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CAPÍTULO 1 A ABERTURA DEMOCRÁTICA E A EMERGÊNCIA DAS

1.3. A democracia participativa

A exclusão da sociedade civil do processo de formulação de políticas, da implementação dos programas e do controle da ação governamental foi uma característica central das políticas públicas no Brasil até a década de 1980. Não porque inexistissem mecanismos de articulação entre o Estado e a sociedade, mas porque esse mecanismos eram baseados no clientelismo, no corporativismo e no insulamento burocrático. O processo de incorporação dos interesses da sociedade civil e do mercado às políticas públicas promovidas pelo Estado era excludente e seletiva, beneficiando segmentos restritos da população e do empresariado (FARAH, 2001).

Segundo Farah13, “neste padrão não-democrático, sobressaem a opacidade e impermeabilidade das políticas e agências estatais ao cidadão e a ausência de mecanismos de controle da ação estatal, traços constitutivos do regime autoritário (mas não exclusivo deste regime), o que reforçou a tendência ao comprometimento das metas de eqüidade, assim como

13 A autora se remete a DINIZ, Eli. Em busca de um novo paradigma: a reforma do Estado no Brasil dos anos 90.

introduziu no sistema um crescente déficit de accountability e de responsabilidade pública” (FARAH, 2001).

No entanto, a partir da década de 90, os movimentos sociais ganham um espaço de participação direta no âmbito do Poder Público onde suas reivindicações podem, ao menos em tese, converter-se em práticas, a depender da efetividade da sua participação na definição das políticas públicas e das formas pelas quais serão implementadas essas políticas.

Com o processo de construção da participação social no Brasil, assim como em outros países, a tendência é de que os próprios governos passem a necessitar, cada vez mais, de uma legitimidade constante, obtida a partir do contínuo apoio da sociedade às suas ações. Deixa de ser suficiente, assim, apenas aquela legitimidade política mais tradicional, conquistada a partir da vitória eleitoral, na medida em que as pessoas deixam de ser meros eleitores e passam a exercer a cidadania, efetiva e constantemente, tornando-se cidadãos cientes dos seus direitos.

Não se trata de menosprezar a importância das eleições ou a legitimidade de um governo democraticamente eleito. Trata-se da transformação do próprio conceito de democracia, natural no processo de desenvolvimento político. Com a crescente participação no poder dos diversos setores da sociedade, inclusive aqueles de base, outrora marginalizados, passa-se a considerar como fator de desenvolvimento social e político o empoderamento das bases14.

A fim de analisar o assunto em uma perspectiva comparada, vale dizer que nos Estados Unidos, embora o grau de descentralização política e o manejo dos recursos públicos varie consideravelmente de estado para estado (em razão da forte autonomia legislativa e administrativa dos estados), é comum que haja uma transferência efetiva de poder político para os bairros. LAWRENCE (1998), em estudo realizado sobre as relações entre Estado e

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Empoderamento é um conceito que vem ganhando importância quando se fala de processos de desenvolvimento social, notadamente aqueles promovidos por ONGs com foco na defesa e ampliação de direitos de grupos hipossuficientes. Trata-se de um objetivo evidente nas políticas e programas das ONGs, e começa a ter influência também em agências de desenvolvimento multilaterais.

Conforme OAKLEY & CLAYTON (2003), “o poder – formal, tradicional ou informal – está no coração de qualquer processo de transformação e é a dinâmica fundamental que determina as relações sociais e econômicas. Falar de empoderamento equivale a sugerir que há grupos que estão totalmente à margem do poder e que necessitam de apoio para ‘empoderar-se’. Essa é uma suposição simplificada já que todo grupo social possui algum grau de poder em relação ao seu ambiente imediato. Quando falamos de processo de ‘empoderamento’, nos referimos a posições relativas ao poder formal e informal desfrutado por diferentes grupos socioeconômicos, e às conseqüências dos grandes desequilíbrios na distribuição desse poder. Um processo de empoderamento busca intervir nestes desequilíbrios e ajudar a aumentar o poder daqueles grupos ‘desprovidos de poder’, relativamente aos que se beneficiam do acesso e uso do poder formal e informal.” (OAKLEY & CLAYTON, 2003, p. 9)

sociedade em Seattle (WA), explica que, naquela cidade, as associações de bairro têm forte poder político e são capazes de resolver, elas mesmas, os problemas concernentes às suas regiões, sem que dependam do governo para isso e precisem de sua permissão para atuar nas respectivas comunidades.

Isso não se dá apenas pela crescente pressão exercida pelos movimentos sociais, mas também pela necessidade do próprio governo de descentralizar seu poder e capacitar a sociedade para que possa atender ao máximo, ela mesma, as suas próprias necessidades. No contexto complexo das sociedades atuais, caso assim não aja o governo, a tendência é que suas políticas se encaminhem para o insucesso. Resta-lhe, portanto, a possibilidade de compartilhar poder com a sociedade, permitir e estimular a sua participação, como caminho para que possa exercer um bom governo.

Vale ressaltar que, nos casos em que a sociedade civil contribui para o bom desempenho do governo, ela (ou sua organização) não precisa ser, necessariamente, preexistente ou totalmente independente do governo (TENDLER, 1999, p. 47).

Na verdade, ao promover políticas de fortalecimento (ou empoderamento) da sociedade civil, induzindo os cidadãos à ação cívica – inclusive controlando e respeitando os agentes públicos e os serviços prestados por eles –, o governo atua em favor da eficácia dos seus próprios programas sociais, conscientizando a população e fazendo dela a principal fiscal da conduta dos funcionários governamentais (idem, p. 54) 15

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Para Fisher, a abertura para a participação social pode ser promovida também por governos autoritários, como decorrência do seu limitado poder de repressão, assim como pela sua falta de habilidade para conduzir, sem o apoio da sociedade, as mudanças econômicas e sociais necessárias, em contextos de inflação monetária, crise fiscal e marginalização de parcelas significativas da sociedade. Segundo a autora, mesmo os governos autoritários deparam-se com a constatação de que concentrar poder ao invés de distribuí-lo e descentralizá-lo pode acabar por reduzir ainda mais o poder governamental, que assim tende a se mostrar ineficiente e incapaz.

15 Tendler (1999) mostrou como soluções podem ser encontradas dessa forma, ao analisar casos bem sucedidos

em que o próprio governo levou a sociedade civil a se organizar e atuar de forma independente, inclusive para contestar o governo em sua sensatez e suas ações ou para reivindicar melhores serviços. No caso dos programas governamentais analisados pela autora, foram promovidas campanhas públicas de informação que aumentaram a capacidade dos cidadãos de pressionar o governo no sentido de um serviço melhor. As mensagens governamentais introduziram na mente das pessoas a visão de um governo melhor e mais justo, convocaram-nas a se levantar contra os abusos do governo e explicaram como reconhecer infrações e o que fazer em relação a elas. O governo, no caso, se apropriou da defesa de direitos normalmente praticada por ONGs independentes e promoveu permanentemente, dessa forma, a consciência dos cidadãos (1999, p. 54).

Dessa forma, o advento e desenvolvimento da democracia participativa podem ser explicados não apenas como uma benesse de governos que possuam afinidade com os ideais democráticos e participativos, mas pode se dar até mesmo no âmbito de países de tradição política autoritária e centralizadora, ainda na presença da ânsia de poder dos seus governantes, pela falta de capacidade deles para manter seu poder sem distribuí-lo. Assim, não lhes resta outra alternativa a não ser incorporar mecanismos institucionais de participação social. A tendência, no entanto, é de que os governos procurem manter sob o seu próprio controle o funcionamento desses mecanismos de participação, na medida do possível, evitando conceder-lhes autonomia política ou poder decisório significativo (FISHER, 1998, p. 26). Nestes casos, o governo trata também de limitar o alcance orçamentário e o impacto social das políticas adotadas em razão da participação, mas permite que esta garanta ao governante a imagem pública de um político preocupado com a questão social (CACCIA BAVA, 2002a, p. 77).

Todavia, uma vez incorporada a institucionalização da participação popular nas políticas públicas à própria Constituição Federal e em diversas outras leis relativas à prestação de serviços públicos pelo Estado ou sob sua regulação, passa a ser reivindicação dos movimentos sociais a ampliação desse espaço de participação dentro do governo. Vencida a batalha pela institucionalização da participação no Poder Público, resta conseguir que a sociedade civil de fato tenha poder de decisão e de controle sobre as políticas públicas, a fim de que a participação conquistada produza efeitos concretos – e que não se limite a uma participação passiva, de fachada, sem força, voz ou independência, usada pelo próprio governo com o intuito de conferir legitimidade às suas próprias políticas por terem passado pelo crivo de um conselho gestor do qual supostamente participa a sociedade.

Portanto, uma vez que os movimentos sociais passam a manifestar suas demandas internamente ao governo, como parte de um “governo participativo” (e não mais de fora para dentro, de forma oposicionista e contenciosa), uma reivindicação fundamental sua passa a ser o aumento de sua participação efetiva, antes mesmo do atendimento às demandas que lhe originaram, pois esta deriva daquela. Daí a importância de os agentes governamentais incorporarem à sua rotina meios de controle social e canais eficientes para a efetivação da accountability que a sociedade passa a exigir.

Isso porque, como conseqüência do direito de participação social, e principalmente da sua prática, cresce a consciência da população a respeito do dever dos governantes eleitos de atender as demandas originadas da sociedade. Pela própria experiência da participação, o cidadão tende a, cada vez mais, enxergar as autoridades políticas como

agentes a serviço da população, numa relação definida por Przeworski (2001) como “principal-agente”. Reduz-se, com isso, o espaço outrora existente de apropriação do público para fins privados dos agentes governamentais, na medida em que a transparência, a discussão e a contínua prestação de contas à sociedade passam a ser consideradas obrigações suas.

Nesse processo de progressiva ampliação do espaço de participação social nas políticas públicas foram aprovadas algumas leis bastante representativas da transformação que vem ocorrendo: a luta dos profissionais da saúde e movimentos populares e sindicais na área da saúde conseguiu aprovar o SUS - Sistema Único de Saúde, que institui um sistema de gestão e controle social tripartite (Estado, profissionais e usuários) das políticas de saúde, que se articula desde os conselhos gestores de equipamentos básicos de saúde até o Conselho Nacional, regido pela Conferência Nacional de Saúde; a luta pela reforma urbana consagra a função social da propriedade e da cidade, num capítulo inédito sobre a questão urbana que prevê o planejamento e a gestão participativa das políticas urbanas e que, embora não tenha consolidado um sistema articulado de Conselhos, tem instituído diversos espaços de gestão das políticas urbanas nas esferas estaduais e municipais.

Merecem também destaque, pela participação da sociedade organizada, pressionando e construindo espaços de co-gestão, as áreas que envolvem políticas de defesa da criança e do adolescente, de assistência social, do consumidor e do meio ambiente. Por meio de novas leis como o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o CDC (Código de Defesa do Consumidor) e a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), estas políticas, marcadas tradicionalmente pelo paternalismo e pelo clientelismo, são redefinidas de modo mais universal e democrático e submetidas ao controle social exercido por movimentos sociais e associações representativas dos interesses dos grupos sociais envolvidos – que são, em geral, aqueles cujos direitos são tradicionalmente mais carentes de defesa.

Além dos conselhos setoriais, é digno de menção o orçamento participativo, que passou a ser implementados nos governos municipais (notadamente naqueles exercidos pelo PT) a partir da década de 90. Trata-se de um processo de consultas e debates públicos sobre o orçamento público municipal, pelo qual a população tem a oportunidade de discutir os problemas urbanos que afetam sua vida e as prioridades de investimento do governo municipal, participando diretamente da decisão sobre o que deve ser feito pelo governo, onde e quando, bem como do posterior acompanhamento da execução orçamentária definida.

Tais experiências, além de terem um nítido caráter democratizador, vêm demonstrando grande capacidade de aumentar a eficácia e a legitimidade do governo. Têm

sido premiadas por escolas de gestão pública16 e reconhecidas por organismos internacionais

como a Conferência da ONU sobre o Habitat, provocando a disseminação de iniciativas semelhantes.

Percebe-se que, além de possibilitar aos cidadãos a participação na gestão das políticas públicas, os mecanismos de participação social no governo propiciam a educação da sociedade para o interesse e respeito à coisa pública, elevando o capital social17 da população.

As próprias lideranças de movimentos sociais, ao participarem de conselhos gestores ou de audiências públicas ligadas ao orçamento participativo, defrontam-se com as demandas dos outros grupos sociais (de outras regiões ou setores) interessados na definição das políticas, permitindo que cada um desenvolva uma compreensão mais geral dos problemas da cidade e dos impactos positivos e negativos que podem ser causados por cada projeto que vier a ser implementado. Isso contribui para que as lideranças e cidadãos participantes superem o particularismo presente na visão de quem integra um determinado grupo ou movimento social, favorecendo a solidariedade, e também estimula a tomada de decisões consensuais, cujos impactos positivos possam ser maiores e mais amplos.

Porém, não se pode deixar de notar a existência de casos em que mecanismos de participação instituídos pelo governo, por serem utilizados com finalidade de cooptação, tendem a se mostrar ineficazes para os objetivos democratizadores das ONGs. Nesses casos, os conselhos podem funcionar em sentido oposto18.

Por isso mesmo, tão ou mais importante que a construção de espaços de gestão participativa é o fortalecimento da cultura participativa, com a valorização da participação direta e do controle social por parte dos próprios cidadãos e outros segmentos interessados nas políticas públicas.

A articulação da democracia representativa parlamentar com canais institucionais de gestão participativa direta, por outro lado, tem contribuído para desprivatizar a gestão pública, alterando os arranjos institucionais formadores de políticas, aumentando a publicidade das políticas sociais e aperfeiçoando, com isso, a democracia19.

16

Cf. programa Gestão Pública e Cidadania (site http://inovando.fgvsp.br).

17

Cf. Putnam (1996)

18

Os trabalhos de Teixeira (2000a, 2000b e 2001) trazem uma boa discussão desse assunto, apontando limites e desafios à efetividade e eficácia dos conselhos, bem como indicando caminhos para superá-los.

19 Quando nos referimos ao aperfeiçoamento da democracia, referimo-nos ao conceito de poliarquia tratado por