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A participação política juntamente à garantia de direitos políticos e civis são características da democracia. Esta, por sua vez, se apresenta como um conjunto de normas e princípios próprios, além de contribuir com o seu papel instrumental, ou seja, institucional e burocrático de um Estado de Direito. Logo, a democracia é compatível com a ideia de justiça, isto se considerarmos a teoria proposta por Sen e brevemente explicada adiante.

Ocorre, que a conferencia de Viena no ano de 1993 estipulou a preponderância de um mínimo de condições econômicas e materiais sobre os direitos civis e políticos, considerando o ganho real de renda e a aquisição de bens materiais como um mínimo existencial, sem o qual ninguém pode ter seus direitos minimamente garantidos.

Portanto, é possível dizer que os direitos econômicos e sociais passam a ser preteríveis nesse momento em relação aos direitos políticos e civis, justamente, porque estes já estão presentes, ao menos, formalmente em todos os Estados Democráticos. Não obstante, entende Sen, que a real eliminação e enfrentamento das injustiças não ocorre em todas as sociedades, enfatizando um problema de concretização dos direitos formais pré-estabelecidos.

Nesse sentido, a democracia aceita a participação política, as liberdades materiais e formais, sem as quais democracia não tem efetividade, pois carece de participação cidadã. Assim, democracia não sobrevive sem virtude cívica e efetividade. (SEN, 2000)

Do mesmo modo, prescinde de uma razão pública, ou seja, de diálogos de promoção da tolerância, no intuito de respeitar as diferentes formas de justiça existentes. O resultado prático é a formação da razão pública, já abordada por Ralws, e considerada um elemento essencial para a democracia tanto por John Rawls quanto por Amartya Sen. Este último

sustenta que democracia é o governo exercido por meio do debate, isto é, um governo com características tolerantes e não totalitárias. (SEN, 2009)

Como se viu durante praticamente todo o trabalho, os doutrinadores e teóricos são oriundos, em sua maioria, da Europa e dos Estados Unidos. Diante desse fato, analisamos a democracia como algo inerente ao ocidente, aliás, sendo esta uma das críticas de Sen (2009). Para ele possuímos uma ideia básica de que democracia não serve para países não ocidentais, embora não há dúvidas dos grandes avanços conquistados no ocidente, sobremaneira, por consistir na estrutura institucional do exercício real da democracia no mundo moderno, em grande medida, representada pelas experiências europeias e norte-americanas.

Amartya Sen (2009) vai sedimentando sua ideia de justiça no combate da injustiça. Cita diversos exemplos. Afirma em um deles que a invasão realizada pelos Estados Unidos no Iraque, em 2003, demonstrou que os piores prejuízos da guerra não aconteceram tanto pela invasão, quanto pelo pensamento da impossibilidade da existência democrática naquele país, causando enormes privações a população.

Ainda, o referido autor, aborda algumas consequências práticas da falta de democracia para compreender melhor a sua importância. Quando os países asiáticos, ou melhor, os tigres asiáticos como eram chamados alguns países em evidente crescimento econômico, como Coreia do Sul e Indonésia, entraram em crise no final dos anos 1990 a falta da democracia foi lembrada por aqueles que haviam perdido meios econômicos de subsistência. Assim, passou a faltar ao povo a garantia dos direitos políticos e civis. (SEN, 2009)

Neste caminho, existem outras experiências narradas pelo autor, as quais devem ser consideradas. Por exemplo, no caso da Grécia antiga, certamente o êxito democrático teve influência pelas discussões públicas mais do que pela votação secreta surgida neste país, até porque não há comprovação histórica do imediato impacto desses acontecimentos no oeste da Grécia e de Roma, ou seja, nos países hoje em que há democracia institucional como já nos referimos. De outro modo, após a incorporação do voto secreto e do uso da argumentação pública algumas cidades asiáticas como Irã passaram a se utilizar desses elementos democráticos na administração municipal, nos séculos seguintes ao florescimento da democracia ateniense. (SEN, 2009)

Além disso, o príncipe budista Shotoku, em 604 d.C., 6 séculos antes à Magna Carta de João Sem Terra, publicou a constituição dos dezessete artigos, a qual afirmava que as decisões importantes a serem tomadas jamais devem ser feitas por apenas uma pessoa. Isso demonstra que a democracia institucionalizada eclodiu exponencialmente, em países como a Inglaterra, Estados Unidos e França, muito tempo depois desses documentos, além de contrariar aqueles que enxergam apenas a democracia ocidental. (SEN, 2009)

Na época do imperador Saladino existia um filósofo judeu chamado Maimônides, o qual obrigado a fugir de um regime muçulmano intolerante migrou para a Espanha e se refugiou em um reino muçulmano tolerante no mundo Árabe. Enquanto esse reino lhe deu proteção, a inquisição europeia queimou na fogueira diversos hereges, demonstrando a intolerância e, consequentemente, a falta de um regime democrático nos países hoje tidos como exemplos de democracia. (SEN, 2009)

Essas experiências reconhecem, de um modo geral, aspectos democráticos como a participação política, o diálogo e a interação pública, contrárias às medidas intolerantes de restrição das liberdades de expressão e de imprensa. Também, caso as exigências da justiça possam ser avaliadas pela argumentação pública da mesma forma como validadas pela democracia, então, justiça e democracia podem caminhar de forma conjunta.

Para falar de justiça Amartya Sen (2009, p. 279), demonstra as consequências da inexistência de um regime democrático em determinados locais no mundo. A democracia significa, para ele, o contraditório de autoritarismo, como vemos a seguir:

Os parâmetros culturais, supostamente “velhos e imutáveis’, que são com demasiada frequência invocados para “explicar”, e até mesmo justificar, a carência de debate público em determinado país, muitas vezes são piores em fornecer uma explicação robusta, comparativamente à que pode ser obtida a partir de uma melhor compreensão do funcionamento do autoritarismo moderno – que apela para a censura, a regulamentação da imprensa, a supressão da dissidência, a proibição dos partidos de oposição e o encarceramento (ou algo pior) dos dissidentes. A remoção dessas barreiras não é a menor das contribuições que a ideia de democracia pode fazer. É uma contribuição importante por si mesma, mas, além disso, se a abordagem desenvolvida neste livro estiver certa, é centralmente importante também para a busca da justiça.

Quanto mais temos instituições repressoras mais distante se encontra a democracia e, consequentemente, a justiça. Quanto mais opressão à liberdade de opinião, de crença e de expressão, menos discussões na esfera pública teremos. Por isso, se invocarmos a cultura

transcendental, utilizada para explicar o conformismo público em relação às injustiças, vamos compactuar com a manutenção prática dessas injustiças.

Por fim, nos resta concluirmos a abordagem do ponto fundamental deste tópico. A percepção de indignação quanto às injustiças do mundo leva as pessoas a criarem consensos sobre determinados assuntos. Assim, existe uma característica, já abordada, mas que ainda não foi elevada ao seu grau último de importância, qual seja, a razão pública. Esta, se encontra presente em todas as democracias, sendo um de seus aspectos fundamentais, se não o mais relevante. Transcende os aspectos do sufrágio universal na medida em que incorpora o discurso da minoria junto ao grande corpo da maioria.

Nesse sentido,

Há, naturalmente, a visão mais antiga e mais formal da democracia que a caracteriza principalmente com relação às eleições e à votação secreta, em vez da perspectiva mais ampla do governo por meio do debate. Contudo, na filosofia política contemporânea, a compreensão da democracia ampliou-se enormemente, de modo que já não seja vista apenas com relação as demandas por exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo que John Ralws chama de “exercício da razão pública”. (SEN, 2009, p.270)

Portanto, a participação política, concebida apenas pela conquista do voto secreto, carece na democracia moderna do exercício da razão pública, uma vez que os direitos formais não se convertem automaticamente na prática da justiça.

3.3 As críticas de Amartya Sen à Teoria da Justiça de John Rawls: ampliações da ideia