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2. O IHGRGS e suas relações com o espaço de poder

2.2. O Centenário da Revolução Farroupilha: trabalhos preliminares em meio ao

2.2.2. A construção da “fala autorizada”

Aquilo que estava implícito ao processo de institucionalização intelectual no Rio Grande do Sul era a construção de uma visão social da realidade a ser imposta à sociedade circundante, e de uma visão sobre o lugar social dos intelectuais rio- grandenses, sendo que este lugar era pensado em relação ao espaço de poder, que se expressava através da capacidade dos intelectuais de controlarem o acesso a certos postos públicos da cultura e da prerrogativa de dar a última palavra sobre assuntos relativos ao passado histórico. Neste sentido, a imposição da visão social dos intelectuais rio-grandenses, assim como a criação de um espaço simbólico, eram garantidas pela afirmação do monopólio da autoridade e competência científica (domínio de um método) como mecanismos que assegurassem que somente aqueles intelectuais poderiam dar a última palavra sobre questões da história sul-rio-grandense, e a mesma deveria ser acatada pela sociedade, pelo estado e pelos municípios gaúchos.

Aqui será analisado a construção da “fala autorizada” que servia de baliza para decisões

públicas do governo do estado e dos municípios.

Antes de 1935, o IHGRGS recebeu (relativamente) poucas solicitações de

“Pareceres Históricos” por parte do estado ou de municípios, com vistas a saber da “oportunidade” ou não de se conceder homenagens a vultos históricos, de datas

comemorativas ou mesmo da construção de monumentos públicos alusivos a fatos ou personagens do passado rio-grandense. Logo depois da sua fundação, o Instituto foi consultado sobre um vulto de destaque para prestar homenagem durante a comemoração do centenário da Independência.174 Na mesma época, agosto de 1921, o governo do estado recebeu do IHGB o apelo para organizar a representação rio-grandense ao Congresso Internacional de História da América, convocado por aquela instituição para comemorar o centenário da Independência. Imediatamente, o governo do estado repassou ao Instituto Histórico local, recém criado, a missão de representar o estado naquele certame. Segundo o 1º secretário à época, Francisco de Leonardo Truda,175

apesar do apelo ser “muito tardio” “para que a nossa representação se possa fazer a

altura do que todos nós desejaríamos”, a direção do Instituto local não deixaria de

corresponder “à lisonjeira confiança de que nos deu prova o honrado governo do

174 Carta de Florêncio Abreu a Souza Docca. Porto Alegre, 30 de agosto de 1921. Fundo Souza Docca,

IHGRGS.

175 Carta de Leonardo Truda a Souza Docca. Porto Alegre, 6 de agosto de 1921. Fundo Souza Docca,

Estado”. Atender ao pedido do estado era mais do que “corresponder à subida honra que lhe conferiu o governo”. Era marcar a posição de legítima representante do estado no

terreno da História, ponto capital no processo de construção da “fala autorizada”, já que o “campo” intelectual local, que dava os primeiros passos rumo a institucionalização,

não tinha condições de assegurar a própria legitimidade, sendo dependente de agentes da esfera intelectual nacional e do próprio Estado.

O trabalho de emitir pareceres, que se tornaria mais frequente a partir de meados da década de 1930, atesta a confirmação de uma posição de reconhecimento público do estado, em diferentes esferas, da legitimidade ou autoridade intelectual do IHGRGS em relação à história rio-grandense e ao espaço de poder local. Portanto, foram necessários quinze anos de atividades para que a legitimidade do Instituto se impusesse de tal forma que o estado passasse a recorrer ao Instituto em relação a assuntos que dependiam do conhecimento histórico. Ou seja, de certa forma, a relação se inverte. O estado passa a depender do IHGRGS, que era quem detinha, a esta altura, o poder legítimo de arbitrar sobre o passado sul-rio-grandense. Isso equivale a dizer que o Instituto passou a ter a

prerrogativa de emitir juízos históricos e dizer o que era “verdadeiro” ou “falso” em

questões da história local. Seu grau de legitimidade atingiu o máximo a partir de então.

A fala autorizada do Instituto produzia a “verdade” ou a “história oficial”, com a

chancela das diferentes esferas do estado.

Neste sentido, o contexto da comemoração do centenário foi importante, pois marca o início do apogeu da autoridade histórica do IHGRGS, e um dos marcos da construção desta autoridade foi a fixação da letra e música do Hino Sul-Rio-Grandense. Othelo Rosa, presidente da Comissão de História do IHGRGS, foi o responsável pelo parecer que definiu a letra do hino, proposta feita por Augusto Porto Alegre.176 A chancela governamental também partiu de suas mãos, pois era igualmente o Secretário da Educação e Cultura do estado, ao tempo da referida fixação.

A fixação da letra do hino não partiu diretamente do governo do estado, e sim do próprio Instituto, dentro do escopo que realizou das comemorações do centenário. Othelo Rosa que fez um levantamento histórico, desde o ano de 1933, das possíveis letras do Hino da “República Rio-grandense”, apresentou seu relatório final em outubro de 1934. Nesta ocasião, depois de ampla discussão e pedido de vistas de Alcides Maia, a decisão final foi adiada para uma sessão posterior:

176 Relatório sobre a letra do Hino Rio-Grandense. Othelo Rosa, Porto Alegre, 15 de maio de 1933. Fundo

O nosso confrade senhor Othelo Rosa pede a palavra e faz ampla explanação do assunto, reportando-se à sua indicação anterior e ao parecer sobre ela emitido pelos senhores João Maia e Faria Correa. Leu as diversas letras sobre o hino farroupilha e explicou o trabalho musical feito pelo professor Corte Real, que conservando rigorosamente a melodia da música do maestro Mendanha, completou-a na parte da harmonia, dando-lhe unidade e melhores condições de canto. Sobre o assunto, travou-se longo e interessante debate, concluindo o senhor Alcides Maya por pedir vistas dos papéis, por alguns dias, para, na próxima sessão, apresentar parecer e emitir seu voto com consciência.177

Ainda nesta sessão, deliberou-se, também, que depois da resolução tomada a

respeito da letra do Hino, o Instituto se dirigiria ao governo do estado sugerindo “uma edição oficial do hino e o ato necessário da sua definitiva adoção”.178Antes da reunião seguinte, os membros do Instituto estiveram no Ginásio Anchieta, “onde um dos padres desse estabelecimento de ensino gentilmente executou ao piano a letra do hino de

Mendanha e a harmonização do professor Corte Real”.179 Na sessão pela deliberação sobre o assunto, Alcides Maia apresentou seu parecer, concordando com Othelo Rosa pela escolha da letra de Francisco Pinto da Fontoura, também conhecido pela alcunha de

“Chiquinho da vovó”. Francisco Pinto da Fontoura180 foi um dos poetas do decênio

farroupilha, que publicou na imprensa da época e compôs uma versão para o hino

farroupilha. Os seus versos diziam:

Como aurora precursora do farol da divindade, Foi o Vinte de Setembro

Precursor da liberdade. Mostremos valor, constância, Nesta ímpia e injusta guerra, Sirvam as nossas façanhas De modelo a toda terra. Entre nós reviva Athenas Para assombro dos tiranos;

Sejamos gregos na gloria e na virtude romanos. Mostremos valor, constância, etc.

Mas não basta p’ra ser livre

Ser forte, aguerrido e bravo; Povo que não tem virtude Acaba por ser escravo.

Mostremos valor, constância, etc.

177Ata de reuniões do IHGRGS, de 12 de outubro de 1934, p. 148v. 178 Idem.

179 Idem.

Por outro lado, Walter Spalding, discordando de Othelo Rosa e Alcides Maia, deu preferência aos versos, de autor desconhecido, que foram publicados no jornal O

Povo, órgão oficial da República de Piratini, em 4 de maio de 1839, com o título “Hino Nacional”. Seguem os versos preferidos por Walter Spalding:

Nobre povo Rio Grandense, Povo de heróis, povo bravo, Conquistaste a independência, Nunca mais serás escravo. Da gostosa liberdade Brilha entre nós o clarão: Da constância e da coragem Eis aqui o galardão.

Avante, ó povo brioso, Nunca mais retrogradar,

Porque atraz fica o inferno que vos há de sepultar. Da gostosa liberdade etc.

O majestoso progresso É preceito divinal, Não tem melhor garantia Nossa ordem social. Da gostosa liberdade, etc. O mundo que nos contempla Que pesa nossas ações, Bendirá nossos esforços, Cantará nossos brasões, Da gostosa liberdade, etc.181

Encerrada a discussão e votado o assunto, a decisão foi favorável ao parecer de Othelo Rosa, contra o voto de Walter Spalding.182 Quanto à parte musical, também ficou deliberado que “o trabalho [de harmonização] do professor Corte Real fosse, antes

de uma resolução definitiva, examinado pelas professoras de música das escolas desta capital, para cujo efeito o Instituto se dirigirá à Associação Rio-Grandense de Educação”.183

Outro passo importante que o IHGRGS deu na direção de firmar-se como “juiz” da história local, autorizado pelo estado, foi a proposta apresentada por Alcides Maia, sob a forma de moção ao Instituto Histórico, para dar-se a denominação de Palácio

Piratini à sede do governo estadual. A moção apresentada ao Instituto foi a seguinte: Submeto ao estudo e à deliberação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul a seguinte proposta ao governo do Estado,

181O Povo, 4 de maio de 1839.

182 Ata de reuniões do IHGRGS, de 19 de outubro de 1934, p. 150r.

183 Idem. O professor Corte Real participou das sessões referentes à fixação da letra do hino do estado. O

hino escolhido pelo Instituto Histórico foi oficializado pelo governador Ildo Meneghetti, em 5 de janeiro de 1966, pela lei 5.213. Nesta ocasião, foi suprimida a estrofe que dizia: “Entre nós reviva Athenas. Para assombro dos tiranos. Sejamos gregos na gloria e na virtude romanos”.

relativa ao programa comemorativo do Centenário da revolução de 1835 (República de Piratini): De acordo com a tradição de outros povos e com a nossa própria, a fim de ligarmos para sempre a vida presente do povo rio-grandense, em suas relações internas e externas, à memória do glorioso passado que vamos celebrar em 1935, proponho que: - Avoque a si este Instituto o pedido aos poderes públicos de ser dado ao Palácio do Governo do Estado, em Porto Alegre, o designativo de Palácio Piratini. Sala das sessões, 12 de outubro de 1934. (assinado) Alcides Maya.184

A referida proposta foi unanimemente aprovada, e encaminhada pelo Instituto ao governo estadual.