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3. A escrita surrealista de Walter Benjamin

3.1. O despertar da consciência pela crítica de arte

O conceito romântico de crítica é fundamental para entendermos o conceito de arte de Walter Benjamin. Segundo o conceito romântico, o movimento de reflexão parte do sujeito em direção ao objeto e volta ao sujeito como um pensar de segundo grau. Essa fórmula corresponde à noção do não-eu de Fichte e confere um dado objetivo à crítica de arte, pois ainda que a crítica aconteça no sujeito, ela partiria do objeto. O pensar então se dá em um movimento de expansão do eu em direção ao objeto e de retorno ao sujeito.

A reflexão provoca, neste vai e vem do pensar, uma espécie de elevação sucessiva, que faz o pensamento atingir um momento de iluminação em um átimo, que se manifesta por um clarão, no instante em que o sujeito faz a conexão da forma empírica com a ideia (infinito das formas). De acordo com a reflexão romântica, a obra e o sujeito seriam elevados em conjunto pela reflexão a este cume, que seria o Witz. O Witz surge sempre, como apresentamos no primeiro capítulo da tese, acompanhado de seu par Witz-Blitz. Para Benjamin essa luz dada pelo Witz-Blitz é a luz sóbria que, ao causar um ofuscamento na obra singular, permite a visão da Ideia:

A absolutização das obras feitas, o procedimento crítico, era para ele [Schlegel] o que havia de mais elevado. Isso se deixa simbolizar, numa imagem, como a produção do ofuscamento da obra. Este ofuscamento – a luz sóbria – faz com que a

pluralidade das obras se extinga. É a Ideia.229 (BENJAMIN, 2002, p.121)

É o instante do Witz que insere a obra no infinito das formas, e é este o instante da ironia romântica: a destruição da forma empírica por sua integração ao infinito das formas artísticas. A luz que incide sobre a obra provoca um ofuscamento, ou seja, há um excesso de luz que eleva a obra do plano singular para o plano mais geral e abrangente, o da Ideia. Assim a obra é iluminada pela razão: o entendimento estético pode então perceber a Ideia, ou seja, para Benjamin, os românticos operaram uma inversão da concepção platônica de ascensão às ideias. Antes de voltarmos ao modo como Walter Benjamin subverte a doutrina das Ideias devemos retomar alguns pontos já vistos sobre o conceito benjaminiano de crítica.

De acordo com o que vimos no capítulo sobre o romantismo alemão, o produto da reflexão, o pensar do pensar sobre a obra, constituiria para os românticos a dimensão crítica de uma obra. O conceito de crítica benjaminiano foi aprendido com os românticos alemães: a crítica deveria completar a obra, pois só a crítica é capaz de revelar suas múltiplas possibilidades, sem cristalizar-se numa leitura unívoca. A crítica completa a obra, ou seja, a obra não é finalizada pelo artista, mas somente se realiza (ou se atualiza) no momento de sua reconstrução crítica, de modo que a completude da obra se dá no momento da leitura, pois é o leitor que realiza essa atualização da obra. Assim, a existência da obra dependeria da leitura. Esse seria o pressuposto de que parte toda a arte de vanguarda: o objeto existiria em relação a (ao conceito de arte; ao conceito de museu, ao conceito de sociedade). Cada atualização modificaria a obra de modo a se tornar parte integrante do conceito de conteúdo coisal (Sachgehalt) da mesma da obra.

Benjamin teria aprendido com Schlegel que a forma fragmentária seria aquela que, em sua gênese, deixa preparado o lugar do observador e da crítica, ou seja, ela seria “consciente” de sua incompletude. A obra não aparentaria uma unidade natural, tornando evidente a necessidade de uma interpretação crítica. Para Benjamin a crítica seria o ponto central da teoria romântica da arte: “Na arte romântica, porém, a crítica não é apenas possível e necessária, mas, antes, em sua teoria encontra-se de modo inevitável o paradoxo de uma valorização superior da crítica do que da obra.”230

229 Es läßt sich in einem Bilde versinnlichen als die Erzeugung der Blendung im Werk. Diese Blendung -

das nüchterne Licht - macht die Vielheit der Werke verlöschen. Es ist die Idee. (GS I p.119)

230 In der romantischen Kunst aber ist Kritik nicht allein möglich und notwendig, sondern unausweislich

(BENJAMIN, 2002, p.121). A construção do pensamento, como demonstra Kant na

Crítica da faculdade do juízo estético (1995), não seria somente um produto da

evolução da lógica cartesiana: ela seria ativada no momento em que a faculdade crítica percebe a sua incapacidade de abarcar o objeto e convoca a imaginação em seu auxílio. A imaginação, assim estimulada, tem a capacidade de ajudar a construir aquilo que não pode ser percebido, seja pela sua grandeza ou pela sua ausência.

Segundo Peter Bürger (2008), a religião criou o modelo de mundo a ser retratado pela arte: “[...] os ideais religiosos são a medida daquilo que deveria existir na realidade.” (BÜRGER, 2008, p.29). Desta forma, a crítica de arte estaria ligada à crítica da religião. Bürger remete à origem etimologia do termo “crítica” no grego krinein:”[...] divorciar, separar [...]”, e a interpreta como a distinção entre “[...] a verdade e a não verdade da ideologia.” (idem, p.31). A crítica manteria assim intacto o conteúdo de verdade do objeto, mas o tornaria transparente para as análises das ideologias nele embutidas, de modo que “a crítica destrói as ilusões religiosas (não o conteúdo de verdade da religião) para tornar o homem capaz de agir” (idem, p.33). Na Crítica de

arte (2002), Benjamin afirma que a crítica eleva o pensamento até a verdade: “ser

crítico implica elevar o pensamento tão acima de todas as conexões, a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreensão da falsidade das conexões, surgiria o conhecimento da verdade” (BENJAMIN, 2002, p. 56). A crítica permite ao pensamento entender as relações reificadas, perceber o mito apaziguador (“a falsidade das conexões”) e alcançar a dissipação das ilusões. Este conhecimento surge “magicamente”, não como uma construção racional mas como uma apresentação da verdade.

Jeanne Marie Gagnebin (2005) chama a atenção para a tradução do termo Darstellung em português231. Conforme a distinção já feita em Kant, Darstellung seria a

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O primeiro mal-entendido a ser dirimido é uma questão de tradução. A palavra Darstellung — utilizada por Benjamin para caracterizar a escrita filosófica — não pode, (aliás, nem deve), ser traduzida por “representação”, como o faz Rouanet (que comprendeu perfeitamente o alcance do texto, conforme sua “Apresentação” muito esclarecedora demonstra, mas que o traduziu, às vezes, de maneira pouco precisa), nem o verbo darstellen pode ser traduzido por “representar”. Mesmo que essa tradução possa ser legítima em outro contexto, ela induz, no texto em questão, a contra-sensos, porque poderia levar à conclusão de que Benjamin se inscreve na linha da filosofia da representação — quando é exatamente desta, da filosofia da representação, no sentido clássico de representação mental de objetos exteriores ao sujeito, que Benjamin toma distância. Proponho, então, que se traduza Darstellung por “apresentação” ou “exposição”, e darstellen por “apresentar” ou “expor”, ressaltando a proximidade no campo semântico com as palavras Ausstellung (exposição de arte) ou também Darstellung, no contexto teatral (apresentação). GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Do conceito de darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza“, revista Kriterion, Belo Horizonte, 2005, pp. 183-190. p.184

exposição ou apresentação, em contraposição a Vorstellung, que seria a representação. A exposição da ideia se afasta do discurso direto, que expõe o conteúdo transmissível e é captada pelo pensamento racional. Benjamin aprende com os românticos o significado do pensar crítico, o pensar do pensar (pensar de segundo grau) e o pensar do pensar do pensar, (pensar de terceiro grau). Esses diferentes modos de pensar não estão mais ligados à representação, mas sim à apresentação, são pensamentos sobre uma forma. Para Jeanne Marie Gagnebin, são as outras possibilidades do conhecimento que o pensamento oferece: “Pensar filosoficamente não é única e exclusivamente conhecer ou refletir sobre as condições e possibilidades do conhecimento humano.” (GAGNEBIN, 2005, p. 186). É através da Darstellung que a arte se conecta ao conhecimento, uma vez que a crítica seria um modo de pensar sobre a forma da obra de arte, sendo a crítica que lhe confere valor gnosiológico.

Os termos Darstellung e Vorstellung, tais como Kant232 (1995, p. 196) os apresenta na sua terceira crítica, são fundamentais para entendermos a mudança na concepção da arte no século XX, em especial, aquela de Walter Benjamin, assim como apresentada ao longo de sua obra. Darstellung traduziria o conceito de “apresentação”, que seria a apresentação estética de uma ideia, enquanto que o termo Vorstellung traduzir-se-ia por “representação” e seria o a representação do deleite ou dor233.

Para Benjamin, o que poderia ser percebido na obra de arte é a Darstellung, a apresentação de sua forma: o modo como as partes são dispostas na obra. A Darstellung se liga à forma, em oposição ao conceito de Vorstellung, a representação do conteúdo da obra. A representação do conteúdo de uma obra não é capaz de revelar algo sobre esta obra, nem é capaz atingir o espectador; esses efeitos são fruto do modo como a obra é construída – o pensar sobre a obra é ligado à apresentação (Darstellung), ou seja, à percepção da forma. Deste modo, sendo a Darstellung a exposição da Ideia da obra, Benjamin inverte desta forma o axioma platônico e afirma que a verdade da obra está na

232 Kant explica a questão da forma de apresentação dos conceitos puros no parágrafo 59 da Terceira

Crítica. A intuição não é capaz de chegar ao conceito, mas ele pode ser exposto: "...Uma intuição tal que o procedimento da faculdade de juizo é mediante ela simplesmente analógico ao que ela observa no esquematismo, isto é, concorda com ele simplesmente segundo a forma da reflexão, não do conteúdo." (KANT, 1995, p. 196).

233 A tradução de Valerio Rodhen e António Marques (1995) para português contém um glossário no qual

constam os dois termos. "Apresentação" (Darstellung, exhibitio) e "exposição": "Apresentar = colocar ao lado do conceito a intuição correspondente; = representar esteticamente; = hipótese do infinito, de uma ideia, de ideias estéticas; é a faculdade da imaginação." (Rodhen e Marques, in Kant, 1995, p. 333). "Representação (Vorstellung) bela de uma coisa (não = coisa bela) toda representação liga-se a deleite ou dor" (KANT, 1995, p. 367)

aparência da mesma. A essência de uma obra de arte, ou a sua verdade, não pode ser explanada, mas somente exposta.

A exposição da Ideia e seu caráter de proximidade remetem ao conceito benjaminiano de destruição da aura. Há uma relação de antinomia entre os conceitos de aura (que é a emanação da tradição) e de iluminação profana, que forma uma entre as tantas constelações opositivas que podem ser identificadas na obra de Walter Benjamin. A luz que emana da aura vem da tradição, da unicidade da obra, tem um caráter totalizante ou orgânico. A iluminação profana é uma luz que surge como explosão, e que não vem sendo construída ao longo de séculos de exposição, firmando o seu valor de culto. A luz profana surge da forma fragmentária, que provoca à reflexão. A aura é a luz que surge do passado, do que está longe. A sua autoridade vem da distância temporal, atestado pela unicidade, que a diferencia daquilo que é cópia. Como observa Taisa Palhares, a aura legitima a autoridade da obra:

A aura denota o modo de ser da obra de arte no contexto da tradição: Aura autenticidade como original, peça única produzida pela mão do autor. E que desfruta por isso de uma superioridade qualitativa sobre a qual se legitima sua autoridade com relação às falsificações, e da qual deriva seu poder de testemunho histórico. (PALHARES, 2006, p.51)

A autoridade histórica do objeto único faz com que o objeto aurático esteja sempre distante; ao contrário, no processo da iluminação profana, o objeto está próximo. O conceito de Darstellung subjacente ao da iluminação profana deixa sempre transparecer a ideia como a essência que está na aparência: a Ideia é exatamente aquilo que está visível. No texto sobre a Obra de Arte, Benjamin afirma que o fim da aura “resultou numa teologia negativa da arte”234 (BENJAMIN 1994, p. 171), pois nada se espera da exposição além da obra mesma.

A Darstellung, tida como a exposição da Ideia, permite que o pensamento crítico abarque a obra pela sua forma, pois a forma da obra é a forma como a Ideia se expõe. Em Benjamin, a apresentação revela a ideologia da obra, tornando o mito visível; divorciando, pela crítica, o mito religioso - que não se mostra como tal - dos mitos do despertar, que revelam a si e as estruturas históricas em que estão inseridos.

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