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Iluminação simbólica ou crítica teológica: as formas não autênticas da iluminação benjaminiana

2. Walter Benjamin e a Iluminação profana: A propedêutica (Vorschule) da arte surrealista

2.4. Leituras da iluminação profana

2.4.3. Iluminação simbólica ou crítica teológica: as formas não autênticas da iluminação benjaminiana

A aproximação entre o romantismo alemão e o surrealismo foi bastante documentada pela literatura crítica contemporânea de Walter Benjamin. Em 1937 é publicada a obra de Albert Béguin (1981), L’âme romantique et le revê: Essai sur le

Romantisme allemand et la Poesie française219 , na qual o autor propõe uma filiação dos surrealistas franceses aos românticos alemães: os autores de Jena teriam sido os responsáveis pela introdução do tema do sonho na literatura, antecipando a atitude da vanguarda francesa. O crítico francês aponta para a relevância da aproximação de temas afins entre os autores de 1800 e os do século XX: “As afinidades que dão origem às grandes famílias espirituais importam mais do que o modo de transmissão das ideias e dos temas” 220 (BEGUIN, 1981, p. 16). Beguin analisa separadamente os autores de ambos os movimentos, ressaltando os temas recorrentes.

No mesmo ano de 1937 Benjamin publica uma resenha do livro de Béguin221 (BENJAMIN, 2013b, 167-170) na qual ressalta a visão de Béguin dentro do panorama da literatura alemã, colocando o movimento dos primeiros românticos na esteira dos místicos alemães (BENJAMIN, 2013b, p. 169). Conforme demonstramos ao longo deste trabalho, Benjamin considera a forma da arte, o meio [das Medium], e a reflexão decorrente – a arte vista como Darstellung - o melhor caminho para aproximar as duas épocas distintas. O dito “conteúdo” da obra perde a relevância, pois, limitar-se a ele seria colocar um aspecto não artístico como parâmetro para análise. A arte, para Benjamin, seria exatamente a reflexão. Uma análise que se prende a conteúdos e significados seria uma análise meramente regressiva ou teológica.

Esse ponto marcaria a diferença entre Béguin e Benjamin: o modo de aproximação do objeto usado pelo primeiro pode revelar uma visão histórica sobre o movimento e a sua época, mas não foi capaz de iluminar nem o movimento artístico,

219 A alma romântica e o sonho: Ensaio sobre o romantismo alemão. Obra sem tradução para o

português. Utilizamos a tradução mexicana da obra, El alma romântica y el sueño, ensayo sobre el romanticismo aleman y la poesia francesa. Todas as traduções são de nossa autoria.

220 Las afinidades que dan origen a las grandes famílias espirituales importan mucho mas que al modo de

transmisión de las ideas y de los temas.

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nem o momento histórico em que ele aconteceu. Segundo Benjamin, “Ele [Béguin] não conta com a possibilidade de que o cerne real e sintético do objeto, como revelado ao conhecimento histórico, possa enviar uma luz na qual se decompõem as teorias do romantismo sobre os sonhos”222 (BENJAMIN, 2013b, p.196). Benjamin afirma que, para Béguin, o objeto teria passado despercebido. Na resenha, Benjamin questiona a leitura de Béguin, remetendo à Goethe:

Goethe lembra que aquele que empreende uma análise deve ter o cuidado de basear-se numa síntese autêntica. Por mais atrativo que seja o objeto tratado por Béguin, é de se perguntar como se coaduna com o conselho de Goethe a postura com que se acercou desse objeto”223 (idem, p. 168)

Beguin não partiria então de uma síntese autêntica, para usar as palavras de Goethe. Ao invés disso, seu estudo parte de uma semelhança entre conteúdos; por isso, a sua aproximação ao objeto não permite abarcá-lo, e sua análise se ateria aos temas semelhantes entre românticos e surrealistas, sem levar em conta os aspectos formais de reflexão.

Conforme pudemos observar, Benjamin cria uma série de conceitos baseados em pares antitéticos e complementares. Esses pares conceituais obedecem regras semelhantes aos conceitos antitéticos que levantamos no primeiro capítulo desta tese. Em Benjamin o conceito não só é delimitado pelo que ele é (em uma definição positiva), e por aquilo que ele não é (uma definição pelo oposto, negativa). O significado só pode ser captado quando a apresentação dos conceitos consegue pairar oscilante entre as duas definições. Essas podem surgir de um só termo, como o binômio antitético de iluminação profana, ou em pares conceituais, como os conceitos de experiência e vivência, ou experiência x perda de experiência, conceito de aura x conceito de perda da aura. Iremos ainda retomar o conceito de aura no terceiro capítulo, a fim de contrapô-lo ao conceito de objeto kitsch, propondo como par antitético o objeto aurático x objeto onirokitsch. Também reconhecemos em Benjamin uma relação

222 Er rechnet nicht mit der Möglichkeit, daß der wirkliche, synthetische Kern des Gegenstandes, wie er

sich der historischen Erkenntnis erschließt, ein Licht aussenden könnte, in dem die Traumtheorien der Romantik zerfallen. (GS III, p. 560).

223 Wer eine Analyse vornimmt, so erinnert Goethe, der sehe zu, ob ihr auch eine echte Synthese zugrunde

liegt. So anziehend der von Beguin behandelte Gegenstand ist, es ist die Frage, wie die Haltung, in der der Autor sich ihm genähert hat, mit dem Goethischen Rat zu vereinbaren ist. (GS III p. 559).

antitética entre os conceitos de iluminação profana e iluminação teológica, evidente pala oposição dos termos teológico x profano da oposição teológico x profano.

No texto sobre Willy Haas de 1931, Crítica teológica224 (2013b, p.127-130), Walter Benjamin apresenta um conceito de iluminação teológica que encerraria a obra em interpretações, destruindo, deste modo, o conceito de arte ligado à obra. “O motivo básico dessa visão é que a iluminação teológica das obras constitui a interpretação propriamente dita tanto de suas determinações políticas, quanto das determinações de suas modas, tanto de suas determinações econômicas, quanto de suas determinações metafísicas.” (BENJAMIN, 2013 b, p.129). A iluminação teológica das obras cria o que podemos chamar de uma capa mítica que impede a visão sobre o objeto.

A iluminação teológica da obra se ocupa da obra pelo seu sentido, busca entender os “conteúdos” da arte, tal como o seu tema, sem levar em conta porem as suas características formais, ou seja: ignorando a definição de a arte como forma. Segundo Walter Benjamin (2002), a crítica de arte é a exposição da forma da arte e uma crítica que exponha somente os seus temas seria uma crítica que não pode alcançar o seu objeto, seria pois uma crítica que mantém uma distância mítica em relação ao objeto, e assim não pode iluminá-lo diretamente. Esta luz distante emana do mito que conforta o objeto.

A iluminação profana suspende a lógica discursiva em um momento crítico – e ao invés de levar a uma conciliação, tal como creem vários críticos, como Otávio Paz (2012, pp.140-156) – cremos que, conforme afirma, entre outros, Michael Löwy (2002), a iluminação profana traga consigo uma imagem da revolução: a imagem que surge é sempre a imagem da possibilidade do despertar da consciência revolucionária.

Como forma de conhecimento do mundo, a iluminação profana estaria ligada, ao mesmo tempo, à negação da objetividade e à construção de uma nova visão do mundo. Neste processo, há uma ressignificação dos objetos cotidianos, deslocados de sua função, produzindo um instante de reflexão crítica em que o objeto se desfaz no clarão do entendimento. O próximo capítulo busca apresentar as características surrealistas da escrita de Walter Benjamin.

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