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3. A escrita surrealista de Walter Benjamin

3.2. O ensaísmo benjaminiano

3.2.2. A dialética paralisada benjaminiana

O conceito de dialética de Walter Benjamin, tal como exposto na Critica de

Arte (2002), apresenta uma visão peculiar do movimento dialético que não está de

acordo com o ponto de vista do marxismo ortodoxo. A dialética na qual Benjamin desenvolve o seu pensamento é uma dialética negativa256/257, que, diferentemente do conceito de dialética tradicional hegeliana, não produz síntese. No primeiro capítulo de sua tese sobre O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (2006), Benjamin afirma que o pensamento de Fichte, a partir da colocação do Eu-Absoluto, havia tomado dois rumos: por um lado, seguia o caminho de Hegel, preconizando o pôr, a primeira parcela da dialética, na qual o eu se coloca; por outro lado, toma o caminho de Schleiermacher, onde o centro de pensamento era focado na reflexão infinita: “O romantismo fundou sua teoria do conhecimento sobre o conceito de reflexão, porque ele garantia não apenas a imediatez do conhecimento, mas também, e na mesma medida, uma particular infinitude do seu processo.”258 (BENJAMIN, 2006, p.30) Para Benjamin, a afirmação de Schleiermacher de que a “Auto intuição e intuição do universo são conceitos intercambiáveis; daí por que cada reflexão é infinita259“ (idem p.42) era o ponto central da reflexão ou seja, para Benjamin, é fundamental marcar o caráter infinito da reflexão, e portanto, também da interpretação da obra de arte. Deste modo, Benjamin escreve, nas Passagens Parisienses (2006) que a “Dialética na imobilidade é

256 Sobre este assunto ver: Susan Buck-Morss, 1981

257 O termo "dialética negativa", que geralmente se relaciona a obra de Theodor W. Adorno também

aparece na obra benjaminiana com um sentido semelhante.

258

Die Romantik gründete ihre Erkenntnistheorie auf den Reflexionsbegriff nicht allein, weil er die nmittelbarkeit der Erkenntnis, sondern ebensosehr, weil er eine eigentümliche Unendlichkeit ihres Prozesses garantierte. (GS I, p. 21)

259 Selbstanschauung und Anschauung des Universums sind Wechselbegriffe; darum ist jede Reflexion

a quintessência do método” 260 (BENJAMIN, 2006, p. 949), pois o pensamento dialético, em sua oscilação entre dois pontos, é o modo de proceder da própria ensaística benjaminiana, tal como já analisamos neste capítulo.

Para Susan Buck-Morss (1981), Benjamin propõe um tipo de conhecimento diferente do lógico discursivo, embora equiparasse a arte à ciência do ponto de vista epistemológico. As proposições dos discursos estético e técnico-científico convergiriam, como assinala Buck-Morss, a um saber igualmente válido, retirando assim, da técnica, a exclusividade do saber científico:

Benjamin e ele [Adorno] consideravam a arte como uma forma de conhecimento científico. Talvez sua contribuição mais importante tenha sido uma forma de revelação secular, e em insistir na convergência estrutural das experiências científicas e estéticas. Desafiavam assim um dualismo fundamental do pensamento burguês, a oposição binária entre a “verdade” científica e a arte como “ilusão” que havia caracterizado o pensamento burguês desde o século XVII 261

(BUCK-MORSS, 1981, p.17). 262

A revelação laica operada pela arte, assim como defendida por Benjamin, seria, como assinala Buck-Morss, uma afirmação de que a arte seria capaz de um conhecimento tão valido quanto o científico.

O modo como cada época criaria suas semelhanças pelas imagens arquetípicas e como irão lê-las nos objetos de arte, segundo Benjamin, provém de um conhecimento coletivamente constituído. Também segundo Buck-Morss, a filosofia da linguagem de Benjamin conteria uma teoria da linguagem e da recepção: “os objetos eram mudos. Mas o seu potencial expressivo (para Benjamin linguístico) tornava-se legível ao filósofo atento que os ‘nomeava’, traduzindo este potencial à linguagem humana das palavras e, portanto, fazendo-os falar” (idem, ibidem). A cada época, os objetos artísticos puderam significar coisas diferentes, mas sempre dentro de certos modelos arquetípicos. Assim Buck-Morss, entre outros, identifica na visão estética de Walter

260 Dialektik im Stillstand - das ist die Quintessenz der Methode. (GS V, p. 1035)

261 Benjamin y el [Adorno] consideraban al arte como una forma de conocimiento científico. Quizá su

contribución más importante fue una forma de revelación secular, y en insistir en la convergencia estructural de las experiencias científica y estética. Desafiaban así un dualismo fundamental del pensamiento burgués, la oposición binaria entre la “verdad” científica y el arte como “ilusión”, que había caracterizado al pensamiento burgués desde el siglo XVII.

Benjamin uma aproximação entre as obras do barroco e da vanguarda, bastante presentes em Rua de Mão Única (1995). Em ambos, o que importaria seriam as alegorias: “mas se o estilo de ambas as obras é antitético, o conteúdo do trabalho antigo mantém uma surpreendente afinidade com o novo.”

Segundo Buckmorss (2002, p.41), “O estudo sobre o Drama Barroco tenta resgatar teoricamente a alegoria”, isto é, realizar uma salvação por assim dizer laica dessa figura tradicionalmente teológica. Nas narrativas e reflexões compiladas no volume de Rua de Mão Única Benjamin teria executado uma “prática alegórica”, modificando o sentido do conceito de redenção:

O estudo sobre o Trauerspiel tenta redimir alegoricamente a alegoria. Rua de mão única faz isso praticamente, e, no processo, transforma o significado da redenção. Não é o objeto alegórico (o drama barroco), mas a prática alegórica que redime (idem, ibidem).

A alegoria, assim como a compreendeu Benjamin, seria formada por fragmentos de imagens dispostos por um processo de montagem arbitrário. Podemos perceber uma semelhança entre a montagem alegórica e a técnica de colagem surrealista. Com efeito, as técnicas de montagem surrealista arrancam os objetos de sua vida funcional: “Sua atividade, afinal, não consiste senão em matar a ‘vida’ do material, isto é, arrancá-lo de seu contexto funcional, que é o que lhe empresta significado” (BÜRGER, 2008, p.129) Assim, a obra formada por fragmentos desconexos apontam para uma falta de sentido: “o vanguardista [...] junta fragmentos com a intenção da atribuição de sentido (onde o sentido pode muito bem ser a indicação de que não existe mais nenhum sentido)” (idem, p.130)

Essa errância de sentido conforma uma dialética que não necessita de uma síntese imobilizada e harmonizadora. Mantendo as características da errância, a dialética benjaminiana não aceita uma síntese que abarque o final do processo e que seja a anulação das suas parcelas. Ao contrário, progride em uma dialética negativa, promovendo um movimento constante do pensamento, conforme ressalta Krakauer:

Em absoluta coerência com o seu pensamento, não se trata mais para Benjamin de identificar as essências por meio de um conceito geral abstrato, pois o que lhe interessa é só a sua síntese dialética, que lhe assegura a plena concretude. (KRACAUER, 2009, p. 280)

Ao manter as parcelas sem a anulação recíproca, cada etapa da operação dialética permite que uma nova visão do processo seja percebida na forma de sínteses parciais, rápidas e fugazes. Krakauer ressalta que o caráter instantâneo desta percepção, que se assemelharia a fagulhas:

Se as significações se unem em torno de uma ideia, elas saltam de uma para a outra como fagulhas elétricas, ao invés de se “anularem” em um conceito formal. No curso da historia elas eventualmente se submetem a uma separação dialética e cada qual adquire uma história subsequente de si mesma, sobre si mesma. (KRACAUER, 2009, p. 280-281)

Cada ideia, cada fagulha é capaz de iluminar toda a realidade, e este movimento obedeceria a uma dialética contínua. Este é o caráter monadológico que Krakauer reconhece em Benjamin, a ideia, como uma mônada, conforme já observamos no segundo capítulo desta tese, ao tratarmos das mônadas, contém a consciência de toda a sociedade, e segue o esquema de macro e micro-cosmo, no qual o mundo é explicado pela ideia, e esta se realiza no mundo:

A diferença entre o pensamento abstrato tradicional e o de Benjamin seria, portanto, a seguinte: enquanto o primeiro dilui a plenitude concreta dos objetos, o último escava na densa matéria para expor a dialética das essências. Ele não aceita nenhuma espécie de generalidade e persegue o desenvolvimento de determinadas ideias ao longo da história. Uma vez que para Benjamin toda ideia é uma mônada, o mundo parece-lhe revelar- se na representação de cada uma delas (KRACAUER, 2009, p.281)

O pensamento benjaminiano alcançaria a plenitude concreta dos objetos pela exposição das suas essências. Essa seria a mônada que se revela em cada objeto singular. A forma do ensaio permitiria ao ensaísta mimetizar a reflexão, construindo um pensamento que capta o objeto por diferentes modos de aproximação. Walter Benjamin adota o gênero ensaístico pelas suas características abertas, dialéticas, e errantes, que lhe permitem mimetizar o processo do pensamento reflexivo que desconstrói o objeto, expondo-o em suas diferentes dimensões.