• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 01 - A DISCUSSÃO TEÓRICA

1.3. A Descentralização

Esta parte da pesquisa aborda o processo de descentralização, que foi tópico específico desse novo arranjo do federalismo no Brasil e prática de governos posteriores.

Considerando o fato de o Brasil ter grande extensão territorial e populacional (heterogêneas entre si), assim como a descontinuidade do regime ditatorial brasileiro (1964-1985) e com o fortalecimento das elites regionais, era necessário assumir a descentralização do governo como parte do processo de redemocratização do país (FALLETI, 2006). A descentralização, segundo Arretche (1996), significa retirar do centro certos recursos e/ou competências, e/ou poder decisório do governo central, e realocá-los para governos subnacionais. Contudo, enfatiza-se aqui – na tentativa de também avançar na fixação dos conceitos já estabelecidos em termos de contextualização histórica do caso brasileiro – o conceito de descentralização definido por Falleti (2006: 47): “[...] o processo de reformas nas políticas públicas que transferiu recursos, responsabilidades e /ou autoridade política do governo central para os governos subnacionais após o fim do Estado desenvolvimentista [...]”.

Assim, a descentralização assume o palco central, a partir da década de 1980, com debates e reformas em torno do Estado. Contudo, o processo de

26

Figura 2 – Criada para compreender a geometria do federalismo durante o processo de redemocratização do Brasil, descentralizado; os municípios passaram a ser considerados entes autônomos em contraste à União.

descentralização no Brasil não obedeceu a um programa/projeto pré-estabelecido pelo governo federal:

Seria assim, impreciso afirmar que tenhamos no Brasil um processo de descentralização das estruturas administrativas e das funções do Estado. Na verdade, para além dos esforços de descentralização de alguns programas públicos e dos resultados descentralizados que as iniciativas dos níveis subnacionais têm ensejado, não existe uma estratégia ou programa nacional de descentralização que, comandada pela União, proponha um rearranjo das estruturas político-institucionais do Estado. (ARRETCHE, 1996, p.: 13)

Em outras palavras, apesar da imposição Constitucional (CF-88), ou como chamaremos – Indução Constitucional – de descentralizar atividades.

Esse processo de descentralização chegou aos governos estaduais e especialmente aos municipais, em que houve diversas dificuldades que Abrucio (2015, p.: 69) apontou como sendo:

1) A desigualdade entre os diversos territórios e municípios, inclusive muitos sem autonomia econômica e incapazes de gerir as políticas de forma autônoma.

2) A “concepção autárquica de municipalismo”, que tentava garantir autonomia para os municípios em resolver seus problemas sem a interferência dos outros entes federativos e, assim, fortalecendo a imagem dos prefeitos com vistas ao sucesso eleitoral em eleições legislativas (deputados estaduais ou federais). Isso aumentou, assim, a força da região e do município ao qual pertenceriam. Tal fato gerou disputas intermunicipais, dificultando uma cooperação federativa.

3) O processo de metropolização, e em uma velocidade acelerada, resultado do crescimento populacional, dos problemas sociais, entre outros.

4) A dificuldade de superação de práticas clientelistas e de tradição oligárquica do poder político regional, sendo preciso aperfeiçoar as instituições locais.

5) As relações intergovernamentais que deveriam melhorar os mecanismos de cooperação para garantir a implementação de

políticas de competências comuns e asseguradas pela Constituição Federal.

Assim, durante o período imediato após a promulgação da CF-88, o processo de descentralização foi desorganizado, o que impactou a oferta de serviços públicos nas áreas de educação, saúde e assistência social, entre outros.

Para Almeida (1995), a ação descentralizadora, decorrente da União, tornou-se necessária por duas razões: em primeiro lugar, está a forma como a Constituição de 1988 estruturou as atribuições das instâncias de governo e, em segundo lugar, a maneira como se fixou o financiamento das ações na área social. Desse modo, deu-se início à guerra fiscal e econômica entre os estados e municípios na tentativa de angariar investimentos, ocasionando diversas transferências de autonomia da esfera federal para outros entes federativos.

As forças que se opuseram ao autoritarismo e impulsionaram a democratização convergiam quanto à necessidade de reforma profunda das políticas sociais, consideradas ineficazes e iníquas. A meta era promover mudanças que garantissem eficácia e equidade. A descentralização era considerada meio e condição para atingir esses objetivos. Todavia, embora houvesse uma inclinação generalizada pela descentralização, não existiu uma verdadeira política de descentralização que orientasse a reforma das diferentes políticas sociais. (ALMEIDA, 1995, p.: 93)

Então, naquele momento, não existiu uma estratégia ou um programa nacional para a descentralização, ocorrendo então sob o impulso da consolidação histórica da democratização e da crise de capacidade estatal do governo federal, permeado de conflitos em torno da descentralização fiscal, o que culminou também na descentralização da despesa pública e no fortalecimento dos níveis subnacionais de governo. Ocorreu, então, uma descentralização nos programas sociais, como a habitação, o saneamento, a educação básica, a assistência social, entre outras, entendidas como direito de cidadania.

Além disso, é necessário esclarecer e desmistificar algumas considerações emitidas sobre a descentralização. Em primeiro lugar, centralização e descentralização são “faces de uma mesma moeda”, portanto, um processo não é excludente ao outro. Em segundo, não é porque o governo central descentralizou certas competências/recursos ou poder decisório, que

isso signifique uma falta de centralização ou enfraquecimento por parte do governo federal. Em terceiro lugar, descentralização não é sinônimo de democracia. Segundo Souza (2008), a relação entre federalismo e democracia se dá por mecanismos institucionais, por isso, surge a necessidade de descentralização, uma vez que isto fortaleceria as instituições que promovem os mecanismos necessários ao exercício democrático. Porquanto, a descentralização é associada à escala ou âmbito das decisões; já o ideal democrático se encontra nas instituições políticas de cada nível de governo. Argumenta-se, ainda, que não se pode ter como estabelecida uma relação direta entre a centralização e a ausência de democracia.

O simples fato de que determinadas questões ou políticas sejam geridas (e/ou tenha seus mecanismos decisórios processados) pelo nível de governo central não é indicador de uma gestão menos (ou mais) democrática.(ARRECTHE, 1996, p.: 06)

Por fim, a descentralização é ineficiente no combate às práticas clientelistas27, tampouco a centralização pode explicá-la. Arretche (1996, p.: 17) argumenta que “o uso clientelístico de recursos públicos está historicamente associado à natureza das relações entre burocracias públicas e partidos políticos”; e nas diversas propostas de reformas do Estado surgidas nos anos 1980 e 1990 – especialmente no processo de redemocratização - que se propôs o abandono de práticas clientelistas como um dos pontos específicos a serem reestruturados. Ocorreram outras propostas, como o fortalecimento dos municípios, a descentralização de programas nacionais de assistência social, entre outras:

Propôs-se a descentralização e regionalização dos programas nacionais de saneamento e habitação; a descentralização, universalização e democratização dos programas de educação básica; o abandono das práticas clientelistas e a municipalização da assistência social como forma de que a prestação de serviços assistenciais equivalesse a um direito de cidadania; a unificação e descentralização de um sistema nacional de saúde capaz de universalizar o atendimento à população. (ARRETCHE, 1996, p.: 14).

27 Arretche (1996) afirma que: “[...] a redução do clientelismo supõe a construção de instituições que garantam a capacidade de enforcement (aplicação prática) dos governos e a capacidade de controle dos cidadãos sobre as ações deste último”. Assim, o combate do clientelismo se faz na concretude com que as instituições absorvem princípios e valores – o que, segundo a autora, tem variado ao longo do tempo – e na participação do cidadão nas ações do governo.

Falleti (2006) defendeu uma teoria sequencial para a descentralização, com três características principais. A primeira característica define a descentralização como sendo um processo tridimensional de políticas públicas, com reformas nas políticas estatais – segundo Souza (2008), quando se trata de descentralização, a maioria dos autores concorda que, de todas as variáveis, as mais importantes, entre níveis de governo, são a Administrativa, Fiscal28 e Política29. A segunda característica leva em conta os interesses políticos tanto em termo nacional quanto regionais, formulada a partir da experiência obtida da década de 1980, com o surgimento de elites regionais, no fim do Regime Militar, e trabalhos empenhados para a Nova Constituinte, com a retomada do voto direto. Afinal, os interesses territoriais – das mais diversas regiões do Brasil – e o poder de barganha deles também conta.

Por fim, a terceira característica considera o impacto que diferentes sequências de reformas descentralizadoras (Administrativa, Fiscal e Política) ocasionaram ao equilíbrio intergovernamental do poder. Logo, se antes da Constituição de 1988 a União era a detentora da oferta dos direitos sociais, agora – pós-CF88 – ela descentraliza para os outros entes federativos mediante imposição Constitucional.

Nesse sentido, a autora (FALLETI, 2006) ainda argumenta que o aumento do poder dos governos locais ou da União se dá pelo desenho institucional de cada política descentralizada. Cada nível de governo tem preferências por certas políticas que privilegiem setores como o Administrativo, Fiscal e, por último, o Político, como é o caso do Executivo nacional. Já os executivos subnacionais preferem políticas descentralizadoras com caráter Político, Fiscal e, por fim, Administrativo:

Se o centro for forçado a escolher entre entregar autoridade fiscal ou política, escolherá transferir autoridade fiscal e manter o controle político, podendo, assim, influenciar a tomada de decisões pelos governos subnacionais acerca dos gastos. [...] Se governadores e prefeitos têm de escolher entre a descentralização fiscal e administrativa, escolherão a transferência de receitas em lugar da transferência de responsabilidades, especialmente se os sindicatos que representam os setores públicos a serem descentralizados forem grandes e fortes. Isto é, os Executivos subnacionais preferem

28 “Descentralização Fiscal se refere ao conjunto de políticas desenhadas para aumentar as receitas ou a autonomia fiscal dos governos subnacionais [...] fazendo parte apenas as receitas”. (Falleti, 2006, p.: 62).

29 “Descentralização política transfere autoridade política ou capacidades eleitorais para atores subnacionais”. (Falleti, 2006, p.: 62).

autonomia política, recursos e responsabilidades, nesta ordem. (FALLETI, 2006, p.: 64-65).

Geralmente, os processos de descentralização de políticas não afetam os três níveis de governo simultaneamente, mas a possibilidade existe. Nesse sentido, as relações intergovernamentais são concebidas como sendo camadas de ação institucional. Por isso, é possível conhecer a sequência da primeira política descentralizadora (Administrativa, Fiscal ou Política). Sendo factível, portanto, prever, entre as opções remanescentes, qual será mais condizente aos interesses da união e dos governos subnacionais, com estratégias de políticas públicas que serão descentralizadas30:

O nível de governo cujos interesses territoriais prevalecem na origem do processo de descentralização tende a ditar o primeiro tipo de descentralização. A primeira rodada de descentralização, por sua vez, produz efeitos de feedback nas políticas, seja para seu apoio ou rejeição, o que influenciará a ordem e as características das reformas que virão depois. [...] Elas se caracterizam pela predominância de um tipo de interesses territoriais (Nacional ou Subnacional). [...] O desfecho final desta trajetória de descentralização (P F A), que atende as preferências dos governantes subnacionais, provavelmente será um alto grau de autonomia para governadores e prefeitos em relação ao presidente. [...] O desfecho dessa trajetória de reformas (A F P), que privilegia as preferências do Executivo nacional, tem probabilidade de trazer pouca ou nenhuma mudança na distribuição de poder às autoridades subnacionais. (FALLETI, 2006, p.: 66-68).

O processo de descentralização, segundo Arretche (1996), foi realizado na década de 1990 como uma estratégia com programas ambiciosos de reformas como a desconcentração31, delegação32, transferência de atribuições33 e a privatização ou desregulação34. Para que lograsse êxito nas descentralizações, o governo central desenvolveu o que Arretche (1999) chamou de estratégias de indução. Essas estratégias – diferentemente da

30

A trajetória dos interesses subnacionais (descentralização política) prevaleceu no início do processo de descentralização no Brasil (1985 - C.F.88).

31

“Desconcentração, entende-se transferir da responsabilidade de execução dos serviços para unidades fisicamente descentralizadas, no interior das agências do governo central” (Arretche, 1996, p.: 01).

32 “Delegação, entende-se a transferência da responsabilidade na gestão dos serviços para agências não vinculadas ao governo central; mantido o controle dos recursos pelo governo central”. (Arretche, 1996, p.: 01).

33 “Transferência de atribuição, entende-se a transferência de recursos e funções de gestão para agências não vinculadas institucionalmente ao governo central”. (Arretche, 1996, p.: 01). 34“Privatização ou desregulação, entende-se a transferência da prestação de serviços sociais para organizações privadas”. (Arretche, 1996, p.: 01). Este é o nível mais extremo da descentralização, pois já deixa de estar nas mãos do governo.

indução constitucional, que provém da Constituição Federal de 1988 e visa ampliar o acesso e a qualidade dos direitos sociais – provêm de um nível de governo para outro (de um ente federativo para outro ou até mesmo entre setores governamentais) e têm por objetivo convencer para aceitarem (ou incorporarem) certas políticas públicas em suas responsabilidades, já que, por não ser lei, não provem obrigatoriedade nenhuma em sua aceitação (ou incorporação).

Então, para que essas estratégias de indução, eficientemente desenhadas, tivessem êxito na atribuição de gestão de políticas públicas – ou mais precisamente na adoção dessas políticas públicas descentralizadoras de um nível de governo a outro – foi necessário levar-se em conta o estrutural e o institucional (ARRETCHE, 1999). Portanto, o que leva um nível de governo a assumir a gestão de políticas públicas pode ser:

a) a própria iniciativa;

b) por adesão a algum programa proposto por um nível de governo mais abrangente;

c) ou até mesmo via imposição legal (CF-88).

A atribuição de uma política geralmente é feita quando são avaliados os custos políticos e financeiros para desempenhá-los e, por isso, a indução é feita de um nível de governo mais forte para outro mais fraco. Esta atribuição para ser implantada tem que levar em consideração:

1) políticas prévias;

2) a capacidade administrativa e estrutural que cada nível de governo possui para aceitá-la;

3) quais serão os custos e benefícios fiscais ou políticos.

Desse modo, a atribuição deve ser considerada como algo vantajoso também a quem irá receber a política. Assim, na ausência de imposições constitucionais, os governos estaduais e municipais que aderiram aos programas de forma deliberada e aceitaram a transferência de atribuições por

meio da indução do nível de governo mais alto podem demonstrar e explicar o alcance/extensão da descentralização35:

Portanto, quando comparados entre si, o sucesso de cada programa é determinado por uma dada estrutura de incentivos à adesão. Vale dizer, dado que, em Estados federativos, a assunção de atribuições de gestão em políticas públicas depende da decisão soberana dos governos locais – salvo expressas imposições constitucionais –, e dado que esta decisão é resultado de um cálculo destas administrações quanto aos custos e benefícios nela implicados, a extensão da descentralização depende, em grande parte, da estrutura de incentivos associada a cada política particular. A existência de uma estratégia de indução eficientemente desenhada e implementada – o que supõe que o nível de governo interessado tenha disposição e meios econômicos e administrativos para tal – é um elemento central desta estrutura de incentivos, na medida em que, associada a requisitos ou exigências postos pela engenharia operacional de cada política, pelas regras constitucionais que normatizam sua oferta e pelo legado das políticas prévias – fatores estes cujo comportamento varia para cada política –, constituem elementos importantes da decisão local pela assunção de competências de gestão de políticas públicas. (ARRETCHE, 1999, p.: 122).

Variáveis como o nível de riqueza econômico, a cultura cívica, a participação política, ou a capacidade de endividamento de cada governo não podem explicar, isoladamente, o processo de descentralização. Porém, isso não quer dizer que não sejam fatores importantes para que os níveis de governo adotem os programas de descentralização, por exemplo, no caso das finanças estaduais. Assim, pode-se dizer que existe uma diferença entre ter as condições estruturais para assumir tais atribuições e assumir tais funções sem tê-las, ou seja, por mera indução:

A partir de um dado patamar de riqueza econômica e capacitação político-administrativa, o impacto das estratégias de indução sobre os governos locais pode vir a tornar-se cada vez menos decisivo. Mas, esta não é a realidade da maioria dos municípios brasileiros. (ARRETCHE, 1999, p.: 133).

Por fim, o sucesso do processo de descentralização36 para as transferências de atribuições de um nível de governo a outro vai depender diretamente dos interessados terem disposição e que tenham meios, sejam eles financeiros, políticos ou administrativos. Já a extensão da

35

Para mais informações, ver: Arretche (1999, p.: 119-122). 36

O sucesso do processo descentralizador vem por meio de estratégias de indução, desenhadas e implementadas com eficiência.

descentralização vai depender da dinâmica do executivo entre os diferentes níveis de governo:

A extensão da descentralização em cada estado depende ainda, diretamente da ação dos executivos estaduais, isto é, quanto maior for o grau de coincidência das ações dos níveis mais abrangentes de governo – no nosso caso, o governo federal e governos estaduais –, maior será o alcance da municipalização em cada unidade da Federação. (ARRETCHE, 1999, p.: 136)

Quando analisamos o caso do governo estadual de Mato Grosso, no período em análise, percebemos algumas características como o predomínio da agenda de reforma do Estado – seja por meio dos processos de privatização ou de descentralização, a crise fiscal e econômica pela qual boa parte dos governos estaduais passava, e demandas crescentes da sociedade civil por políticas de saúde e educação, por exemplo. Diante desse quadro, como e por que ocorreu o processo de descentralização? De fato, como a literatura aponta, esses processos pouco avançaram até o governo FHC, pois a promulgação da Constituição de 1988 ocorreu em um contexto político bastante instável (governos de José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco), além de crise econômica grave. Somente a partir de 1995, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, é que a agenda de descentralização tornou-se central nas decisões da União.

Todos os autores da discussão teórica elencados até esta etapa da pesquisa são neoinstitucionalistas – de diferentes vertentes, conforme especificado no início do capítulo. Eles procuram examinar os processos de descentralização ocorridos no Brasil sob a dinâmica do federalismo. A revisão da literatura realizada no capítulo seguiu a legitimidade dos autores no debate sobre Estado, federalismo e descentralização no interior das ciências sociais no Brasil.

No próximo capítulo, analisar-se-á o contexto, o cenário e o ator político à frente do executivo estadual, quem possibilitou o processo de descentralização no interior da agenda do governo estadual de Mato Grosso.

Documentos relacionados