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medievais: o testemunho de Jordan Catala de Sévérac

TERESANOBRE DECARVALHO

Centro de História das Ciências Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

* À época do congresso doutoranda em História e Filosofia das Ciências e Bolseira FCT do

Nota introdutória

Ao longo da Idade Média, o europeu dirigiu-se para as Índias em missões diplomáticas, apostólicas ou comerciais. Destes périplos orientais chegaram até aos nossos dias vários registos. Muitos ilustram o fascínio que as plantas e animais da Ásia exerceram sobre estes viajantes. Alguns destes relatos, por razões diversas, tiveram uma circulação limitada. Outros tiveram uma circulação im por tante, como o atesta a existência na actualidade de numerosos manus - critos. Do documento agora em análise, Mirabilia Descripta, 1330, apenas se conhece um exemplar.

A presente abordagem, centrando-se no testemunho de Jordan Catala de Sévérac, realça o carácter inovador das descrições do mundo natural do Oriente apresentadas por este dominicano.

Notas biográficas sobre Jordan Catala de Sévérac (c.1275/1280 — c. 1336)

Atendendo aos poucos dados que podemos coligir sobre este autor, temos que seguir as pistas que nos são fornecidas nos poucos textos que ele nos deixou. Os biógrafos de Jordan Catala não têm dificuldade em aceitar que este nasceu em Sévérac-le-Château, no actual Departamento do Aveyron (França). Na ver - dade, após a consulta de arquivos da região, estes estudiosos puderam constatar que, na época em questão, viveram em Sévérac-le-Château alguns homens de apelido Catala, uns notários outros dominicanos. Nada se sabe sobre o mosteiro onde tomou votos. É provável que já não fosse jovem quando ingressou na Ordem. Admite-se, no entanto, que a sua partida para Oriente se tenha verificado numa data próxima à do seu ingresso na Ordem, eventualmente após a realização de estudos universitários. Sévérac partiu para Oriente em 1320. Nesta época, considerava-se que os missionários estavam prontos para partir quando já tinham alguma experiência de pregação, possuíam prática de línguas estrangeiras, eram voluntários, amplos conhecedores dos fundamentos da reli gião cristã, apresen - tavam robustez física e solidez na fé. Este conjunto de requi sitos era mais vulgar encontrar-se em homens com idades próximas dos 40 anos. Exceptuando o caso de Pian de Carpine, que viajou para Oriente com cerca de 60 anos, grande parte

dos religiosos, ao partir em missão, tinha idades compre endidas entre os 35-45 anos. Tomem-se os exemplos de Rubruck (35-40 anos), Monte Croce (45 anos), Monte Corvino (42 anos), Tomás de Tolentino (42 anos).

Desconhecendo a data do seu nascimento mas sabendo que o frade partiu para Oriente em 1320, podemos aceitar, graças à analogia com vidas de outros missio nários do seu tempo, e considerando as recomendações das Actas do

Capítulo Geral dos Frades Pregadores — que aconselhavam que os homens a

enviar em missão não fossem demasiado jovens nem demasiado velhos — como ano provável para o seu nascimento algures entre 1275-1280.

Partida em missão

Pouco se sabe sobre o itinerário seguido pelo dominicano. Normalmente, os missionários que partiam de Avignon rumo ao Oriente, dirigiam-se para Nápoles, onde aguardavam o barco genovês que os conduzia para Leste.

Qualquer que fosse o percurso seguido em terras orientais, Tabriz, nesta época, era ponto de passagem quase obrigatório. Nela, viajantes oriundos da Europa faziam escalas mais ou menos prolongadas. Esta cidade constituía então um importante centro de trocas entre o Mar Negro e o Golfo Pérsico. A Tabriz acorriam caravanas de mercadores, peregrinos e viajantes, que tornavam esta cidade num importante centro de recolha de informações a todos quantos se dirigiam para as Índias, especialmente através do porto de Ormuz. Em 1318 fundou-se em Tabriz um convento dominicano onde se admite que Sévérac tenha permanecido algum tempo. Na verdade, ao longo do seu texto, o missio nário revela conhecer com alguma segurança as terras da Arménia (assim como as da Pérsia) o que leva a supor que permaneceu nelas o tempo suficiente para se familiarizar com os usos, costumes, idiomas e tradições das suas gentes.

Em 1320 Jordan de Sévérac deixou Tabriz com destino ao Cataio. Na sua caravana seguiam também quatro religiosos da Ordem dos Menores: Frei Tomás de Tolentino e Frei Jácomo de Pádua — sacerdotes — e Frei Pedro de Siena e Frei Demétrio — irmãos leigos. A caravana seguiu então lentamente para Ormuz. A travessia dos desertos persas enchia de temor os viajantes, que aterrorizados pelas lendas dos caravaneiros, crédulos da presença de demónios e de animais ferozes, fugiam ou definhavam de medo. A chegada a Ormuz constituía assim um alívio para todos os viajantes. Neste porto, verdadeiro elo de ligação ao Oriente, os nossos missionários partiram a bordo de uma embarcação árabe ou persa que, talvez por encontrar ventos contrários, foi obrigada, ao fim de menos de um mês, a acostar em Taná.

Aportar em Taná foi assim um incidente no percurso dos missionários. Estava- -se em 1320. Sévérac deixou de imediato o porto procurando inteirar-se da presença de outras comunidades cristãs na região. Os seus companheiros de viagem permaneceram na ilha. O martírio dos quatro franciscanos ocorreu pouco

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O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais

tempo após a chegada a Taná. Inquiridos pelo Cadi local sobre uma banal discus - são familiar, os franciscanos excederam-se nas suas respostas. Consi derando-se insultado, o Cadi condenou-os à fogueira, da qual, por milagre, esca param ilesos. Um segundo suplício pelo fogo e uma lapidação não causaram qualquer ferida nos missionários, que então se tornaram em verdadeiros perigos para a solidez do credo muçulmano. Só o recurso às lâminas das espadas, que fizeram rolar as suas cabeças, conseguiu eliminar tal ameaça. No momento deste incidente, Sévérac encontrava-se ausente. No entanto, ao regressar a Taná, inteirou-se dos detalhes da execução e redigiu uma carta, datada de Outubro de 1321, onde apresentou o primeiro relato deste acontecimento. Outros textos, cuidado - samente incluídos nas crónicas de franciscanos, surgiram na sequência do de Sévérac. Aquele que teve maior divulgação pública foi o redigido pelo beato Odorico de Pordenone que, ao passar por Taná, recolheu os restos mortais dos mártires e os levou para Zayton.

O trabalho missionário de Sévérac estendeu-se ao longo da costa ocidental da península indiana. Apresentando nas suas cartas um balanço das conversões assim como o resultado de um verdadeiro trabalho de pesquisa para a imple men - tação de uma missão cristã nas Índias, Sévérac visitou algumas cidades do Golfo de Cambaia e do Malabar.

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Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des

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Regresso à Europa

Nos finais de 1327, ou princípios de 1328, Jordan de Sévérac regressou ao Ocidente para informar Avignon da oportunidade de criar um Bispado em Coulão. Este porto do Sul da Índia para além de não se encontrar submetido ao poder muçulmano, era frequentado por numerosos mercadores ocidentais, espe cial - mente genoveses. Convém recordar que o seu contemporâneo Marco Polo tinha realçado a riqueza e pujança do porto de Coulão. Em diversos mo mentos da obra de Sévérac encontramos o som do texto de Marco Polo, sendo evidente que o leu, ou, pelo menos ouviu ler. Na verdade a primeira versão latina da obra de Marco Polo foi realizada, cerca de 1320, por um dominicano — frei Francisco Pipino. O texto — então posto a circular entre os mis sio nários — serviria como ro tei ro de viagem aos irmãos, Menores ou Pregadores, partidos para Oriente. Não nos parece por isso estranho que o dominicano se tenha dirigido para o Sul, onde encontrou o animado porto e a comunidade mercantil prometidos por Polo.

Desde da Bula Papal, datada de 1329, que promove a criação do ‘Bispado’ de Coulão, até 1330, data do Mandato de João XXII que envia Sévérac em missão, encontram-se nos arquivos numerosos documentos que ilustram a diversi dade de contactos que Sévérac estabeleceu aquando da sua estadia no Oriente.

A permanência em território indiano, para além do trabalho apostólico, manifestou-se numa intensa actividade diplomática. Este facto é confirmado pelas diversas cartas de recomendação dirigidas pelo Papa João XXII aos sobera - nos do Oriente e que reflectem um aturado trabalho de prospecção no terreno e de recensão das mais eficientes vias de penetração nas comunidades locais levado a cabo pelo Dominicano.

Em Avignon, admite-se que Sévérac tenha permanecido no então remodela - do mosteiro dominicano onde, provavelmente teve a possibilidade de compilar as suas notas e de elucidar os curiosos irmãos sobre as maravilhas do Oriente.

Desconhece-se se o frade regressou às Índias. Tem-se como certo que em 1330 ainda permanecia na Europa já que esta é a data de um documento assinado por Sévérac ainda em território europeu.

Pouco se sabe sobre os últimos dias de Sévérac. Alguns afirmam que regressou a Taná, onde foi lapidado em 1336. Os partidários deste martírio fazem eco dos escritos do Frei João dos Santos, a Etiópia Oriental...(Evora, 1609). Na segunda parte desta obra que o frade intitulou ‘Vária história de cousas notáveis

do Oriente, e da cristandade que os religiosos da ordem dos Pregadores nela fizeram’ no seu Capítulo XVII Do martírio do Padre Frei Jordão, da Ordem dos Pregadores, e da imagem que os gentios lhe fizeram na ilha de Taná, e como foi achada, pode ler-se que António de Sousa e sua mulher, Maria Pereira encon tra -

ram entre os escombros de um velho pagode, uma pequena estátua de madeira representando um dominicano. Apesar de estar soterrada há muito tempo aparen tava ter sido acabada de enterrar. Inquirindo os mais velhos da região sobre a curiosa estatueta, sinal da presença cristã na ilha muitos anos antes da

Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des

martyrs de Thâna (fonte: Mandragore, base des manuscrits enluminés de la BnF).

chegada dos portugueses, o casal foi informado de que se tratava de uma repre - sentação do mártir de Sévérac, por quem todos tinham grande devoção pelos muitos milagres que, no seu tempo fizera, e pela morte santa que sofrera.

Convém recordar aqui que frei João dos Santos era, tal como Sévérac, da Ordem dos Pregadores, sendo o testemunho dos portugueses sublinhado pela presença no relato do então Prior do Convento Dominicano de Chaúl, D. Aleixo de Setúbal, que emocionado com a história do mártir da sua Ordem, conseguiu de D. Maria Pereira a cedência da estátua para devoção no Convento que então dirigia.

Frei João dos Santos insiste, desde a primeira linha, que o objectivo da desloca ção ao Oriente dos missionários franciscanos e do próprio Sévérac, era procurar o martírio. Não nos parece que esta leitura corresponda à verdade já que as diversas diligências diplomáticas, pesquisas no terreno e conversões que o dominicano levou a cabo nos diversos anos que permaneceu na Índia revelam que este estava preocupado na implementação de uma presença cristã efectiva no Oriente.

Mirabilia Descripta

Jordan de Sévérac designou o seu texto Mirabilia Descripta. Este relato, datado de 1329 ou 1330, testemunha o olhar do missionário sobre o mundo natural oriental. O objectivo do nativo de Aveyron é assim partilhar com o seu leitor a sua experiência de um real inimaginável.

Sévérac leu, ou ouviu ler, os autores que, naquele despertar do século XIV constituiam a Autoridade. Das suas palavras percebemos que conhecia Plínio e Solino, que respeitava Isidoro de Sevilha e Marco Polo, que admirava Preste João das Índias e Vincent de Beauvais. O dominicano parece ainda estar familia ri zado com o relato de Rubruck e Pian de Carpino. Leitor de textos maravi lhosos, nada do que Sévérac testemunha procura contrariar os seus autores.

Pouco se sabe sobre a divulgação deste texto. O único exemplar até hoje encontrado (Londres, British Library, Additional 19513, fol 3-12) parece revelar que a sua circulação foi restrita. No entanto convém recordar que supomos que o texto foi escrito em Avignon, num Convento protegido pelo papa João XXII, num momento em que o envio de missionários para o Extremo Oriente ainda se fazia a um ritmo importante (foi abrandando a partir de 1369 quando os Ming derruba - ram a dinastia Yuan). Deste modo, os missionários, viajantes, curiosos ou aventu - reiros que transitassem pelo actual Departamento de Vaucluse, poderiam ter informações, escritas ou orais, totalmente novas, testemunhando uma verdade recém experimentada. Estes pontos de acolhimento de viajantes constituíam importantes centros de troca de ideias e actualização de saberes.

Se bem que o texto deste dominicano não se encontre entre os relatos medie vais mais estudados, Mirabilia Descripta foi já editado. Para além das edições a anotações do texto levadas a cabo por diferentes estudiosos, foram igual mente efectuadas algumas versões em vernáculo, nomeadamente em francês, castelhano e inglês, como abaixo se pode comprovar.

• Jordan (le P.) de Sévérac, Description des merveilles d’une partie d’Asie,

par le P. Jordan ou Jourdain Catalani, natif de Sévérac, de l’ordre des Frères prêcheurs ou dominicains, évêque de Columbum, dans la presqu’île de l’Inde en deçà du Gange, edição de Charles Coquebert de Montbert,

Paris, Arthus-Bertrand, 1839 (‘Recueil de voyages et de mémoires publiés

par la Société de géographie’,4) pp.:1-68;

• Jordan de Sévérac, O.P., évêque de Quilon, Mirabilia Descripta. The

wonders of the East, by Friar Jordanus (circa 1330), tradução e comen -

tários de Henry Yule, Londres, 1863, Hakluyt Society;

• Jourdain Catalani de Sévérac (le P.) O.P., évêque de Columbum, Mirabilia

Descripta, les merveilles d’Asie, texto latino e tradução francesa Henri

Cordier, Paris, Paul Geuthner, 1925;

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1O presente trabalho baseia-se no estudo da mais recente versão de Mirabilia Descripta: Jordan

Catala de Sévérac, Une image de l’Orient au XIV ème siècle; les Mirabilia Descripta de Jordan

Catala de Sévérac. Edição, tradução e comentários de Christine Gadrat, Paris, École de

Chartes, 2005. Os trechos aqui apresentados em português resultam assim de uma tradução efectuada a partir desta versão francesa.

2Jordan de Sévérac considera a Índia dividida em 3 territórios:

• Índia Menor (Primeira Índia): região situada a Oeste do rio Indo (Índia do Norte e actual Paquistão)

• Índia Maior (Segunda Índia):região que corresponde à península indiana, a Sul dos rios Indo e Ganges; Ceilão, actual Indonésia

• Terceira Índia: região próxima da Etiópia.

3Mirabilia Descripta, parágrafo 23. 4Mirabilia Descripta, parágrafo 99.

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