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A reforma do Estado e a criação das agências reguladoras durante o governo

CAPÍTULO 4 A ANATEL – AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES

4.1. A reforma do Estado e a criação das agências reguladoras durante o governo

A partir da promulgação da Lei nº 8.987/95 (chamada Lei de Concessões)60, como

estágio do programa de reforma do Estado promovido pelo governo federal, que incluiu o Plano Nacional de Desestatização (PND), proliferaram no Brasil diversos órgãos reguladores setoriais, chamados agências reguladoras – embora alguns não tenham recebido oficialmente esta denominação –, criados para exercer a regulação das atividades de empresas privadas prestadoras de serviços públicos considerados essenciais.

Vale mencionar, também, a existência de outros órgãos públicos com competências equivalentes às das agências reguladoras no que se refere à regulação sobre a prestação de serviços aos consumidores por empresas privadas. São exemplos alguns órgãos subordinados ao Ministério da Agricultura, o Inmetro, os órgãos estaduais de vigilância sanitária, entre outros, cuja eficiência é fundamental para a garantia da segurança, da saúde e dos direitos dos consumidores de um modo geral. Há ainda quem considere equiparáveis às agências reguladoras o Banco Central do Brasil e a Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura61.

Contudo, os órgãos federais criados após a referida Lei de Concessões que receberam, formalmente, a denominação de agências, são os seguintes:

• Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL; • Agência Nacional do Petróleo – ANP;

• Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL; • Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA; • Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS;

60 A Lei de Concessões veio regulamentar o art. 175 da Constituição Federal, que dispôs:

“Art. 175 - Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários; III - política tarifária;

IV - a obrigação de manter serviço adequado.”

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Essa equiparação foi sugerida pelo Idec em documento enviado à Casa Civil da Presidência da República durante consulta pública relativa ao projeto de lei que “dispõe sobre a gestão, a organização e o controle social das Agências Reguladoras, altera a Lei n o 9.986, de 18 de julho de 2000, e dá outras providências” - <disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consulta_publica/consulta.htm> <acesso em 14/03/2004>.

• Agência Nacional de Águas – ANA;

• Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ; • Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT; • Agência Nacional do Cinema – ANCINE.

Estas agências reguladoras têm sido conceituadas como “autarquias sob regime especial, parte da administração pública indireta, e caracterizadas por independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e ausência de subordinação hierárquica [em relação ao governo central]” (MELO, 2001, p. 56-57).

O fato de serem constituídas sob a forma de autarquias especiais, afastando-se da estrutura hierárquica dos ministérios e da influência política direta do governo, visa a garantir- lhes o grau de independência necessário para transmitir aos investidores credibilidade na estabilidade da direção da agência. No mesmo sentido, o fato de possuírem direção colegiada (cujos membros são nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal), sendo que os dirigentes possuem mandato com prazo de duração determinado com término não coincidente com o do mandato do Presidente da República – também a fim de que lhes seja assegurada a independência. Depois de cumprido o mandato, os dirigentes ficam impedidos, por um prazo determinado, de atuar no setor atribuído a agência (quarentena).

Conforme a pretensão anunciada pelo Governo Federal, na época, cinco princípios básicos nortearam a constituição dos entes reguladores (BRASIL, 199562, apud SALGADO,

2003, p. 24):

a) autonomia e independência decisória;

b) ampla publicidade de normas, procedimentos e ações;

c) celeridade processual e simplificação das relações entre consumidores e investidores;

d) participação de todas as partes interessadas no processo de elaboração de normas regulamentares, em audiências públicas; e

e) limitação da intervenção estatal na prestação de serviços públicos, aos níveis indispensáveis à sua execução.

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Percebe-se que, em sua idealização, a criação das agências reguladoras tentou seguir a orientação conceitual segundo a qual “o grande desafio para a regulamentação econômica é encontrar o ponto ótimo que viabilize a lucratividade, de um lado (e, portanto, a operação e o investimento das empresas), e o bem-estar dos consumidores, de outro, na forma de disponibilidade de bens e serviços de qualidade e a preços razoáveis” (SALGADO, 2003, p. 2).

Não se pretende, aqui, entrar em qualquer discussão conceitual ou ideológica relativa à política de privatizações do governo FHC, nem tampouco questionar a forma com que foi implementada. Todavia, é importante registrar que todo o processo de privatizações, desde a primeira concepção do Plano de Reforma do Estado, ocorreu em meio a uma intensa polêmica. A política governamental, de linha claramente neoliberal, foi taxada pela oposição – notadamente por aqueles identificados com a esquerda – de “entreguista”, e cada privatização de empresas estatais precisou enfrentar inúmeros questionamentos, tanto por parte dos partidos de oposição quanto por setores da sociedade civil – inclusive pelas ONGs.

Quanto a tal polêmica, vale mencionar apenas que o governo entendia ser necessário concentrar as atividades estatais em setores onde sua presença era essencial, e que restringir-se ao papel de regulador ao invés de ser, ele mesmo, prestador direto dos serviços públicos, permitiria investimentos mais adequados em infra-estrutura e inovações tecnológicas. A oposição, por sua vez, defendia que, por serem estratégicos, os setores que o governo pretendia privatizar deveriam permanecer sob controle direto do Estado, que saberia explorá-los de acordo com os interesses nacionais, priorizando em suas atividades o atendimento das necessidades da população (e não os lucros privados).

Ao abordar este assunto, neste trabalho, procuramos nos limitar à observação do que de fato foi divulgado como intenção do governo, do que pôde ser verificado em termos do desenho institucional das agências então criadas e das conseqüências daí advindas.

O texto de Salgado é claro ao resumir os aspectos conceituais da regulação econômica, nos quais baseou-se o governo FHC:

[...] A existência de perfeita informação por parte de consumidores e produtores é um dos pressupostos teóricos citados pela literatura econômica como necessário à comprovação de que a livre concorrência nos mercados leva à alocação eficiente de recursos e à satisfação dos agentes. [...]

A assimetria de informações é uma das justificativas de ordem normativa para a adoção, pelos governos, de mecanismos de regulação.

[...]

Assim, as funções da regulação são as de incentivar os investimentos necessários ao desenvolvimento econômico, promover o bem-estar de consumidores e usuários e propiciar a eficiência econômica. [...]

A regulação desempenha função primordial, ao buscar reproduzir as condições de competição, para que os consumidores tenham acesso a produtos e serviços com a qualidade e os níveis de preços que obteriam em um ambiente competitivo (idem, p. 2-3).

Salgado aponta, então, três requisitos básicos para o desenvolvimento de instrumentos e arranjos institucionais que reduzam a assimetria de informações: a prestação de contas, a independência e a transparência:

A prestação de contas obriga a agência a afinar suas decisões com os objetivos prescritos em lei, ou seja, com os objetivos da autoridade dos eleitores em última instância.

A independência dos decisores é com relação à pressão de interesses. O instituto do mandato fixo e as exigências de qualificação técnica para o exercício de postos de decisão, assim como a autonomia administrativa do órgão público, como uma agência regulatória, são as indicações usuais para tanto.

Finalmente, a transparência das decisões é garantida pelo prévio conhecimento das regras que orientam as análises do órgão público. A publicação de manuais e guias, assim como de todos os procedimentos adotados pelo órgão, reduz as incertezas do público interessado e funciona como disciplinador de tendências à “captura” por interesses velados (idem, p. 16).

Tais observações indicam a necessidade de um elevado grau de accountability, na atuação das agências, para que a regulação obtenha sucesso. Esta necessidade foi reconhecida pelo governo, como se verifica no texto do Plano Diretor da Reforma do Estado e nas recomendações emitidas pelo Conselho de Reforma do Estado (CRE), para a “Construção do Marco Legal dos Entes Reguladores”63 (PÓ, 2004, p. 71).

Marcos Pó, ao apontar as principais diretrizes presentes no Plano Diretor e nas recomendações do CRE, no sentido de promoção de accountability e controle, resume que eram “a participação dos usuários no processo de elaboração de normas, na necessidade de buscar informação independente, a utilização da administração pública gerencial com a

63 O Conselho da Reforma do Estado (CRE), composto por membros do Ministério da Administração e Reforma

do Estado (MARE) e dos ministérios do Planejamento, da Fazenda e da Casa Civil, além de acadêmicos e empresários, foi instituído pelo Decreto Federal nº 1.738, de 08/12/1995, com o objetivo de debater e oferecer sugestões à Câmara de Reforma do Estado.

Suas principais recomendações se referiam a (PÓ, 2004, p. 72):

a) Autonomia gerencial, financeira e operacional e independência decisória do ente regulador. A nomeação dos dirigentes seria feita pelo Presidente da República e aprovada pelo Senado Federal, segundo critérios meritocráticos. O mandato seria fixo, e o processo decisório deveria ser colegiado.

b) Necessidade de participação de consumidores e investidores no processo de regulamentação, por meio de audiências públicas. Deveria ser viabilizada a busca de informações além daquelas trazidas diretamente pelos interessados, inclusive com a possibilidade de contratar fontes independentes.

c) Ampla publicidade das normas, procedimentos, decisões e relatórios de atividade.

d) Necessidade de definição das atribuições e competências privativas do ente regulador, de caráter discricionário, e daquelas que deveriam, necessariamente, seguir a política governamental.

verificação de resultados por meio de indicadores de desempenho e contratos de gestão, a adoção de mecanismos de controle social nos serviços locais”. Além disso, citando o Plano Diretor, deveriam ser utilizados sistemas administrativos com o objetivo de “’permitir a transparência na implementação das diversas ações do governo, possibilitando seu acompanhamento e avaliação, bem como a disponibilização de informações não privativas e não confidenciais para o governo como um todo e a sociedade’ (BRASIL, 1995, p. 81)64” (PÓ,

2004, p. 72).

Portanto, para que seja atingido o objetivo da regulação, com a desejada eficiência, pode-se considerar como inerente a defesa do consumidor e dos seus interesses, pois os consumidores constituem, em última instância, os próprios destinatários das atividades regulatórias.

Entretanto, para a consecução desses objetivos primários, a regulação das agências pelas agências deveria também cuidar da defesa da concorrência entre os prestadores do serviço, além de zelar, cuidadosamente, pelo equilíbrio financeiro dessas empresas, evitando assim o risco de paralisação de quaisquer serviços essenciais. As agências deveriam, ainda, assegurar às empresas o acesso a condições comerciais vantajosas e lucrativas, de modo a atrair para o país os investimentos privados necessários ao sucesso da política de privatizações – tudo isso sem prejudicar o consumidor.

Tudo isso foi contemplado, ao menos no plano legislativo, pelo regime de concessões estabelecido pela Lei nº 8.987/95 (denominada Lei de Concessões), que previu que toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme a Lei, as normas pertinentes e o respectivo contrato (artigo 6º). A lei esclarece, ainda no mesmo artigo, que “serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (§ 1º) e que a “atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço” (§ 2º).

A mesma lei tratou de prever, ainda que de forma genérica, diversos mecanismos de controle da Administração Pública, inclusive: a fiscalização pelo poder concedente, com a cooperação dos usuários (artigo 3º); a competência do poder concedente para fiscalizar permanentemente a prestação o serviço (artigo 29, I), aplicando as penalidades regulamentares e contratuais (artigo 29, II); a competência do poder concedente para cumprir

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e fazer cumprir as disposições regulamentares do serviço e as clausulas contratuais e zelar pela boa qualidade do serviço (artigo 29, VI e VII); o direito de acesso aos dados relativos a administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária (artigo 30); e o direito de acesso, a qualquer hora, aos equipamentos e às instalações integrantes do serviço, bem como aos seus registros contábeis (artigo 31, V).

Também foi contemplado pela lei o direito dos usuários de receber, do poder concedente e da concessionária, as informações necessárias para a defesa dos seus interesses individuais e coletivos (art. 7º, II), além de prever, entre as incumbências do poder concedente, o estímulo à formação de associações de usuários para defesa de interesses relativos ao serviço (art. 29, XII).

Outros deveres das concessionárias e requisitos das concessões, mais específicos e aplicáveis a cada setor de atividade, foram definidos pelas leis que criaram e regulamentaram as atividades das respectivas agências reguladoras.

Um aspecto importante relativo à criação das agências reguladoras no Brasil foi o fato de o seu padrão institucional ter tomado por referência as agências norte-americanas. Ocorre que, no modelo norte-americano, é central o papel do Legislativo no controle das agências independentes (MELO, 2001, p. 55). No Brasil, porém, o Congresso não tem mostrado interesse em exercer o acompanhamento e a fiscalização da atuação das agências de forma sistemática, nem em estabelecer procedimentos formais de prestação de contas, segundo apurou o estudo de Pó (2004, p. 150). Nele, conclui-se que, em relação às agências reguladoras, o Congresso Nacional ainda não assumiu o seu papel institucional de fiscalização do Executivo, pois os dados levantados pelo autor indicam que, nas ocasiões em que questionou-se, no âmbito do Legislativo Federal, as atividades das agências, a iniciativa partiu de deputados de oposição (principalmente dos petistas Walter Pinheiro e Jorge Bittar), que geralmente mostraram mais interesse em criar e explorar fatos políticos, como forma de atacar a privatização promovida pelo governo FHC, do que em buscar a institucionalização de instrumentos perenes de publicização do Estado (idem, ibidem).

Tal constatação mostra que o modelo americano, embora pareça funcionar bem, em sua versão brasileira não tem apresentado a mesma eficiência, em termos de controle sobre a sua burocracia. Marcus Melo chega a concluir que, “em última instância, o desenho institucional nas democracias contemporâneas que atribui a responsabilização a um sistema de checks and balances entre os poderes revela-se pouco capaz de gerar resultados satisfatórios e alta legitimidade” (2001, p. 65).

Esse fato reforça ainda mais a necessidade de assegurar formas eficientes de accountability e controle social sobre os órgãos reguladores, para que cidadãos e ONGs possam expor e defender seus interesses e estes sejam efetivamente considerados na ação regulatória das agências.

4.2. Accountability e possibilidade de controle social no âmbito da