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2.2 O Processo Civil e a Ordem Democrática Contemporânea

2.2.2 A Democratização Processual Civil e o Processo Comparticipativo

É fundamental analisar as normas constitucionais com outros ramos do Direito, pois o intérprete deve ter os princípios constitucionais explícitos ou não, como ponto de partida dos valores acolhidos no ordenamento jurídico. “Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas”.138

No entanto, o constitucionalismo brasileiro é reconhecido como um projeto político de redemocratização do país decorrente de alterações paradigmáticas no final do milênio que, de forma sumária, com base na força normativa da Constituição,

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BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto. (Organizador). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 5.

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VIANNA, Luiz Werneck, et al. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997. p. 30-31.

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BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto. (Organizador). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 29.

procura dar efetividade às normas constitucionais através de novos processos hermenêuticos de interpretação constitucional.

Assim, a Constituição passa a ter uma preeminência normativa sob a forma de interpretar todos os demais ramos do Direito, através do fenômeno identificado como “filtragem constitucional”, em que a ordem jurídica deve ser lida e interpretada sob a lente da Constituição, expressando os valores nela abrigados.139

Há vários estudos comparativos140 na contemporaneidade que enfatiza a necessidade de dar relevância aos princípios processuais constitucionais. A Europa é uma referência nessa questão, em razão de que seus Estados submetidos aos tratados, incluindo o Reino Unido, necessitam observar e seguir a jurisprudência do tribunal de Estrasburgo, notadamente, em relação a garantias estabelecidas no Artigo 6.º (1)141 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.142

Essa convenção criou cinco garantias como fontes do direito processual: (i) o acesso à Justiça (apesar de não constar expressamente no texto, restou de modo implícito pela European Court of Human Rights); (ii) uma audiência justa, incluindo o direito das partes estarem presentes na audiência, igualdade, apresentação imparcial da prova, direito a um depoimento e de ter um julgamento fundamentado; (iii) uma audiência pública, no sentido de que a declaração do julgamento seja público; (iv) uma audiência que ocorra dentro de um prazo considerado razoável; e (v) uma

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BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto. (Organizador). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 44.

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Neil Andrews cita alguns autores renomados que têm se destacado nos campos da pesquisa comparativa, no que tange a discussão acadêmica internacional sobre os princípios fundamentais da justiça civil. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 87-88.

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Extrai-se da obra de Neil Andrews o disposto no Artigo 6.º (1) da mencionada Convenção, que assim rege: “Direito a um julgamento justo: Na determinação de direitos civis ou de obrigações advindas de quaisquer acusações criminais contra si, qualquer pessoa terá o direito a uma audiência justa e pública, conduzida dentro de prazo razoável, por um tribunal, criado por lei, independente e imparcial”. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 65.

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ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 64.

audiência realizada perante um tribunal que goze de independência e imparcialidade instituído por lei.143

No Brasil, essa realidade não é diferente. As questões referentes à relação existente entre o direito constitucional e o direito processual perpassam a observância da tutela constitucional das garantias fundamentais das partes (princípios constitucionais do direito processual), da jurisdição constitucional, do Poder Judiciário e das funções essenciais à justiça.

O direito constitucional define a moldura dentro da qual o intérprete exercerá sua criatividade e seu senso de justiça, sem conceder-lhe, contudo, um mandato para voluntarismos de matizes variados. De fato, a Constituição institui um conjunto de normas que deverão orientar sua escolha entre as alternativas possíveis: princípios, fins públicos, programas de ação.144

O tratamento coerente e principiológico do direito constitucional servem de orientação na busca do sentido e alcance das normas jurídicas. No dizer de Bonavides, os princípios constitucionais “são qualitativamente a viga mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição”.145

Extrai-se assim, que no estudo concreto dos institutos processuais, a aproximação entre o processo e a Constituição, sob uma condensação sistemática e metodológica constitucional, toma o nome de direito processual constitucional146, em costumeira referência da doutrina atual, não se tratando, portanto, de um ramo autônomo do Direito.

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ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 100-101.

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BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto. (Organizador). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 9.

145

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 305.

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O direito processual constitucional trata de uma colocação científica, sob a perspectiva metodológica e sistema, não se enquadrando como um ramo autônomo do direito processual, com o enfoque de “examinar o processo em suas relações com a Constituição. O direito processual constitucional abrange, de um lado, (a) a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e do processo e (b) de outro, a jurisdição constitucional”. A tutela constitucional do processo trata-se de matéria específica da teoria geral do processo, enquanto a jurisdição constitucional envolve matérias atinentes ao direito constitucional, direito processual e ao direito processual penal. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 98-99.

O processo como instrumento de manifestação do Estado democrático e de Direito, deve ser compreendido a partir da Constituição Federal, especialmente, seu objeto, fundamentos, premissas e princípios, consagrando-o num modelo constitucional do direito processual ou devido processo constitucional.

Para Cássio Scarpinella Bueno, o direito processual civil e seus respectivos institutos devem ser analisados sob o prisma constitucional e infraconstitucional. O primeiro campo constitucional “delimita, impõe, molda, contamina o modo de ser de todo o direito processual civil”, enquanto que, no segundo, o “direito processual civil é, assim, caracterizado, conformado, pelo que a Constituição impõe acerca da forma de exercício do poder estatal”. Deste modo, assevera ainda o citado autor que, numa concepção técnica do processo, ou seja, “(o ‘ser’ do processo, do método de exercício do Estado-juiz)”, bem como sob o aspecto teleológico “(os fins a serem atingidos pelo processo, isto é, pela atuação jurisdicional do Estado)” estão vinculados ao modelo de processo reservado pela Constituição e de forma mais ampla para o direito processual civil como um todo, que, igualmente deriva da Constituição Federal.147

Em outras palavras, isto quer dizer que as linhas mestras de um Código de Processo Civil, por exemplo, só podem ser traçadas com vistas ao “modelo constitucional de processo civil”, estabelecido por um Estado Constitucional, que é um Estado Democrático de Direito, conforme ideia instituída pelo artigo 1º da Constituição Federal brasileira de 1988.148 Nesse contexto, para a construção de um Código de Processo Civil em conformidade com a Constituição, faz-se necessário esboçar três critérios fundamentais: “o direito processual deve ser construído à base dos princípios da segurança jurídica, da igualdade de todos perante o Direito e do direito à participação no processo”.149

Desta forma, a Constituição Federal de 1988 elenca em seu artigo 5º, grande parte dos princípios processuais inserido do título “Dos direitos e garantias fundamentais”, demonstrando assim, a importância do estudo sobre a tutela constitucional do processo, que determinam padrões políticos para a vida.150 Apesar

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BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 1. p. 110.

148

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 15.

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MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 15.

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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, Re

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da Constituição Federal não conter, explicitamente, em sua estrutura a adoção do princípio do acesso à justiça, este por sua vez, permeia todo o seu sistema, dada a sua relevância sociopolítica de primeira grandeza.

Por essa razão, entre as garantias asseguradas constitucionalmente, avulta- se a garantia do acesso à justiça como síntese de todas as garantias, até mesmo a do devido processo legal151, expressão oriunda da inglesa due processo of law, contida no inciso LIV do artigo 5º da Constituição brasileira, no sentido de se ter um “processo pluralista, de acesso universal, participativo, isonômico, liberal, transparente, conduzido com impessoalidade por agentes previamente definidos e observância das regras etc”.152 É, portanto, através desse aperfeiçoamento do processo e de seus resultados que reside a promessa constitucional, porque assim deve ser, também, o próprio Estado - modelo político - da democracia.

Da relevância desses dois princípios são substancialmente derivados todos os outros, dos quais decorrem todas as consequências processuais, possibilitando o direito a um processo e uma sentença justa aos litigantes. Contudo, “a justiça não pode apenas limitar-se a dizer o justo, ela deve simultaneamente instruir e decidir, aproximar-se e manter as suas distâncias, conciliar e optar, julgar e comunicar”.153

Nesse contexto, percebe-se que os princípios do devido processo legal e do acesso à justiça fundamentam todos os demais princípios, pois, para a efetivação deste acesso, são essenciais à ampla atuação de todas as demais garantias constitucionais processuais154. Como visto, mais do que um princípio, o acesso à justiça é a síntese de todos os princípios e garantias do processo, que só se mostram eficazes se considerada em suas interações mútuas com a cidadania e democracia.

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“O direito comunitário europeu, bem como o direito interno italiano, vêm desenvolvendo estudos acerca do devido processo legal, dando-lhe a denominação de justo processo. Essa denominação do instituto do devido processo tem encontrado adeptos na doutrina brasileira. Justo processo – ou fair procedure, ou faires Verfahrem – nada mais é do que a procedural due process clause, ou seja, o devido processo legal processual, ou, mais simplesmente, devido processo”. (grifo no original). NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na constituição federal: processo civil, penal e administrativo. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 100-101.

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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, ad

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DI

2009, v. 1. p. 202-203.

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GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 21.

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A Constituição Federal de 1988 impõe expressamente alguns princípios que devem prevalecer em relação a todo tipo de processo, os quais destacam-se: o do devido processo legal, o da inafastabilidade do controle jurisdicional, o da igualdade, da liberdade, do contraditório e ampla defesa, juiz natural e publicidade.

A ideia de Estado Democrático de Direito consagrada na Constituição brasileira em seu artigo 1º, proclama e fundamenta o Estado, sendo que o termo democrático destina-se a qualificar o Estado, e serve para irradiar “os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito, então, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajustar-se ao interesse coletivo”.155

Observe-se, todavia, que a previsão constitucional do Estado de Direito democrático inserida no referido dispositivo legal, traduz a síntese histórica de dois conceitos que não podem ser confundidos, a saber: os de constitucionalismo e de democracia. “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria”.156

Com efeito, em que pese existirem outras experiências e tradições constitucionais que marcaram no decorrer do século XX os traços característicos do constitucionalismo moderno157, este consolidou-se a partir de três modelos ao longo dos séculos XVII e XVIII, no caso, Inglaterra, Estados Unidos e França, especialmente, esses últimos dois modelos.158 Na perspectiva contemporânea de desenvolvimento do constitucionalismo, logra-se que o “modelo constitucional do processo civil assenta-se no entendimento de que as normas e princípios constitucionais resguardam o exercício da função jurisdicional”.159

A democracia deve ser compreendida em contraposição a todas as formas de governo autocrático e é definida por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que instituem quem tem autorização para decidir coletivamente e com

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SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 119.

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BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, tomo III. p. 308.

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Importante enfatizar o caso da Alemanha que certamente influenciou a noção contemporânea de constitucionalismo e que no dizer de SARLET, “tanto no que diz com a promulgação de sua primeira Constituição Republicana, de Weimar, em 1919, até hoje considerada a primeira e mais influente constituição (democrática) do constitucionalismo social, quanto pela profícua produção jurisprudencial de seu Tribunal Constitucional e a influência da doutrina constitucional alemã a partir da vigência da Lei Fundamental, de 1949. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 42.

158

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 39.

159

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 93, n. 337. p. 107, jan,/mar. 1997.

quais procedimentos.160 No entanto, para que se realize esta condição, faz-se necessário ainda garantir aos chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir os direitos de liberdade, de opinião, de reunião, de associação, cujos direitos serviram de nascedouro do Estado liberal em que se construiu “a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do individuo”.161

A democracia não se desmorona, mas transforma-se através do direito. Os dois modelos anteriores – direito formal do Estado liberal, direito material do Estado-providência – estão, hoje, esgotados, e um novo modelo de direito e de democracia está a eclodir. Eis-nos, portanto, num momento crucial da história da justiça e face a uma transformação das nossas democracias.162

Nas democracias consolidadas, não há como imaginar o exercício da autoridade estatal independente da vontade do povo, uma vez que a soberania popular retrata a indissociabilidade da expressão legislativa, administrativa e judicial, assim sendo: “a democracia é um processo de convivência social em que o poder

emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo”.163

Como visto, a democracia exige o debate plural de ideais e a liberdade de expressão, no entanto, é oportuna a advertência de Calmon de Passos ao lembrar que não há convivência humana livre de qualquer relação do poder, cuja característica é apontada pela desigualdade, no entanto, a questão não reside na supressão do poder nas relações humanas e sim, na forma de como esse poder é domesticado.164

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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 30.

161

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 32.

162

GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 24-25.

163

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 126.

164

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 49.

Para o fortalecimento da legitimação democrática do Estado, assentada pelas normas constitucionais que autoriza e fornece limites para o exercício deste poder, Friedrich Müller165 salienta que:

Os poderes ‘executantes’ [‘ausführenden’] Executivo e Judiciário não estão apenas instituídos e não são apenas controlados conforme o Estado de Direito; estão também comprometidos com a democracia. O povo ativo elege os seus representantes; do trabalho dos mesmos resultam (entre outras coisas) os textos das normas; estes são, por sua vez, implementados nas diferentes funções do aparelho do Estado; os destinatários, os atingidos por tais atos são parcialmente todos, a saber, o ‘povo’ enquanto população. Tudo isso forma uma espécie de ciclo [‘Kreislauf’] de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação.

É nesse contexto global de legitimidade democrática que o povo deve ser caracterizado e, conforme adverte Müller, as decisões judiciais devem ser proferidas em nome do povo166, que deve “ser compreendido em qualquer indivíduo que seja sujeito de interesses juridicamente tutelados, protegido pela possibilidade de apreciação de seus conflitos e, preponderantemente, como novo partícipe na realização concreta da seara política”.167

Importante frisar a distinção entre democracia representativa e democracia participativa. O primeiro modelo de democracia encontra-se em falência na modernidade, não sendo mais capaz de “cumprir suas promessas”168, todavia, o segundo modelo de democracia participativa trata-se de um Direito já positivado na Constituição169, mas que, na contemporaneidade, ainda figura de forma inanimada e

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MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 60.

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“Não se pode esquecer também que o Poder Judiciário emana do povo. Assim, a sentença é o momento em que o juiz mais responde ante o povo pelo uso que faz desse poder. Por isso, é imprescindível que a sentença seja clara e convincente para que o sentimento do juiz seja compreendido sem dificuldade”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 248.

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RIBEIRO, Darci Guimarães. Da tutela jurisdicional às formas de tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 99.

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As seis promessas não cumpridas pela democracia representativa são apresentadas por BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 34-45.

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O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo. As primeiras manifestações da democracia participativa consistiram nos institutos de democracia semidireta, que combinam instituições de participação direta com participação indireta, tais como: - a iniciativa popular pela qual se admite que o povo apresente projetos de lei ao legislativo, desde que subscritos por número razoável de eleitores, acolhida no art.

programática pelos poderes legislativo e executivo, em que pese sua progressão gradativa.

A democracia participativa é um direito constitucional de vanguarda e progressivo, com o propósito de nepolitizar a legitimidade, desde às suas origens históricas, marcado pelo período em que figurou como “bandeira de liberdade dos povos”.170

Nesse viés, Bonavides assevera que “não há democracia sem participação” e complementa ainda, afirmando que esta forma de participação direciona para “forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses”.171

Assim, indaga-se sobre a possibilidade de concretização da democracia em uma sociedade e Estado que mantém as desigualdades e preserva as prerrogativas individuais de um determinado grupo. Para tanto, é importante atentar neste momento para outro ator, considerado tão ou mais legítimo que os outros poderes, em que pese não gozar da legitimidade popular manifestada pelo voto, o Poder Judiciário.172

Destarte, a democracia participativa avulta para destacar o papel não só de maior inserção do indivíduo nas escolhas administrativas e legislativas, mas também e principalmente a partir do âmbito judicial, pois o acesso ao poder judiciário é irrestrito, bastando lesão ou simples ameaça a direito para que este abra suas portas ao indivíduo, ao povo – assumindo este a conotação ampla anteriormente exposta. Esta abertura, por assim dizer, cria para os indivíduos em sociedade a

14, III e regulada no art. 61, § 2º; [...]; - o referendo popular que se caracteriza no fato de que projetos de lei aprovados pelo legislativo devam ser submetidos à vontade popular, atendidas certas