atenção Primária em Saúde e se estabelecer através da implementação de serviços centrados na comunidade. Declarou também que essa reestruturação deve implicar uma revisão crítica do papel hegemômico e centralizador do hospital psiquiátrico na rede de serviços assistenciais.

Em 1992, convocou-se a II Conferência Nacional de Saúde Mental. Fato que chamou a atenção neste evento foi a participação de não-trabalhadores: 20% dos delegados eram representantes dos usuários dos serviços e de seus familiares. O relatório final desta Conferência foi publicado pelo Ministério da Saúde e tomado como diretriz oficial para a reestruturação da atenção em saúde mental no Brasil

(TENÓRIO, 2002). Os marcos conceituais da Conferência foram “Atenção Integral” e “Cidadania”, temas esses que reforçam princípios de um modelo de rede de atenção diversificada, qualificada e territorializada (BRASIL, 1994).

A concretização da integralidade e da cidadania na prática dos serviços substitutivos tem sido buscada através da construção de uma clínica ampliada que englobe o “extraclínico” conforme citado por Tenório (2002), em que a equipe de saúde torna-se agente importante nos novos dispositivos de saúde mental. A clínica amplia-se não apenas no sentido de se ter diferentes especialidades na composição da equipe de referência, mas principalmente pela proposta de se abrir para a escuta da complexidade da vida da pessoa em sofrimento mental. Essa escuta deve considerar também os diversos atravessamentos institucionais, políticos, econômicos e culturais que se dão na relação “trabalhador-usuário de saúde”. Lobosque (2003, p.21), a partir da experiência de trabalho em um CAPS11 de Belo Horizonte propõe que a clínica ampliada seja uma “clínica em movimento”, que se constrói na dimensão do cuidado, da ajuda, da presença. A autora conclui:

A esta ajuda que se pretende exercer sem domínio, dirigidas especificamente àqueles que se encontram, num dado momento, tomados por uma experiência insuportável de sofrimento psíquico; a essa ajuda que se serve quando necessário de disciplinas e saberes psi, da farmacologia à psicanálise, mas sempre subordinando seu emprego a um projeto que não é psiquiátrico ou psicológico, mas político e social; a esta ajuda chamaremos de uma clínica em movimento: uma clínica que não caminha para si mesma, mas se combina e se articula como tudo o que se movimenta e se transforma na cultura, na vida, no convívio entre os homens.

No campo legal, o início da década de 1990 foi marcado pelo lançamento de portarias ministeriais que normatizaram e regulamentaram o funcionamento de um leque de procedimentos ambulatoriais específicos em saúde mental. O procedimento Núcleo de Atenção Psicossocial / Centro de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS) foi aprovado através da Portaria SNAS nº189, de 19 de novembro de 1991. Em seguida, com vistas à regulamentação do funcionamento de todos os serviços de saúde mental, criou-se a portaria SNAS nº 224, de 29 de janeiro de

11 Nesta capital os CAPS são chamados de “CERSAMs” (Centro de Referência em Saúde Mental). O primeiro CERSAM foi inaugurado em Belo Horizonte no ano de 1993.

1992. Esta traz em seu texto, diretrizes e normas para todo o atendimento ambulatorial e hospitalar, acordados entre os coordenadores estaduais em saúde mental na época, e integrada aos princípios determinados pela Lei Orgânica da Saúde de 1990. Estados e municípios introduziram leis que determinaram a criação de novos serviços em saúde mental em seu território, tendo os princípios da Reforma Psiquiátrica vigente como ideal. Destaca-se a legislação mineira: Lei nº 11.802, de 1995 e Lei nº 12.684, de 1997.

Enquanto o movimento da Reforma Psiquiátrica se expandia através do surgimento de novos núcleos da Luta Antimanicomial em congressos e encontros, de organizações de usuários e familiares, da redução de leitos psiquiátricos e do aumento do número de CAPS, o movimento pela Reforma Sanitária prosseguiu em suas proposições, em especial no fortalecimento da Atenção Primária em Saúde.

O Ministério da Saúde, em 1994, criou o Programa de Saúde da Família (PSF). Vale lembrar que já havia a experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), iniciada na região nordeste do país. Buscando garantir a efetivação do princípio da equidade e do uso das informações epidemiológicas, o PSF foi sendo implementado pelos municípios preferencialmente nas regiões mais pobres, áreas cujas principais demandas de saúde estão estreitamente ligadas às condições sociais e econômicas da população.

Incorporando a proposta dos agentes comunitários de saúde, essa estratégia reafirmou os princípios básicos do SUS – universalização, descentralização, integralidade e participação da comunidade – e está estruturada a partir da Unidade Básica de Saúde (UBS). Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde. Os atendimentos são desenvolvidos na UBS, em domicílio e também em outras instituições presentes nas comunidades como escolas, igrejas, entre outras. As atividades realizadas devem ir além dos procedimentos especializados em saúde, como consultas médicas e administração medicamentosa. Busca-se desenvolver atividades sócio-educativas, culturais, políticas, entre outras. Espera-se que esta metodologia de atendimento possa desencadear a criação de vínculos de co-responsabilidade, facilitando o processo de implicação dos sujeitos, profissionais e comunidades, no próprio processo de saúde, na melhoria do atendimento e da qualidade de vida individual e comunitária.

Um dos fundamentos da organização de serviço do PSF, a territorialização, preconiza que cada equipe tem o compromisso estrito com uma comunidade específica. O cadastramento dos usuários, os atendimentos e acompanhamentos devem ser focados para essa população. Partindo desse princípio, os profissionais, para além da coleta de dados epidemiológicos sobre os problemas de saúde e recursos para a solução destes no processo de divisão territorial, devem buscar conhecer a dinâmica social de uma população específica e, a partir daí, desenvolver novas práticas em saúde. Nesta lógica, território é considerado como “processo”, como um “espaço de vida pulsante, de alegrias e conflitos sempre em movimento e que não admite simetrias” (MENDES et al., 1993 apud SILVA et al., 2001, p.149), ultrapassando características geográficas e físicas. O território continuamente se modifica em decorrência de diferentes posicionamentos das pessoas ali envolvidas e de interferências institucionais que fogem ao controle de quem delas participa.

Trazer para a reflexão o conceito de territorialização nos permite pensar práticas em saúde que partem, desde a origem, do próprio mundo apreendido do grupo em destaque, dos elementos que permitem significar este mundo, que tornam o que é coletivo em próprio. Em outras palavras, pensar território é pensar cultura em movimento. Considerando a complexidade do conceito, a proposta do PSF se otimiza quando lança mão da flexibilidade e criatividade no planejamento das ações em saúde, aceitando o desafio de incorporação do “mundo-da-vida”12 das pessoas, mundo capaz de ordenar a realidade do grupo dando sentido à mesma, às práticas programáticas sanitárias. Este desafio exige dos técnicos de saúde do SUS, de maneira particular na prática cotidiana da APS, a superação de práticas estritamente especialísticas, a abertura para o trabalho interdisciplinar, intersetorial e comunitário, numa busca diária pelos “acordos epistemológicos” em campo (LANCETTI, 2001, p. 87).

12 “Este mundo-de-vida es social tanto em sus orígenes como em su conservación: el orden significativo que proporciona a las vidas humanas há sido establecido colectivamente y se mantiene em virtud de um consentimiento colectivo. Para entender plenamente la realidad cotidiana de cualquier grupo humano no basta con entender los símbolos o modelos de interacción propios de cada situación individual. Hay que entender también la estructura global de significación en la que dichos modelos y símbolos particulares están localizados y de la que obtienen el significado que comparten colectivamente” (BERGER, 1979, p. 63).

O SUS incorporou a lógica da clínica ampliada, melhor definida nos anos 2000. Após implementação de uma Política Nacional de Humanização (2004)13, que abrange todos os serviços do SUS, o princípio da integralidade passou a ser reforçado pela recomendação da prática de uma clínica ampliada que se define por:

um compromisso radical com o sujeito doente, visto de modo singular; assumir a RESPONSABILIDADE sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores, ao que se dá nome de INTERSETORIALIDADE; RECONHECER OS LIMITES DOS CONHECIMENTOS dos profissionais de saúde e das TECNOLOGIAS por eles empregadas e buscar outros conhecimentos em diferentes setores (..); assumir um compromisso ÉTICO profundo (BRASIL, 2007, p. 12-13, grifos do autor).

Cunha (2005, p.97), em trabalho específico sobre a construção da clínica ampliada na APS, propõe que a superação das dificuldades da clínica tradicional deve considerar a interligação de dois aspectos. São eles:

(...) em primeiro lugar o reconhecimento dos limites ontológicos dos saberes, em relação à singularidade do Sujeito. Ou seja, todo Saber, também o biomédico, trabalha com uma ontologia, uma generalização, que, como tal, está condenada a ser parcial em toda situação singular – no caso da Clínica, uma certa classificação das doenças em relação ao Sujeito doente. Este nunca será totalmente compreendido por um diagnóstico, por mais amplo que seja, e menos ainda por um diagnóstico de uma lesão orgânica. Este reconhecimento significa a utilização das classificações dentro dos seus limites e não além deles. (...) Em segundo lugar, com base no reconhecimento dos limites do Universal para se compreender o Singular, a Clínica Ampliada procuraria deixar-se tomar pelas diferenças singulares do Sujeito doente, além de outros recortes teóricos, e produziria um projeto terapêutico que levasse em conta essa diferença. Ou seja, o que inicialmente é um limite do saber pode ser transformado em possibilidade prática de intervenção.

13 A Política Nacional de Humanização foi criada em 2004 para operar de maneira transversal em toda a rede pública de saúde, atenção e gestão. Propõe que a humanização deve se tornar uma “vertente orgânica” do SUS, valorizando todos os sujeitos envolvidos no processo de produção de saúde. Os principais conceitos norteadores são: autonomia, protagonismo, co-responsabilidade, criação de vínculos solidários e participação coletiva no processo de gestão. Acesso ao documento- base: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/doc_base.pdf.

Destaca-se aqui a interface de princípios da clínica ampliada na saúde mental e na saúde coletiva em geral, em que as estratégias de cuidado extrapolam aquelas instituídas pelo saber técnico autorizado, e devem considerar o movimento da subjetividade, das relações sociais, das diferenças. O compromisso da clínica ampliada é também político e social, uma vez que concebe a atenção em saúde como espaço de construção de autonomia, emancipação e garantia de direitos.