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2. Walter Benjamin e a Iluminação profana: A propedêutica (Vorschule) da arte surrealista

2.4. Leituras da iluminação profana

2.4.1. A Filatelia como deflagradora da iluminação profana

Tanto a filatelia quanto as coleções retiram os objetos de suas funções originais, e os organiza de forma arbitrária, criando uma ordem diferente no mundo. Walter Benjamin acrescenta ao conceito de filatelia uma característica particular: o colecionador de selos benjaminiano não se interessa pelo valor comercial do selo. O selo valeria somente pela sua condição de miniatura, fazendo com que a filatelia seja uma representação do mundo em miniatura.

Fürnkäss considera que, o conceito benjaminiano que antecede a iluminação profana seria o de filatelia. Segundo ele, a coleção de selos seria capaz de iluminar as condições históricas, constituindo-se como uma “propedêutica filosófica do pensamento histórico”206 (FÜRNKÄSS, 1988, p.113). A filatelia benjaminiana mimetizaria a tarefa do “detetive, arqueólogo e cabalista”207 (idem, ibidem) e operaria uma “profanação radical na vida cotidiana e habitual.”208 (idem, ibidem), tornando se uma “precursora exemplar”209 (idem, p.116) da iluminação profana.

A filatelia retiraria o objeto de sua função corriqueira e o inseriria em uma nova ordem, em uma catalogação enciclopédica diferente. Ao contrário do filatelista colecionador usual, não é o valor do selo o que conta para a coleção benjaminiana, mas somente o ícone apresentado, interessa o elemento gráfico visual estampado no selo. Que reproduz uma ordenação lógica do mundo representada pela imagem em miniatura. Podemos perceber no conceito de filatelia benjaminiana que Fürnkäs nos apresenta uma inversão das categorias do conhecimento de Platão210, esta inversão será tratada mais especificamente adiante, aqui basta-nos relembrar a ideia de que, dentro de uma categoria de conhecimento platônica, a filatelia representaria a cópia em série de uma cópia do objeto de arte (cópia já em 3º. grau), ou seja, o pólo mais distante da Ideia. O

206 philosophische Propädeutik des historischen Denkens 207

Detektive, Archeologe und Kabbalist

208 radikalisierte Profanation im alltäglischen und gewöhnlischen Leben“ 209 exemplarische Vorschule

210

Em Platão o objeto autêntico só existe na Ideia. O objeto palpável é construído como uma cópia deste. A representação artística seria a cópia da cópia. De modo análogo o conhecimento dado pela arte estaria o mais longe possível do conhecimento verdadeiro, que se encontra nas Ideias. Ver: Platão. A república. Capítulo VII. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkien. S.d. pp 317- 362

colecionador benjaminiano se aproximaria do seu objeto munido de um olhar não puramente mercantil em relação às miniaturas:

Em uma distância irônica da filatelia como ciência auxiliar do mercado de antiguidades que liga o interesse estético sentimental ao comercial, os selos de Benjamin exigem uma filatelia excêntrica, nova, que une os processos de descoberta e reconhecimento do detetive, do arqueólogo e do cabalista com a geografia e a história da criança, que procedem e têm experiências de caráter mimético, pousando um olhar indagador sobre as suas “cifrinhas, letras miúdas, folhinhas aos olhinhos”.211 (idem, p.113)

Com efeito, a descrição infantil dos selos feita por Benjamin nesta citação de

Rua de Mão Única (1995) segue afirmando que “selos são eriçados de cifrazinhas,

folhinhas e olhinhos. São tecidos celulares gráficos. Isso tudo fervilha entremeado e, como os animais inferiores, mesmo despedaçados continuam a viver.” (BENJAMIN, 1995, p. 58) Essas miniaturas reorganizadas em diferentes constelações criam novas imagens, onde as partes das figuras originais ainda podem ser reconhecidas, “como sinal de que está composta de matéria morta” (idem, ibidem). Observamos que o uso do vocabulário diminutivo marca o olhar benjaminiano que incide sobre o objeto, pois é a criança que olha. O olhar infantil denota a aproximação curiosa, já negando ao objeto o seu lugar de conforto. Tão logo é alcançado, o objeto já é retirado de seu contexto original e reorganizado arbitrariamente. A prática filatélica deveria tornar esse processo perceptível.

A filatelia benjaminiana pode ser tomada como uma sucessão de objetos descontextualizados. O que importa para Benjamin não poderia ser o valor comercial do selo, mas, sim, o objeto gravado ou o lugar representado. Benjamin lida com a filatelia como um jogo de ordenação do mundo. Ela permitiria uma nova visão do acontecimento histórico, atualizando-o ao transpô-lo para seu novo local na coleção. Neste processo, o acontecimento seria “salvo” de sua cristalização no passado, e assumiria uma função nova que, ao mesmo tempo, interferiria na visão que o colecionador teria daquele passado:

211

In ironischer Distanz zur Philatelie als Hilfswissenschaft des ästhetisch-sentimentales und kommerzielles Interesse kurzschließenden Antiquitätenhandels fordern Benjamins Briefmarken eine exzentrische, neue Philatelie, die die Entdeckungs- und Wiedererkennungsverfahren von Detektiv, Archäologe und Kabbalist mit der mimetisch er- und verfahrenden Geographie und Historie des Kindes im forschendem Blick auf ihre „Zifferschen, winzigen Buchstaben, Blättschen uns Äuglein“ vereint.

Segundo Fürnkäss, “A filatelia benjaminiana, que pretende ser a propedêutica filosófica do pensamento histórico, visa em contrapartida compreender como o “agora da cognoscibilidade” o instante da iluminação profana” (idem, p.113). A iluminação profana surgiria assim como um clarão no qual se pode perceber a imagem de um “mundo em sua atualidade completa e multidimensional” 212 (BENJAMIN, 1994, p.34) e no qual reluz “o semblante surrealista surreal das coisas no agora” (BENJAMIN, 2006, p.948).

O filatelista se confundiria com um colecionador, pois ambos buscam novas semelhanças nos objetos de suas coleções para catalogá-los, destruindo assim a relação funcional do objeto por outra, talvez de natureza sentimental ou estética, mas nunca prática: “Depois, a relação com as coisas que não coloca em primeiro plano o seu valor funcional, portanto a sua utilidade, mas as estuda e ama enquanto palco, teatro de seu próprio destino” (BENJAMIN, 2013, p. 90)

As miniaturas filatélicas permitiriam uma nova organização do mundo que remeteria a possibilidade de uma reorganização efetiva e real, existindo assim uma relação entre o microcosmo – que seria, neste caso, a filatelia – e o macrocosmo, a história. A reorganização do mundo em pequena escala serviria como propedêutica para a reorganização das forças sociais, econômicas e políticas. Benjamin veria na filatelia a possibilidade de uma relação microcosmo – macrocosmo com o mundo real.