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2. O IHGRGS e suas relações com o espaço de poder

2.3. Ambivalências do métier intelectual: na antessala do poder, mas distante das

2.3.2. Eduardo Duarte – as vicissitudes do intelectual e funcionário público de

2.3.2.1. A dependência e vulnerabilidade do intelectual em relação ao espaço político:

Logo após completar 35 anos de trabalhos ao Estado, Duarte andava às voltas com a comemoração do centenário da Revolução Farroupilha. Entrementes, já planejava a aposentadoria. Por carta, anunciou a Souza Docca o propósito de aposentar-se, mas não antes da Grande Exposição: “Estou na expectativa de aposentadoria, ao chegar setembro, que antes não poderei”. 246 Os planos de aposentadoria incluíam a construção de uma casa de verão em Esteio, assim justificada: “É uma imposição para mim e para

os pequenos, que são quatro em casa, pois o primogênito ingressou no seminário com uma pronunciada vocação ao sacerdócio”, referindo-se aos netos. Mas, passou o mês de

setembro, e Docca soube dessa vez por carta de Aurélio Porto: “O Duarte não dá sinais

245 Para Bourdieu (2006b) o processo de diferenciação do campo científico e, por extensão, de outros

campos, se dá “ao mesmo tempo com a ajuda do Estado e contra o Estado e deve constantemente ser defendida com o Estado e contra o Estado” (p. 98). Portanto, a atuação de agentes intelectuais próximos do Estado pode dar a falsa impressão de que esses agentes defendiam os mesmos interesses dos agentes do campo de poder, quando na verdade, apesar de serem interesses homólogos, eram distintos. Muitas vezes, os intelectuais tinham de “transigir”, de “fechar os olhos” para alcançar pequenas vitórias da esfera intelectual.

246 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto alegre, 6 de maio de 1935. Fundo Eduardo Duarte,

Arquivo do IHGRGS. Na verdade, desde 1933, quando retornou do Rio de Janeiro, onde estava auxiliando Aurélio Porto na publicação de O Processo dos Farrapos, Duarte mobilizava-se pela aposentadoria. Em carta a Docca, registrou: “Após a volta do Rio, passei a tratar de minha aposentadoria (35 anos em maio) e agora estou apressando-a. O general foi consultado e prometeu darma (sic) com melhores vantagens das que as que tenho (sic) no exercício do cargo atual. É possível mesmo que o assunto se resolva nos primeiros dias do próximo mês; sairei então para a serra, onde passarei dois meses e, à volta, me integrarei de corpo e alma ao Instituto, sem preocupações do ponto nem da panela” (Porto Alegre, 27 de dezembro de 1933).

de aposentadoria, e o Flores não se manifesta”.247 Passado o ano do centenário, o trabalho não arrefeceu para o secretário do Instituto: “Estou de novo na estacada, e até

os olhos de trabalho”. Responsável pela publicação dos Anais do Primeiro Congresso

de História, realizado em outubro de 1935, pela organização do Segundo Congresso de

História em Rio Grande (1937), e pela publicação da Revista, Eduardo Duarte queixava-

se ao amigo militar: “Há dias que ando para escrever-te dando notícias do rincão, mas

tenho andado com agua pela barba...”.248 Aurélio Porto, que na mesma época buscava auxílio para terminar o trabalho de anotação do Processo dos Farrapos, se identificava com Duarte na condição de funcionário público desvalido. Dizia, desesperançado, ao mesmo destinatário: “Telegrafei ao Getúlio [Vargas] também, pedindo qualquer cousa aqui. Estou disposto a perder todo o meu tempo e pedir demissão”. Tornava-se cético em relação à própria aposentadoria, especialmente, ao ver a situação do confrade Duarte, que “à espera de que caia do céu mais uns magros cem mil reis”, concluía: “não se aposentará tão cedo”.249 Em novembro de 1937, Duarte fala em carta a Docca em

tom de momentâneo desalento sobre a aposentadoria que não dava sinais: “E eu – desço

o monte da vida, ainda guindado ao cargo. E já são 38 anos. Arreganharei, morrerei na cancha”.250No ano seguinte, o quadro de espera não se alterara: “a aposentadoria não na consegui (sic); durante seis anos fui tapeado e agora espero somente o reajustamento de tabelas para entrar, então, em descanso, que já não é sem tempo”.251

Aos poucos, Duarte começa a afastar-se da condução direta das atividades do Instituto. Forçosamente, por um problema de saúde,252 ficou seis meses no interior do estado, durante o ano de 1938. Nesse período, Walter Spalding começou a substituí-lo

na secretaria do Instituto: “O Instituto, isto é, a secretaria ficará com o Spalding. Grande

substituição, e ele, o Spalding, levará o nosso sodalício mais longe do que eu poderei fazer. Deo gratias”.253 Assim augurava sobre o jovem e promissor substituto, embora

247 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca, Porto Alegre, 21 de novembro 1935. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

248 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 5 de dezembro de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

249 Carta de Aurélio Porto a Docca, Esteio, 2 de fevereiro de 1936. Fundo Souza Docca, Arquivo do

IHGRGS.

250 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 5 de novembro de 1937. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

251 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 6 de janeiro de 1938. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

252 Duarte sofreu por uma colite ulcerosa que só foi diagnosticada em 1938, depois de quatro anos de

padecimentos.

253 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 6 de janeiro de 1938. Fundo Souza Docca,

essa expectativa não viesse a se concretizar. A esta altura, para certo alívio de Duarte, seu genro – Abelardo Marques – passou em primeiro lugar no concurso para professor da Escola Superior de Comércio. Exultou com o êxito do esposo de sua única filha,

Silvia, pois “um grande e belo exemplo legará aos filhos. Deus seja louvado”. Sem, no

entanto, ocultar o contentamento que esta conquista trazia em relação à provisão financeira da família: “Foi um favor de Deus, pois são cinco filhos, quatro homens, todos a desbravarem o caminho da vida e – dinheiro haja”.254 Sobre sua aposentadoria, buscou o auxílio do amigo e Desembargador Florêncio de Abreu, do qual testemunhou:

“Esteve em campo, lança em riste, por mim, velho lutador, que espera melhorar a sua

situação”.255 Nesta época, tinham lhe acenado com o cargo de diretor do Museu, depois da aposentadoria de Alcides Maia. Mesmo assim, mostrava-se pouco crédulo ao contar a possível promoção a Docca: “O nosso querido diretor (como dizia Aporeli) está em caminho de aposentar-se e dizem que eu serei o seu substituto. Acreditas? A justiça dos homens é tão falha! Enfim, veremos”.256

Em agosto do mesmo ano, nada havia mudado. Apesar do prestígio intelectual, reafirmado pela recepção da condecoração do Governo Italiano, continuava na

“estacada”. Havia a percepção de que a dependência do poder público tornava sua situação vulnerável à vontade dos políticos no poder. Desabafou: “E continuo no

mesmo cargo – pois bem compreendi o verdadeiro sentido do final de tua carta. É isso mesmo, entretanto, infelizmente, os homens que tem estado em nossa pública governança ainda não quiseram fazer, no meu caso, um pouco de justiça”. Tudo isso não o fazia desistir, embora às vezes um pouco desacreditado, esperava: “Paciência. No entanto, já lá vão quase quarenta anos no funcionalismo – e justo me parece a aposentadoria do ponto, ao menos”.257 E, dizia a Souza Docca, numa autoexortação:

“Enfim, continuemos esperando”.

A aposentadoria veio em 1939 como vice-diretor do Museu do Estado. Depois de aposentado, Eduardo Duarte, completamente recuperado da moléstia que o fizera afastar-se do trabalho por alguns meses, a título de licença-prêmio, pode, então, dedicar- se ao trabalho médico numa clínica de olhos em Guaporé: “É verdade, como te disse o

254 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 9 de agosto de 1938. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

255 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 28 de junho de 1938. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

256 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca. Porto Alegre, 28 de junho de 1938. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

257 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca. Porto Alegre, 9 de agosto de 1938. Fundo Souza Docca,

Guerreiro, estive um tempo em Guaporé, inteiramente integrado na clínica. Fiz umas trinta intervenções em olhos e garganta, tendo sido muito feliz”.258 E, viu neste trabalho vantagens adicionais: “Fez-me bem essa excursão, tanto para o lado econômico quanto ao moral; reagi. Entretanto, devo voltar aproveitando esta estação e, depois – Esteio”. Em Esteio, onde comprou um terreno em 1935, Duarte realizou o sonho antigo de

edificar uma “residência de verão” para a família, que ao final tornou-se a residência “oficial”. Compartilhou esse prazer com “amigo de sempre”, e, ao mesmo tempo,

colocava-lhe a nova moradia à disposição:

Estou, finalmente, instalado no Esteio, foi uma via-crucis, que pode bem avaliar quem já construiu um dia. Mas, saiu tudo a nosso inteiro prazer; comodidade, mais do que merecemos, casa para um resto de vida tranquilo, longe do bulício infernal da cidade. Assim, sabes, tens no sul mais um hogar que é teu, dos teus.259

A prolongada espera de Duarte pela aposentadoria indica alguns importantes aspectos da ambígua posição dos intelectuais dentro do espaço de poder no Rio Grande do Sul. Apesar de estar muito próximo do espaço das tomadas de posição política e de gozar de prestígio, agentes intelectuais, como Eduardo Duarte, tinham muita dificuldade em transformar seus trunfos em capital simbólico com peso na esfera política.

Evidentemente, outros aspectos e variáveis da trajetória dos diferentes agentes (laços familiares, capital social herdado, etc.) devem ser tomados em conta para avaliar sua capacidade de adquirir e empregar diferentes tipos de capitais, e reconvertê-los em atributos e vantagens capazes de acionar agentes e decisões no campo de poder. No entanto, o que se pretendeu aqui foi mostrar a vulnerabilidade e dependência da posição do intelectual que retira o seu sustento da sua ocupação como funcionário público em relação ao espaço de poder, e a sua dificuldade para transformar seu prestígio intelectual em vantagens pessoais, mesmo que, legítimas.

258 Carta de Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1940. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.