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2. O IHGRGS e suas relações com o espaço de poder

2.3. Ambivalências do métier intelectual: na antessala do poder, mas distante das

2.3.1. Aurélio Porto e as anotações do ‘Processo dos Farrapos’: as dificuldades para

2.3.1.1. A Enciclopédia Rio-Grandense e a volta ao Rio de Janeiro

Uma das alternativas para os intelectuais da época, para aumento das receitas financeiras pessoais, era o trabalho de redação em jornais. Embora isso não fosse totalmente do agrado de Aurélio Porto, ele acedia ao expediente: “infelizmente, de momento, só posso trabalhar na imprensa. A imprensa é exaustiva, mata todas as energias, atira a gente aonde a gente não quer ir. Mas não tenho outro remédio”.220 As adversidades da profissão e do trabalho intelectual o levavam a ver em si mesmo traços de um D. Quixote, porém atilado:

217 Idem. 218 Idem.

219 Carta de Aurélio a Souza Docca, Esteio, 3 de fevereiro de 1935. Fundo Souza Docca, Arquivo do

IHGRGS.

com coragem, sempre lutando, empaveso (sic) o velho penacho gaúcho e sigo, esgrimindo a minha lança contra a eterna displicência dos que infelizmente não tiveram tempo de aprender a ler. Eterno D. Quixote, não me rebelo quando compreendo que os castelos inimigos não eram mais do que simples moinhos de vento...221

A maneira que Aurélio Porto encontrava para fugir ao aperto financeiro da vida

de “burocrata de ínfima escala”, era procurar, segundo ele, “para não morrer de fome,

explorar o tesouro magnifico que andei acumulando nas minhas pesquisas”.222 Em 1936, Aurélio Porto decidiu publicar, além do Terra Farroupilha (obra de certa envergadura), um Dicionário Enciclopédico Sul-Rio-Grandense, que seria, segundo

projetava, “um grande repositório de tudo quanto existe no Rio Grande, sob quaisquer

aspectos”.223 Tratava-se de um trabalho ambicioso, que contaria, inicialmente, com a publicação mensal de 2.000 fascículos de 50 páginas. Secundado por Armando Lima,

um companheiro de “grande tino comercial”, que estava percorrendo o estado, “a fim de

conseguir assinaturas para esse trabalho”, Porto estimava: “Se não falharem os nossos cálculos, o lançamento material do trabalho está garantido, dando para mantê-lo”.224

Porto convidou Souza Docca para a função de “Redator Principal” do Dicionário, pois, conforme ele, isto viria a “prestigiar grandemente a nossa ação, e ao

mesmo tempo corresponder ao auxilio eficaz que conta prestarás a esse trabalho”. Os assuntos seriam divididos em grandes especialidades, e para cada uma delas seria

convidado um “especialista” no assunto. Por exemplo: “vocabulário regional:

Contreiras Rodrigues; historia eclesiástica, Cônego Balem; jesuítas, P. Jaeger; geologia e mineralogia, Tupi Caldas; geografia médica do RGS, prof. dr. Ney Cabral, e outros”.225 Porto já tinha em conta “12 especialistas” escolhidos, entre os quais encontrara “entusiasmo”.

Em maio de 1936, Porto informou a Docca que fez a entrega dos originais do primeiro fascículo à tipografia, lamentando que, naquele número, fosse escassa a colaboração do amigo, bem como a de outros colaboradores.226 Sobre o esforço despendido para a realização da tarefa, assinalou: “o 1º fascículo representa um esforço

221 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 6 de abril de 1936. Fundo Souza Docca, Arquivo

do IHGRGS.

222 Idem. 223 Idem. 224 Idem. 225 Idem.

226 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 23 de maio de 1936. Fundo Souza Docca,

titânico. Fi-lo quase só. Lá um ou outro me enviou pouca cousa, e eu tive necessidade de me desdobrar como verás”.227

Premido pelas condições de vida, Aurélio Porto, naquele ano, afastou-se temporariamente do Museu Júlio de Castilhos, para trabalhar na Prefeitura de São Leopoldo, como Secretário Municipal. Segundo ele, “um enorme sacrifício”, que era

compensado pela remuneração de “um conto e quinhentos” mil réis:

Depois da última vez que te escrevi, muitas modificações sofreu a minha vida. Em primeiro lugar, instado pelo Theodomiro228 para

aceitar o cargo de secretário do Município de São Leopoldo, aceitei e, todos os dias vou para lá às 8 da manhã e volto as 6 da tarde. Só tenho a noite e os domingos para trabalhar. Faço um sacrifício enorme, mas em compensação tenho lá um conto e quinhentos que me põe a coberto de qualquer necessidade. A vida tem que ser assim. É muito trabalho, mas posso, sem olhar o dia de amanhã, perder tempo nestas cousas que não dão resultado algum. Deixei o Museu do Estado, tendo sido posto à disposição da Prefeitura de São Leopoldo. Deverei breve residir ali, pois perco muito tempo em minhas idas e vindas.229

Mesmo trabalhando em São Leopoldo, o historiador não deixou de dedicar-se ao

Dicionário. Então, segundo ele, “o trabalho tem tido grande aceitação e, posso-te

assegurar que será garantida a sua manutenção pelo número sempre crescente de assinaturas que se vai conseguindo”. No entanto, lamentava a falta de tempo, pois:

Para ganhar a vida tenho de ir diariamente a São Leopoldo e ali passar o dia. Volto à tarde, e é quando me entrego ao trabalho, que é bastante árduo, até altas horas da noite. Mas isto será até o fim do ano, porque melhoradas as condições do funcionalismo público, aqui, voltarei de novo ao Museu.230

O historiador expressava suas saudades do Rio de Janeiro, ao cumprimentar o

amigo destinatário de tantas correspondências, nas seguintes palavras: “faço votos para

que nessa maravilhosa Copacabana a vida te decorra feliz e boa. Como te invejo! E como sinto saudades dessa terra admirável, que jamais esquecerei”. Bem como exprimia

o seu desejo de retornar àquela metrópole: “Oxalá possa ainda voltar e, ouvindo o mar,

227 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 27 de junho de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

228 Theodomiro Porto da Fonseca, primo de Aurélio Porto e prefeito de São Leopoldo.

229 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 23 de maio de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

230 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 22 de julho de 1936. Fundo Souza Docca,

como dantes, sentir ainda as últimas vibrações de uma vida que decorre na mais feroz das lutas capazes de consumir a existência mais forte”.231

Após alguns meses de intervalo epistolar (julho a setembro de 1936), Porto remete nova carta a Souza Docca, escusando-se pelo período de silêncio, descrevendo seus muitos trabalhos na Secretaria de São Leopoldo e com o Dicionário, e, por fim, reitera o pedido de ajuda ao “maior dos nossos homens da História” para levar a termo o projeto iniciado:

se visses o meu trabalho, a minha falta de tempo para tudo, as minhas três horas perdidas para ir e vir de São Leopoldo, o trabalho que lá tenho, e as noites dedicadas a escrever e coordenar o Dicionário, naturalmente me perdoarias essa falta. Quando iniciei este trabalho do

Dicionário não imaginei de ser um dia secretário de uma Prefeitura, e

que esse encargo desse tanto trabalho, e me roubasse tanto tempo. Mas depois de lançado o Dicionário não poderia mais recuar, embora seja isto o maior sacrifício da minha vida. Mas hei de levá-lo avante, custe o que custar. Realmente, tens razão, sem tempo para realizar uma obra a que só deveria me dedicar fui meio precipitado, mas que queres, o tempo passa e não durarei muito, sendo justo que, ao menos, em forma de pequenas indicações, possa registrar para o nosso Rio Grande os dados, principalmente genealógicos, que colhi em largos anos de pesquisas. E aí está a razão principal do meu afobamento. Agora é preciso que vocês todos me ajudem, principalmente tu, que és o maior dos nossos homens da História.232

Em outubro de 1936, Porto registrava a instabilidade política que se fazia sentir:

“Os horizontes aqui andam escuros. E essa escuridão está se refletindo até em mim, que

nada mais desejo senão trabalhar”. Queixava-se mais uma vez: “Tive ordem de voltar ao Museu e deixar São Leopoldo. Isso, porém, seria, voltar à miséria, e não sei se o farei. Mas, como sabes, coragem não me falta para a luta contra a adversidade”.233 Aurélio Porto tinha razões para acreditar que não estava entre aqueles que contavam com a simpatia de Flores da Cunha.234

231 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 27 de junho de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

232 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 13 de setembro de 36. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

233 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 4 de outubro de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

234Para concluir isto, basta lembrar as palavras do próprio Aurélio Porto sobre Flores da Cunha: “Parece que decaí na sua simpatia” (3/02/1936). Há indicações para uma correlação, ainda que não linear, entre as vicissitudes do funcionário público Aurélio Porto e as tensões e disputas entre o governo estadual e central, durante a década de 1930. Após um breve momento de alinhamento entre Vargas e Flores da Cunha, este se empenhou pela união dos dissidentes da FUG em uma nova agremiação partidária liderada por ele próprio, no final de 1932. Imediatamente antes das eleições de 1933 para os representantes estaduais à Constituinte Nacional, Flores procedeu à perseguição e remoção dos funcionários públicos

Entretanto, no mês seguinte, a vida de Aurélio Porto dá uma nova guinada. Com

a ajuda de Souza Docca, Porto recebe o convite e as “vantagens” para voltar ao Rio de

Janeiro, a fim de lá trabalhar como redator dos Anais do Ministério das Relações Exteriores:

Recebi ontem tua carta, outra do dr. Bezerra e dois telegramas do Alencastro Guimaraes. Estes últimos vieram truncados, de forma a dar a entender que a comissão do Itamarati seria somente por mês e meio. Mas, melhor elucidado pelas cartas, telegrafei ao Alencastro pondo- me à disposição do Ministério e pretendo seguir no primeiro vapor de dezembro, porque o tempo seria escasso para estar aí até o dia 15 do corrente. Aceitei o teu alvitre e mandei pedir uma ajuda de custo, com o que melhor atenderei a despesas de instalação.

Por enquanto a família não poderá ir, mas no princípio do inverno irá passar alguns meses ou mais tempo, conforme a situação determinar. Estou cansado disto e com vontade de ir para longe. Daí mesmo, como não poderei, por motivo de compromisso moral, deixar o Dicionário mandarei os originais para aqui até terminar o 1º volume.235

Assim, ao invés de cumprir a ordem de voltar ao Museu do Estado, Aurélio Porto preferiu sair da repartição, e seguir para o Rio de Janeiro, inicialmente sozinho, depois a família o acompanharia. Desta vez, sua mudança coincidiu com o rompimento do Modus Vivendi rio-grandense. O PRR e o PL, que desde 1932 haviam se colocado em oposição a Vargas, agora giravam em torno das decisões do governo central, opondo-se a Flores da Cunha. E Vargas, por sua vez, incentivava as dissidências dentro da política gaúcha, atraindo para sua órbita de influência seus antigos opositores do PRR e PL e, inclusive, do próprio PRL, com vistas ao enfraquecimento político de Flores da Cunha.

Com o retorno de Aurélio Porto, cessam novamente as cartas entre os dois historiadores. Antes do reencontro com Docca, porém, antecipava as palestras entre

ambos: “tenho muita cousa para te contar, o que por carta não se pode dizer. E estou

ansioso para que chegue esse momento”. E agradecia a ajuda recebida: “Ainda uma vez

te agradeço de coração o empenho que tens feito pela minha volta”.236 A publicação do

Dicionário ficou interrompida, e somente apareceram três fascículos – julho, agosto e

que não votavam em seu partido. Coincidiu com este período a primeira ida de Aurélio Porto para a Capital Federal.

235 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 4 de novembro de 1936. Fundo Souza Docca,

Arquivo do IHGRGS.

236 Carta de Aurélio Porto a Souza Docca. Porto Alegre, 4 de novembro de 1936. Fundo Souza Docca,

setembro de 1936. Quando faleceu em 1944, Porto era diretor dos Anais do Ministério

das Relações Exteriores (LAYTANO, 1979, p. 75).

Todo este episódio expressa o grau de aprofundamento da dependência das relações entre intelectuais e políticos no Rio Grande do Sul, da primeira metade do século XX, e as limitações da esfera intelectual em relação ao espaço político, intensificadas pelas instabilidades conjunturais. Porém, revela, também, como os intelectuais agiam para contornar aquelas limitações, através do acionamento de redes de solidariedades intelectuais e políticas. Finalmente, esta ocorrência põe em relevo as contradições entre o discurso desinteressado dos intelectuais, e os constrangimentos

econômicos que envolviam a atividade intelectual, pois “para não morrer de fome” o intelectual utilizava o “tesouro acumulado” de suas pesquisas.