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CAPÍTULO 2 AS ASSOCIAÇÕES DE CONSUMIDORES COMO INSTRUMENTOS DE

2.4. As associações de consumidores no Brasil

No Brasil, o movimento dos consumidores foi marcado, tradicionalmente, por uma característica que o diferencia do movimento ocorrido nos EUA e na Europa: a luta pelo acesso a bens e serviços básicos, prioritariamente aos demais direitos do consumidor (mas sem prejuízo da luta por eles também). Como explica Taschner (1995, p. 38):

Num primeiro momento, os velhos e os novos problemas tiveram que competir por legitimidade – [...] a questão aqui configurava-se como algo mais complexo do que o mero estabelecimento de prioridades – não seria imoral pensar em defesa do consumidor, quando o próprio “direito ao consumo” não estava assegurado à maioria da população? Quando os direitos políticos e civis estavam seriamente restringidos pela ditadura e os direitos sociais prejudicados por uma estrutura capitalista e um padrão de acumulação de efeitos altamente perversos, isto é, quando outros direitos básicos de cidadania não estavam assegurados? Qual a importância da poluição, se sem ela parecia que teríamos que “renunciar” ao desenvolvimento industrial que nos poderia livrar do “subdesenvolvimento”?

Por isso mesmo, conclui a autora, a questão da defesa do consumidor demorou a ganhar espaço na agenda da sociedade brasileira. Para a esquerda, influenciada pela ideologia socialista e preocupada com a questão social, o assunto soava como “perfumaria”. Para a direita, despertava suspeitas de ser subversivo.

As primeiras iniciativas em defesa do consumidor estiveram, em geral, ligadas aos movimentos populares relacionados à carestia: a marcha da fome em 1931; a marcha da panela vazia em 1953; o protesto contra o alto custo de vida em 1963; o movimento de donas- de-casa contra o alto preço da carne em 1979. Somente a partir de 1990 o país viria a registrar mobilizações populares de consumidores não diretamente vinculadas ao custo de vida (ZÜLZKE, 1997, p. 141-142).

As primeiras associações civis de defesa do consumidor do Brasil, segundo Rios (1998, p. 47 e seguintes), foram o Conselho de Defesa do Consumidor - CONDECON, no Rio de Janeiro, em 1974; a ADOC - Associação de Defesa e Orientação do Cidadão, em Curitiba, em 1976; e a Associação de Proteção ao Consumidor - APC, em Porto Alegre, também em 197636, além de outras que não chegaram a se tornar conhecidas. Zülzke (1997, p. 144)

menciona a criação, em 1975, da ANDEC – Associação Nacional de Defesa do Consumidor, com sede no Rio de Janeiro e Brasília. Surgiram, portanto, no contexto do “milagre

36 Segundo Zülzke, a APC, de Porto Alegre, foi criada em maio de 1995 e seria considerada a primeira entidade

econômico”, o mesmo da emergência dos movimentos sociais e das ONGs de que falamos no Capítulo 1, marcado por um extraordinário crescimento da economia e da industrialização.

Também em 1976, a primeira iniciativa governamental na defesa do consumidor ganha existência jurídica, com a criação do “Sistema Estadual de Proteção ao Consumidor”, em São Paulo, pelo Decreto Estadual nº 7.890. Dois anos depois, o sistema veio a ser reforçado pela Lei Estadual nº 1.903, de 20 de dezembro de 1978, que ampliou o seu âmbito e criou o Procon em São Paulo, que acabou se legitimando perante a opinião pública e tornando-se ponto de referência no tema da defesa do consumidor, funcionando também como canal de comunicação entre a população e o governo. O Procon paulista veio a tornar-se modelo para outros órgãos equivalentes que começaram a ser criados nos demais estados. Até hoje, o Procon-SP é considerado o mais bem sucedido.

Havia, contudo, uma limitação na atuação do Procon, como órgão governamental. As reivindicações mais constantes da população eram relativas à melhoria dos serviços públicos de responsabilidade do Estado, asfaltamento de ruas, água encanada, telefones comunitários, centros de saúde e escolas; e os jovens entusiastas do Procon pouco podiam oferecer como solução a esses problemas e necessidades, pois, por razões óbvias, um órgão estatal não é dotado da autonomia e independência desejáveis para o exercício de pressão e controle social sobre o próprio Estado fornecedor dos serviços públicos (ZÜLZKE, p. 146). Ainda faltava uma ONG para efetivar esse papel.

Em 1978, foi aprovado o Código de Auto-Regulação Publicitária, que veio a ser implantado em 1980 pelo então criado Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR).

Em 1985, o Governo Federal criou o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), integrado por amplos setores da sociedade civil, com a função de assessorar a Presidência da República na elaboração de uma política nacional de defesa do consumidor. No mesmo dia, 24 de julho de 1985, é promulgada a Lei nº 7.347, que “disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, que modernizou e revolucionou o processo judicial, que até então tinha o seu alcance restrito à defesa de interesses individuais e, a partir daí, transformou-se em instrumento de defesa de direitos difusos e coletivos em geral.

A chamada Lei de Ação Civil Pública (LACP) instituiu o primeiro mecanismo judicial para a responsabilização civil de agentes públicos ou privados que causassem danos de caráter coletivo ou difuso, inclusive prevendo a possibilidade de o juiz conceder liminar, a

fim de evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, e aos demais bens e direitos protegidos pela lei (artigo 12), sendo que a ação pode ter por objeto, além de uma condenação em dinheiro para reparar eventuais danos, também o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer (artigos 3º e 11) – o que significa obrigar o réu a adotar determinada conduta, ou a abster-se de adotar uma outra, sob pena de pagamento de multa diária, além de configurar-se crime de desobediência37.

Entretanto, o principal motivo pelo qual a promulgação dessa lei foi efusivamente comemorada pelas ONGs foi o fato de ela ter sido a primeira a estabelecer a legitimidade das associações – além do Ministério Público, da União, dos Estados e Municípios, das autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista – para o ajuizamento de ações civis públicas e das ações cautelares correlatas (artigo 5º). Além disso, a lei isentou o autor da ação de quaisquer custas ou despesas com o processo, inclusive honorários periciais, resguardando as associações até mesmo de serem condenadas a pagar honorários de advogado, custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé (artigo 18).

Esta ampla isenção de custas e despesas vem proporcionando, até hoje, um estímulo fundamental à propositura de ações civis coletivas pelas associações. Conforme demonstra a pesquisa exposta no Capítulo 5, a sujeição das associações ao pagamento de honorários periciais, ou mesmo honorários advocatícios em caso de improcedência da ação, inibiria consideravelmente a sua atuação, inviabilizando a utilização das ações coletivas como instrumento de controle social.

Em maio de 1986, são criados os Juizados de Pequenas Causas em São Paulo, facilitando o acesso dos consumidores à Justiça ao desobrigar a presença do advogado e possibilitar soluções mais rápidas para litígios envolvendo pequenos valores.

Foi durante as discussões de propostas para a inclusão do tema da defesa do consumidor na nova Constituição Federal que estava em vias de ser elaborada, no próprio CNDC, que se formou uma comissão de juristas notáveis para elaborar o Anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor. Na mesma época, um grupo de profissionais de diversas áreas, oriundo do Procon, criou, em julho de 1987, o Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, até hoje a associação de consumidores mais conhecida por suas ações judiciais, seus testes comparativos, suas campanhas de mobilização e demais atividades que, em várias ocasiões, ganharam as páginas da grande imprensa e receberam a atenção do governo.

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Com a reforma realizada sobre o Código de Processo Civil em 1994, ampliou-se para todos os processos cíveis a possibilidade de o juiz determinar, inclusive liminarmente, uma obrigação de fazer ou não fazer; mas, na ocasião do advento da Lei nº 7.347/85, isto representava uma inovação relevante.

As Diretrizes Internacionais de Proteção do Consumidor, estabelecidas em 1985 pela ONU, assim como a mobilização das entidades de defesa do consumidor, foram fundamentais para que, na nova Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988, os direitos do consumidor fossem contemplados em diversos artigos: o artigo 5º, XXXII (“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”); o artigo 150, § 5º (“a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”); e o artigo 170, V (estabelecendo a defesa do consumidor como um dos princípios a serem observados pela ordem econômica). O artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu o prazo de cento e vinte dias para que o Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do Consumidor.

Finalmente, após intensas discussões no Congresso, com a participação de juristas e da sociedade, o consumerismo, que no Brasil sempre contou com a intensa participação da sociedade civil, veio a ser consagrado após quase vinte anos de lutas, com a sanção do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078) em 11 de setembro de 199038, sem falar no trabalho

que até hoje as entidades de defesa do consumidor vêm realizando no sentido de fazer com que a lei seja devidamente cumprida.

Percebe-se que os direitos do consumidor, hoje já instituídos legalmente de forma ampla (permanecendo ainda os desafios no sentido da sua efetiva implementação), vieram sendo conquistados paulatinamente, no decorrer de muitas batalhas nas quais, em meio a algumas derrotas – que, por não representarem marcos históricos relevantes, geralmente não são mencionadas nos estudos existentes sobre o tema –, houve também vitórias. Essas conquistas se deram pouco a pouco e com o apoio de massas de consumidores que, com seu clamor, conseguiam dar significativa visibilidade à causa (inclusive pela mídia).

Portanto, tomando-se por base a trajetória do movimento dos consumidores desde a sua origem até o presente, é razoável crer que o crescente reconhecimento dos seus direitos seja um caminho sem volta. Citando, novamente, Ihering, “um direito alcançado sem esforço equivale a uma criança trazida pela cegonha: o que essa ave traz pode perfeitamente ser carregado pela raposa ou pelo abutre. Mas a mãe que deu à luz o filho não permitirá que lho roubem” (1983, p. 27).

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Vale lembrar que, apesar de não fazer referência expressa a direitos do consumidor, o Código Comercial de 1850 já previa, no artigo 210, proteção ao comprador contra o “vício redibitório” (relativo a vícios ou defeitos ocultos na coisa vendida). Também o Código Civil, de 1916, e o Código Penal, de 1940, tratavam da defesa do consumidor em alguns artigos, embora não fizessem menção expressa a essa palavra. Assim também faziam outras normas legais, como o Decreto nº 22.626, de 1933, conhecido como a Lei da Usura, que limitava a cobrança de juros, entre diversas outras.

2.5. O associativismo e o exercício do controle social pelas associações