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CAPÍTULO 1 A ABERTURA DEMOCRÁTICA E A EMERGÊNCIA DAS

1.5. A independência das ONGs versus a parceria com o governo

Como visto, a respeito das ONGs e de suas tradições, os pesquisadores do tema ressaltam o seu caráter político, de militância, de cidadania, destacando o seu papel na consolidação democrática. Tais organizações, em sua própria essência, dedicam-se à tradução e articulação dos interesses das camadas populares nas arenas institucionais de confronto e negociação. Seu papel de pressão sobre o Estado pode ser desempenhado de diversas formas, desde a mobilização de alianças, lobbies, proposições legislativas, penetração na mídia e articulações internacionais até a contribuição direta para a elaboração de políticas públicas alternativas (LANDIM, 1993, p. 34).

Tal característica das ONGs brasileiras torna nítida a sua distinção em relação às entidades de assistência social. No Brasil, a história destas últimas é marcada pela influência da religião e por relações clientelistas e de dependência, tendo sido, em diversos momentos, objeto de políticas governamentais com um viés de cooptação. Por outro lado, em sua relação com a comunidade que atende, o trabalho dessas instituições tradicionais de caridade possui, em geral, um caráter paternalista, puramente assistencialista.

Suas ações, muitas vezes, provocam efeitos contrários à promoção do desenvolvimento social propagado pelas ONGs (como aqueles produzidos por projetos de geração de renda, treinamento profissional ou mobilização comunitária), aumentando ainda mais a dependência da população atendida por políticas assistencialistas.

Daí a repulsa hoje manifestada pelas ONGs de caráter mais político e independente em relação ao assistencialismo praticado por aquelas outras.

Trata-se, portanto, de duas faces bastante distintas do chamado terceiro setor brasileiro. Ao contrário das entidades de assistência social tradicionais, acostumadas ao trabalho com setores marginalizados da sociedade, porém distantes do confronto e da militância política, as ONGs, na busca dos seus objetivos (marcadamente de natureza política), convivem com relações ambíguas de dependência/autonomia e de conflito/aliança com instituições tais como partidos políticos, igrejas, universidades, sindicatos e órgãos governamentais. Freqüentemente, possuem em sua estrutura institucional conselhos diretores e consultivos que contam com a participação de intelectuais notáveis, muitos oriundos dos que pode ser considerada como parte do Terceiro Setor, mas sim aquelas com o perfil do novo assistencialismo dos anos 90. Um perfil diferente das antigas ONGs dos anos 80, que tinham fortes características reivindicativas, participativas e militantes” (GOHN, 2000, p. 39).

movimentos de resistência à ditadura nos anos 70. Pela influência dessas pessoas, presente desde as origens dessas ONGs, seria incompatível com a sua natureza política e independente atitudes de subordinação ao governo como se vê em outras entidades do terceiro setor.

Como explica Landim (1993, p. 34-35), diferentemente das ONGs, as entidades de assistência social tradicionais não enfrentam problemas de relacionamento com os órgãos governamentais nem se dedicam a pressioná-los ou controlar os seus atos. São, na verdade, clientes dos seus recursos, e muitas vezes traçam o seu planejamento estratégico de modo a atender, em suas atividades, as diretrizes definidas nas políticas sociais do governo.

Entretanto, para as ONGs dedicadas ao exercício do controle social sobre os atos governamentais, priorizar a sua independência em relação a outras instituições – e principalmente em relação ao Poder Público – mostra-se fundamental, não só para que as ONGs não se deixem desviar da sua missão e dos objetivos para os quais foram criadas, mas também para assegurar uma maior eficácia em sua atuação.

É comum que, na tentativa de aproximar-se das altas esferas de poder político, através da advocacy ou da colaboração com governos, as ONGs se deparem com barreiras políticas consideráveis. Às vezes podem até alcançar um de seus objetivos mais imediatos, quando obtêm acesso a verbas públicas de projetos governamentais, mas não conquistam o direito à voz na definição das políticas do governo. Em contextos políticos repressivos, até mesmo o acesso a recursos públicos pode se tornar difícil (FISHER, 1998, p. 76).

Fisher considera que as ONGs, ao se depararem com trade-offs entre manterem-se fiéis às bases da sociedade ou aproximarem-se do governo que, eventualmente, financia suas atividades, praticam um ato de grande ingenuidade quando optam pelo segundo caminho, negligenciando o fortalecimento dos laços com as bases da sociedade a quem devem servir. Para a autora, o fator-chave para que as ONGs conquistem força política e o poder de influenciar políticas públicas é justamente a autonomia em sua organização.

A despeito dos vários contextos políticos em que estudou a atuação das ONGs no sentido de influenciar governos, Fisher observa que as organizações que se dedicam a fortalecer a sua própria identidade e autonomia, antes mesmo de procurar influenciar os políticos, tendem a ampliar o alcance das suas iniciativas políticas e obter maior efetividade nas suas propostas. Além disso, ONGs que desde cedo se mostram mais autônomas são mais capazes de, no futuro, continuar fortalecendo tanto sua autonomia como também os impactos políticos das suas ações. Em longo prazo, tal perspectiva é fundamental, considerando-se que as mudanças na postura política do governo podem ser efêmeras ou meramente retóricas (FISHER, ibidem).

Isso não deve ser entendido, contudo, como razão para que a ONG deixe de se aproximar das esferas do poder político para dedicar-se, exclusivamente, ao “trabalho de base”, pois isso significaria abdicar da advocacy, um trabalho que exige a interação com as autoridades constituídas e a pressão sobre elas, a ser exercida às vezes mediante confronto e às vezes de forma cooperativa e negociada.

Conforme analisa Roche, os beneficiários do trabalho de advocacy podem nem saber que são eles os beneficiários e, muitas vezes, não têm escolha sobre quem realizará esse trabalho em seu nome, nem exercem influência sobre este seu defensor. Assim mesmo, para Roche, “se uma agência está procurando mudar as políticas que possam ter impacto sobre muitos milhares ou até milhões de pessoas (como a dívida externa), então as dificuldades logísticas e práticas de consultar com os mesmos tornam-se enormes. Nesse tipo de trabalho de advocacy, conversar com os beneficiários finais e compreender sua percepção de impacto, torna-se bem mais difícil de que nos projetos de base” (2002, p. 234).

Mesmo assim, para que as ONGs se mantenham fiéis aos seus princípios e objetivos, é necessário que tenham cuidado quando se trata de ceder a condições impostas pelo governo para que possam ter acesso a recursos públicos, ou mesmo para que possam participar dos foros de participação oferecidos no âmbito do Poder Executivo.