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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE COLETIVA

A personalidade colectiva 74, tal como a personalidade das pessoas físicas, é uma forma de personalidade jurídica, a qual se traduz numa aptidão para ser titular de direitos e obrigações.

Por vezes existe confusão entre a personalidade jurídica da pessoa coletiva sociedade e a dos seus sócios, e essa confusão pode ser usada de modo ilícito ou abusivo, lesando os interesses de terceiros75. Verificando a existência desse fenómeno, a doutrina (desregard doctrine) e a jurisprudência, em sede de Direito comercial e societário, inspirando-se na figura jurídica do abuso de direito76,

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Em regra adquire-se após o registo definitivo do ato ou contrato de constituição na conservatória do registo comercial, cessando (dissolvendo-se) com a liquidação e transmissão dos bens da pessoa coletiva, a qual tem, também, que ser registada na conservatória do regime comercial.

75O Estado é um terceiro quando está no papel de credor do tributo. A este propósito veja-

se por todos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-07-2013, Processo n.º 943/10.8TTLRA.C1, acessível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c00056 37dc/cd3d74692f29d01080257bad00396235?OpenDocument

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Ao exercer uma atividade por interposta pessoa coletiva, as pessoas singulares ou coletivas que a compõem podem contrair dividas e defraudar os credores sem que o seu património privado seja afetado, o que se traduz em usar a personalidade coletiva, legalmente, adquirida, com o objetivo de proteger e esconder o verdadeiro responsável pelo cumprimento de

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entenderam dever desconsiderar a personalidade colectiva, com o objetivo de evitar que a confusão da personalidade tributária da pessoa coletiva transparente com a dos sócios, seja usada com propósitos ilícitos.

Só mais tarde, esta doutrina e jurisprudência foram positivadas, tendo sido criados mecanismos que permitem desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade77, fenómeno que também é conhecido como levantamento do véu societário78, por permitir “ver através da sociedade”, “ver à transparência” as pessoas que a formam.

Em Direito fiscal, este mecanismo foi designado como transparência fiscal 79, fenómeno que consiste na desconsideração da personalidade coletiva da sociedade, mas que, ao invés do que sucede com a figura do mesmo nome em direito societário e fiscal, não tem caráter sancionatório (porque não existe uma utilização abusiva da personalidade coletiva com o único intuito de servir a vontade e interesse pessoal dos sócios), antes estando ao serviço do objetivo da neutralidade fiscal80, ao viabilizar a

obrigações patrimoniais, assim praticando uma fraude à lei, que o Direito pune através da desconsideração da personalidade coletiva. Esta atuação configura um abuso da personalidade que tem como objetivo contornar uma obrigação legal ou contratual, individualmente assumida, ou encobrir um negócio contrário à lei, permitindo agir como interposta pessoa, o que configura uma situação de abuso de direito.

77Para poder desconsiderar a personalidade coletiva da pessoa jurídica é necessário que

existam razões de justiça ou de prevenção da evasão ou fraude, indiciando abuso dessa personalidade jurídica, que permitam afastar a proteção dada pelo escudo da personalidade jurídica da pessoa colectiva na responsabilidade pelas dívidas sociais. Como exemplo da aplicação desta desconsideração veja-se o artigo 9.º, nºs 2 e 3 da Proposta de Lei nº 3/V e o texto reimpresso da “Proposta de Lei de Bases da Reforma Fiscal, aprovada em conselho de ministros de 24 de Setembro de 1987 e publicada na série “documentos do Ministério das Finanças” em novembro de 1987 e reimpressa em dezembro de 1987.

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Esta figura não está prevista na ordem jurídica portuguesa, se bem que existam, na jurisprudência, casos julgados em que é aplicada, com base no argumento de que existe uma lacuna na lei ou no abuso de direito (cf. artigo 334.º CC) e a doutrina - Raúl Ventura, Luís Brito Correia, Ilídio Rodrigues e Maria Elisabete Gomes Ramos- também a defenda.

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A transparência fiscal tem várias denominações: nos Estados Unidos é o “lift the corporate veil”, para os alemães “durchgriff” e em França “transparance”, vocábulo que parece ter sido a inspiração para o nome do regime fiscal em Portugal. Sobre esta temática, leia-se Saldanha Sanches in “Sociedades Transparentes: Alguns Problemas no seu Regime”, in Fisco n.º 17, Ano 2, Fevereiro de 1990.

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Deste principio se falará com detalhe em ponto que lhe é dedicado nesta dissertação, deixando-se aqui e agora dito que a neutralidade da tributação entre pessoas colectivas e pessoas singulares, significa que o valor de imposto exigido é idêntico quer a actividade seja exercida por uma pessoa colectiva ou por uma pessoa singular.

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não tributação de certas pessoas coletivas para tributar os seus sócios ou membros, destinatários últimos do rendimento gerado nessa pessoa coletiva.

A transparência fiscal, atualmente constante do CIRC, foi gizada no artigo 17º da lei de autorização legislativa nº 106/88, de 17 de Setembro, que regulava a sujeição subjetiva em sede de IRC e que dispunha, nos seus nºs 2 e 3, com interesse para as sociedades e outras entidades sujeitas ao regime de transparência fiscal, que o IRC seria devido pelas pessoas colectivas com sede ou direcção efectiva em território português, excetuando-se as sociedades civis não constituídas sob forma comercial e as sociedades de profissionais, bem como as sociedades de simples administração de bens sob o controle de um grupo familiar ou de um reduzido número de pessoas, cujos lucros ou perdas serão imputados aos respectivos sócios e tributados em IRS ou IRC, conforme a sua participação nos lucros.

Mais se determinava no nº 3 daquela norma, que o CIRC pudesse alargar o regime a outras pessoas colectivas quando razões de justiça ou de prevenção da evasão ou da fraude recomendassem considerar-se irrelevante, para efeitos tributários, a atribuição de personalidade colectiva.

Esta previsão legal traduziu-se nas três alíneas do actual artigo 6.º, n.º 1, do CIRC para as sociedades, e artigo 6.º, n.º 2, do CIRC, para os agrupamentos de empresas, tendo, no início da vigência do CIRC, ficado o artigo 6.º, n.º 1 estruturado como segue: Sociedades civis sob forma civil – art.º 6º, nº 1, a); Sociedades de profissionais – art.º 6º, nº 1, b) e art.º 6º, nº 4, a); Sociedades de simples administração de bens 81 – art.º 6º, nº 1, c), art.º 6º, nº 4, b), c).

Com as alterações verificadas na redação das normas, em especial no que respeita às sociedades de profissionais, verificou-se um aumento do número de pessoas coletivas abrangidas pelo regime de tributação de transparência fiscal 82.

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As sociedades de simples administração de bens, com as sucessivas alterações legislativas, passaram a ter um âmbito mais reduzido ao serem excluídas as SGPS, as sociedades mães do regime especial de tributação dos grupos de sociedades e as sociedades que possam aplicar o método de eliminação da dupla tributação económica que tenham mais de cinco sócios.

82Com base em números inscritos na Revista JTCE “10 anos de imposto sobre o

Rendimento”, quanto aos anos de 1996 a 1998 e na Dissertação de Mestrado em Contabilidade e Finanças. (Setembro de 2015) Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (O Regime de Transparência Fiscal - Estudo comparativo entre Portugal, Espanha, França e Reino Unido) da autoria de Diana de Jesus Luís, quanto aos números de 2008 a 2014, o número de pessoas

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Este regime especial e obrigatório, em sede de tributação do rendimento, é regulado, em especial, nos artigos 6.º e 12.º do CIRC e 20.º do CIRS, nos quais se determina que as pessoas colectivas, subjetivamente sujeitas ao regime de transparência fiscal, apurem a matéria colectável, respeitando as regras aplicáveis aos demais sujeitos passivos de IRC (pessoas colectivas), matéria coletável que releva para determinação da coleta e pagamento do imposto não na esfera pessoal da sociedade e sim na esfera pessoal dos sócios.

Sintetizando parece poder afirmar-se que, do ponto de vista subjetivo, o regime tem por base o princípio da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade (cf. art.º 6.º e 12.º do CIRC), não por razões sancionatórias, como sucede em sede de direito comercial e societário, mas por razões pragmáticas que resultam da natureza das pessoas colectivas que nele se incluem83, nas quais é o elemento pessoal e não o elemento capital, que é determinante para a actividade económica desenvolvida, situação que é complementada em termos objetivos com o mecanismo da imputação do rendimento gerado na pessoa colectiva aos seus sócios ou membros, para que apenas estes sejam tributados (cf. os artigos 6.º, n.º 3 e 12.º do CIRC e 20.º do CIRS).