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O Brasil na cartografia global de lugares imaginados

Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo

2. O Brasil na cartografia global de lugares imaginados

Desde seu nascedouro como colônia portuguesa que o Brasil inspira um imaginário edênico, como se pode verificar na própria carta-testemunho funda - cional de Pero Vaz de Caminha, especialmente no célebre trecho em que este descreve as partes púbicas de uma índia, comparando-a às portuguesas:

[...] E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (Cortesão, 1994).

As descrições dos cronistas seiscentisas, à guisa de Gandavo e Frei Vicente do Salvador e, no século seguinte, Rocha Pita, com sua História da América Portu - guesa, representam um continuum da imagem do Brasil como a visão do Paraíso — para usar uma conhecida expressão de Sérgio Buarque de Hollanda (Buarque de Hollanda, 1994 e 1995a; Carvalho, 2000).3

Essa mesma imagem será reapropriada no século XIX pela intelectualidade brasileira, como a evocação de um Brasil “autêntico e profundo”, a partir de uma forte inspiração romântica, e vai ter importantes repercussões em institui - ções de prestígio à época, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Galdino, 2008).

Assim, a idéia de Brasil como natureza, isto é, como um mundo simul ta - neamente selvático, telúrico e incivilizado, perpassa o imaginário medievo e vai impingir na própria formação histórica da consciência nacional, alimentando um ferrenho debate sobre a própria viabilidade do Brasil enquanto país (Skidmore, 1994).

Modernamente, a figuração do Brasil-paisagem não só repercute, por exem - plo, na formação da sua imagem turística internacional como, num nível mais profundo, influirá na própria noção do país como “terra de ninguém” (Chauí, 2000), reforçando a “necessidade de conquista das suas fronteiras” (Buarque de Hollanda, 1995b; Wegner, 2000), inclusive no tardio século XX, especialmente nas regiões da Amazônia e do Brasil Central. E no próprio sul da Bahia — am biên - cia donde se forja Gabriela —, com o elogio do “domínio do homem sobre a natureza” no contexto da expansão da lavoura cacaueira sobre a Mata Atlântica

nativa, reiterado pelo próprio Jorge Amado em obras como Cacau e Terras do

Sem-Fim.

Com efeito, embora os desdobramentos da idéia de Brasil como paisagem tenham múltiplos revérberos, o que mais nos interessa aqui é o de uma espécie de representação da vida social brasileira vinculada à sensualidade exacerbada, que seria uma consequência pretensamente “histórica e antropológica”, portanto naturalizada, de uma relação biunívoca entre o selvático e a sexualidade4.

De fato, se por um lado, na visão medieval, o Mundus Novus representaria uma espécie de éden extemporâneo, onde não haveria o mal porque os seres que o habitavam sequer o conheciam, por outro, também significaria, especial mente para a igreja, um mundo de lascívia e perdição:

A infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno se alter - navam no horizonte do colonizador [...]. Durante todo o pro ces so de colonização desen volveu-se, pois, uma justificação ideológica ancorada na Fé e na sua negação, utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório. (Souza, 1990, 85).

Com efeito, Frei Vicente do Salvador, autor da primeira história do Brasil, escrita em 1627, assim se refere à mudança do nome das novas terras conquista das, de “Terra de Santa Cruz” para “Brasil” (Carvalho, 2006):

Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome [Terra de Santa Cruz] e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e verme lha com que tingem panos, do qual há muito,

Roque Pinto

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4Nesse sentido é emblemática a canção “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”,

escrita em 1973 pelo compositor brasileiro Chico Buarque e pelo cineasta moçambicano Ruy Guerra para a peça teatral “Calabar — O Elogio da Traição”, que retrata o episódio histórico da invasão holandesa no Brasil (1630-1654) e revisa a deserção de Domingos Fernandes Calabar das fileiras portuguesas em favor dos neerlandeses. A referida canção rapidamente foi alçada ao status de grande êxito da música popular brasileira:

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor [...] Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá

Vê se me usa, me abusa, lambuza Que a tua cafuza não pode esperar [...] Vê se me esgota, me bota na mesa Que a tua holandesa não pode esperar.”

Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo

nesta terra, como que importava mais o nome de um pau com que tingem panos do que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramen tos da Igreja [...]. (Salvador, 1982, 57).

De qualquer modo, tanto desde a perspectiva da “terra sem males” quanto a da “terra dos pecados”, a sexualidade se mantinha como um elemento central, quer como uma “atitude natural” — tal qual retratrada, por exemplo, na pintura paisa - gística holandesa no Brasil setecentista (Pesavento, 2004) — ou como uma tenta - ção demoníaca, como ilustra praticamente toda a literatura religiosa do Brasil Colônia.

Posteriormente, Gilberto Freyre iria recentralizar e atualizar esse tema no contexto da Casa Grande & Senzala (Freyre, 1998 [1933]) e, mais recente men - te, pode-se ver tal temática até mesmo no pastiche de história na literatura brasileira contemporânea, à guisa do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (Ribeiro, 1984).

Dentro da cartografia turística de lugares imaginados, o Brasil ocuparia a posição do “paraíso perdido” com todas as conotações que dela deriva. E este é o pano de fundo do imaginário (especialmente português) em que se dese nhará a imagem de Gabriela.

Desse modo, Gabriela — o filme, a telenovela, o livro, a personagem e seus desdobramentos imagéticos e sociológicos — seria um prolongamento dessa idéia mais ou menos difusa de entrega desenfreada dos desejos carnais como reflexo de um mundo incivilizado no sentido elisiano (ou pelos menos dotado de uma “civilidade incompleta”), é dizer, um mundo onde a "evolução dos costumes" não logrou atingir um alto nível de autocontrole dos gestos, afetos e, sobretudo, da fisiologia humana (Elias, 1993 e 1994).

Assim, Gabriela representaria uma espécie de sinédoque do Brasil e do seu suposto modelo de convivialidade, significando um tipo de sujeito moral à Mauss, marcado por alguns traços peculiares, dentre eles, a idealização de um modus

vivendi plasmado pela sensualidade/sexualidade.

3. Do híbrido à pureza: Gabriela como projeto civilizacional