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Assunto por demais interessante e que não podemos deixar de relatar neste trabalho, ainda que em síntese, é a Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Tributário. Tratando-se de matéria tributária, que é regulada pelos princípios da legalidade estrita, da tipicidade fechada e da reserva absoluta de lei, é possível a aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica com base na construção jurisprudencial e nos princípios gerais de direito?

Para respondermos tal indagação, vamos discorrer um pouco sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito civil. São várias as definições sobre Pessoa Jurídica, dentre a quais trazemos a conceituação de Bodnar:41

(...) pessoa jurídica é o grupo de pessoas ou conjuntos de bens ao qual o Estado reconhece a aptidão para ser sujeito de direitos e obrigações, com existência distinta da de seus membros e com função social de realizar também os interesses da coletividade, especialmente o dever de contribuir com os gastos públicos. É um grupo de pessoas, mas pode ser também um conjunto de bens como ocorre com as fundações.

Como se percebe pela conceituação acima, a pessoa jurídica tem uma importante missão social a cumprir, qual seja, o atendimento de interesses não apenas de seus sócios, mas também de toda a sociedade. O Estado confere personalidade com este fim e não para facilitar fraudes ou falcatruas. Com efeito, a Constituição Federal exige que as instituições cumpram sua função social, e desta exigência não está excluída a pessoa jurídica.

Vejamos o que diz Grau,42 sobre a propriedade privada e bens de produção na nova ordem constitucional:

41 BODNAR, Zenildo. Responsabilidade Tributária do sócio Administrador. Juruá Editora, 2008, p. 160. 42 GRAU, Eros Roberto. Ordem Econômica na constituição de 1988: Interpretação e Crítica, São Paulo,

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(...) teve o condão de não apenas afetá-los pela função social ― conúbio entre os incs. II e III do art. 170 ― mas, além disso, de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência digna.

A pessoa jurídica cumpre a sua função social quando respeita os valores e exigências sociais estatuídas na constituição cidadã e demais leis vigentes relacionadas com os direitos do consumidor, dos empregados, meio ambiente e, principalmente, quando honra seus compromissos perante o fisco, tendo em vista a importância social da tributação.

Da mesma forma que a pessoa jurídica serve como importante instrumento para otimizar as capacidades humanas, cumprindo notável função social, pode também ser utilizada como poderoso instrumento para a prática de condutas ilícitas, servindo como verdadeiro escudo a serviço de pessoas mal intencionadas.

Com relação aos desvios e abusos da pessoa jurídica surge a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, objetivando coibir a utilização da personificação para prática de condutas nocivas ao meio social. A desconsideração da personalidade jurídica, segundo Lisboa,43 é o instituto pelo qual é permitida a responsabilidade do administrador, do gerente ou do representante legal da pessoa jurídica, que, ao agir em seu nome, pratica ato lesivo aos interesses de terceiros, em abuso de poder ou desvio de finalidade da sociedade. Tal instituto é medida de extrema gravidade e deve ter aplicação excepcional, quando restar demonstrada sua real necessidade.

Uma das questões mais controvertidas é a imputação da responsabilidade, ou seja, quem irá responder quando a pessoa jurídica for desconsiderada. A desconsideração da personalidade jurídica não deve atingir indiscriminadamente todos os sócios, administradores ou acionistas, mas apenas aqueles que utilizaram ou conduziram indevidamente a pessoa jurídica, bem como aqueles sócios que auferiram proveito econômico do comportamento abusivo.

Assim, ressalta Coelho:44

Admite-se a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária para coibir atos aparentemente lícitos. A ilicitude somente se configura quando o ato deixar de ser imputado à pessoa jurídica da sociedade e passar a ser imputado à

43 LISBOA, Roberto Senise. Manual Elementar de Direito Civil. 2ª ed. rev. e atual, em conformidade com o

novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 1, p. 247.

pessoa física responsável pela manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio da autonomia patrimonial.

Para desconsideração da personalidade jurídica, é imprescindível a demonstração da prática do ato abusivo praticado com dolo ou culpa que cause danos a terceiros e que estes não possam ser reparados diretamente pela pessoa jurídica. Dentre as condutas que justificam a desconsideração, estão: o abuso de direito, a fraude a lei e o comportamento contrário a boa fé.

Com relação às questões processuais, a doutrina é unânime em professar que o devido processo legal deve ser respeitado e que deve ser assegurado o contraditório para garantia da segurança jurídica. Não há norma processual estabelecendo os critérios que devem ser observados pelo juiz na aplicação da desconsideração, devendo o julgador ater-se aos princípios constitucionais e às regas ordinárias previstas na legislação processual.

Observa Regina Frigeri:45

Tendo em vista que no direito brasileiro inexiste regramento processual específico que discipline o disregard doctrine, para responsabilizar a pessoa que se utilizar de determinada empresa com dolo, simulação ou fraude causa prejuízo a terceiros, os práticos do direito têm que se socorrer do processo cognitivo previsto nos artigos 282 et seq. do CPC, e dele os sócios que agirem ilicitamente não poderão invocar a própria malícia para afastar os efeitos da medida judicial regularmente processada.

Realizada a análise da desconsideração da personalidade jurídica e da solidariedade e responsabilidade tributária, releva investigar a possibilidade de aplicação daquela teoria no direito tributário e, ainda, se a mesma está ou não, positivada no CTN, nos artigos 124 e 135. Consultando a doutrina, vê-se que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário não é ponto pacífico, principalmente em função da rigorosa necessidade de observância do princípio da legalidade em matéria tributária. A doutrina se divide entre aplicação da teoria da desconsideração e imputação direta de responsabilidade na pessoa do sócio, pela lei, sem necessidade de superar a pessoa jurídica.

Para os doutrinadores que entendem que a teoria da desconsideração pode ser aplicada no direito tributário, é compressível que o princípio da separação patrimonial da pessoa

45 FRIGERI, Márcia Regina. A Responsabilidade dos Sócios Administradores e a Desconsideração da

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jurídica não pode servir para fins contrários ao Direito, de modo a consagrar a simulação, a fraude, o abuso de direito. A teoria em causa não tem por escopo anular a personalidade da sociedade de forma total, mas somente desconstituir a figura societária no que concerne às pessoas que a integram, mediante declaração de ineficácia para efeitos determinados e precisos.

Abaixo colacionamos entendimentos de muitos autores, extraídos da obra

Responsabilidade Tributária do Sócio Administrador, de Zenildo Bodnar,46 cujas lições

demonstram o entendimento da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário. Rubens Requião,47 ao escrever sobre aspectos modernos de Direito Comercial, faz referência ao art. 135 do CTN, como sendo embrião da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Já Onofre Batista48 destaca o pioneirismo do CTN na adoção da teoria explicando que:

O Direito Brasileiro alberga e acolhe algumas hipóteses de desconsideração, como no art 2º da CLT, no art. 28 do código de Defesa do Consumidor e, como não podia deixar de ser, no pioneiro consagrado Código Tributário Nacional.

Bittar Filho49 aduz que “em sede de Direito Tributário, igualmente se aplica a disregard doctrine. O lastro para tal aplicação é o preceito do art. 135, III, do CTN”. Valle50 também discorre que a teoria foi inicialmente aplicada no campo fiscal, objetivando reprimir a sonegação e a evasão de impostos. Já Martins51 explica a aplicação da teoria no Direito Tributário, destacando a natureza punitiva da responsabilidade:

(...) a nosso aviso, a hipótese é de responsabilidade por fraude à lei, em que a falta de recolhimento do tributo deriva de evasão tributária e a sanção corresponde à doutrina conhecida como disregard of legal entity, que permite o julgador

46 BODNAR, Zenildo. Responsabilidade Tributária do sócio Administrador. Juruá Editora, 2008, p. 190-197. 47 REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e Fraude através da personalidade jurídica: disregard doctine.

Aspectos Modernos de Direito Comercial, p. 75.

48 Batista JÚNIOR, Onofre Alves. Responsabilidade tributária do sócio não gerente: o laranja, a fraude à lei e a

desconsideração da personalidade jurídica. Revista da Procuradoria da Fazenda Estadual de Minas Gerais, p. 61.

49 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. A Responsabilização Tributária dos Sócios na hipótese de Falência da

Sociedade. Revista dos Tribunais, São Paulo, a 87, v. 757, p. 89-93, p. 90, nov. 1998.

50 VALLE, Anco Márcio. O Direito do Consumidor à desconsideração da personalidade jurídica, em caso de

falência da sociedade fornecedora. Revista da Associação dos Juízes do rio Grande do Sul. Edição especial, Porto Alegre, v. 2, p.259, mar 1998.

desconsiderar a personalidade jurídica da empresa e responsabilizar pessoalmente os diretores e gerentes de sociedades de capital (sociedade anônima e limitada).

Muitos outros autores se posicionaram favoravelmente a tese aqui colocada. Vamos citar alguns: José Eduardo Sabo Paes, José Eduardo Soares Melo, Alexandre Macedo Tavares, Luis Emygdio Franco da Rosa Junior, Carlos Henrique Abraão, Heleno Torres, Renato Lopes Becho. As manifestações contrárias da doutrina apresentam como óbice à aplicação da teoria o princípio da legalidade em matéria tributária, bem como a diferença entre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a imputação direta da responsabilidade pessoal do sócio responsável.

Segundo esses doutrinadores, o princípio da legalidade seria um obstáculo intransponível na aplicação da teoria no Direito Tributário, uma vez que a responsabilidade tributária somente poderia ser atribuída de acordo com o prescrito na norma tributária, a qual deverá indicar expressamente quem irá suportar o encargo fiscal. Nesse sentido, aduzem esses doutrinadores da tese contrária à adoção da teoria da desconsideração pelo Direito Tributário, que a atribuição de responsabilidade pessoal direta ao sócio afasta a necessidade de aplicar aquela teoria.

Trazemos à baila, também extraído da obra de Bodnar, as lições de alguns doutrinadores contrários à aplicação da teoria da desconsideração no Direito tributário. Oliveira52 argumenta que não faz sentido falar em desconsideração da pessoa jurídica quando a lei tributária atribui responsabilidade ao sócio. “Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação e não de desconsideração da pessoa jurídica”. Explica que:

A existência, portanto, em nosso Direito, de pessoas jurídicas em que existe, da parte de alguns ou de todos os sócios, responsabilidade subsidiária em relação às obrigações sociais, (...) faz com que, em nosso direito, sejam fenômenos bem distintos, o da personalidade jurídica e o da responsabilidade, não havendo qualquer margem para vincular a personalidade jurídica à exclusão geral da responsabilidade do sócio. Há pessoas jurídicas em que o sócio pode vir a responder – sempre em caráter subsidiário – por dívida da sociedade. Mesmo em tais casos, a responsabilidade é subsidiária, pois que persiste a separação conceitual e dogmática entre sociedade e sócio, distintas esferas patrimoniais, distintos pontos de imputação de direitos e deveres para empregar a linguagem normativista.

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Fazendo referência a casos em que a lei atribui responsabilidade ao sócio por dívidas da sociedade, como a previsão do art. 135 do CTN, Casilo53 questiona e conclui:

Esta situação decorrente da lei, e as conseqüências, no caso de desconsideração da pessoa jurídica, são idênticas?

Quer nos parecer que não. Apenas há um ponto em comum nas hipóteses agora em confronto: a excepcionalidade das mesmas. Só excepcionalmente os diretores, gerentes ou sócios responderão pelas obrigações da empresa, da mesma forma, só em casos excepcionais aplica-se a teoria da desconsideração. Vale a regra geral do artigo 20 do CC brasileiro.

Nas considerações de Bondar54 sobre o entendimento acima esposado, o mesmo entende que, quando lei impõe ao sócio, gerente ou administrador a responsabilidade por dívidas da sociedade, o faz porque uma dessas pessoas agiu de maneira contrária a lei ou ao contrato, mas como pessoa integrante da pessoa jurídica. Não foi a pessoa jurídica que teve sua finalidade desvirtuada, nem foi manipulada, mas, sim, o sócio, o diretor, o gerente que, na atividade ligada a empresa, andou mal.

Quando se fala, por outro lado, em desconsideração da pessoa jurídica, é porque a própria entidade é que foi desviada da rota traçada pela lei e pelo contrato. A sociedade é utilizada em seu todo para mascarar uma situação, ela serve com véu para encobrir uma realidade. Amaro55 destaca que:

Nos setores onde vige a reserva absoluta de lei (como no Direito Tributário), não há lugar para desconsideração; nesses setores, a sanção (ou solução) para eventuais desvios de função da pessoa jurídica deve ser buscada na lei. (...) quando o direito já fornece o remédio legal, não é preciso superar ou penetrar nenhuma forma jurídica. “Basta aplicar a solução legal” que já se mostra axiologicamente correta.

Justen Filho56 adverte que:

Em conclusão, compartilhamos com Henry Tibelry o entendimento de que, “para fins de direito tributário a personalidade jurídica, em princípio, deve ser respeitada – apenas com ressalva de exceção através de normas legais específicas para

53 CASILO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais, p. 35.

54 BODNAR, Zenildo. Responsabilidade Tributária do sócio Administrador. Juruá Editora, 2008, p. 199. 55 AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul - AJURIS, p. 77-78.

determinadas situações e com ressalva geral das normas aplicáveis em casos de fraude e simulação”.

Como se vê, pelos entendimentos das duas correntes acima expostos, tanto a desconsideração da personalidade jurídica como a imputação direta da responsabilidade são medidas extremas, cujos aspectos que têm como características a excepcionalidade e o cometimento de atos contrários à lei, como a fraude e simulação.

Com efeito, o espírito da lei é coibir que o sócio ou terceiro vinculado ao fato gerador manipule os negócios da pessoa jurídica para se locupletar com recursos originários da sonegação, da fraude contras credores etc. Nesse sentido, nos filiamos à corrente da imputação direta da responsabilidade tanto do sócio quanto do terceiro vinculado ao fato gerador, que age com dolo, fraude e simulação, não necessitando chegar a desconsiderar a pessoa a pessoa jurídica.

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