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A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial

2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM

2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial

O propósito deste capítulo é estudar o pensamento de Friedrich Nietzsche, examinando-o a partir das suas principais influências filosóficas, qual sejam, a interpretação do mundo como vontade e representação, e o pessimismo metafísico de Schopenhauer. É, também, apresentar a tentativa de superação deste pessimismo, por parte de Nietzsche.

A partir da diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche, burcar-se-á retomar as questões apolíneas e dionisíacas presentes no pensamento destes dois filósofos. Assim, pretende-se contrapor o pessimismo schopenhaueriano ao encontrado em O nascimento da tragédia, e examinar o esforço do jovem filósofo para superar tal legado em uma proposição afirmativa da vida, a qual é fruto de uma ênfase nietzschiana a Dionísio.

2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche

Também para Schopenhauer o homem deve ser superado; mas em Schopenhauer o homem é o superado e para Nietzsche aquele que supera. (Georg Simmel)1

1 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 157. Tradução livre.

O distanciamento entre a filosofia de Schopenhauer e a de Nietzsche ocorre antes mesmo deste último concluir seu livro O nascimento da tragédia, embora a influência schopenhaueriana esteja presente na obra de Nietzsche.

Esta ruptura já se mostrava na mudança de interpretação sobre a arte e em especial sobre a música. No texto A visão dionisíaca do mundo, de 1870, observa-se uma leitura mais fiel de O mundo como vontade e representação sob o aspecto musical, do que em O nascimento da tragédia, no qual já se percebem indícios de um afastamento em relação à metafísica de Schopenhauer.

Anna Hartmann Cavalcanti, em um estudo sobre o fragmento póstumo 12 (1) no livro Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, aponta tal distinção:

Nietzsche introduz, no fragmento 12 (1), importantes modificações na teoria do sentimento desenvolvida em A visão dionisíaca do mundo, na qual afirma, em concordância com a filosofia de Schopenhauer, que a música simboliza todas as nuances do sentimento, sendo capaz de expressar a própria essência da vontade.2

Trata-se de uma mudança em relação à filosofia da arte schopenhaueriana e sua interpretação sobre a música. Esta forma de arte era considerada por Schopenhauer como a mais elevada em função de manifestar a vontade. Para Nietzsche, por sua vez, ela é a própria expressão direta de um “fundo originário”.

2 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

Mudou, então e por conseqüência, em Nietzsche, a noção schopenhaueriana em relação à vontade.

Nietzsche aponta uma contradição em seu mestre, pois, para ele, a música não pode ser a manifestação de algo que não pode ser representado. Para Schopenhauer, a música é a reprodução direta da vontade mesma, porém, contraditoriamente, elas não são idênticas, pois a vontade, enquanto coisa em si, é irrepresentável.

José Thomaz Brum faz um estudo sobre a diferença entre os dois filósofos no que concerne ao pessimismo e concorda neste ponto com Nietzsche:

se a música designa a essência do mundo e da vontade e engendra prazer violento, ela não pode convidar à resignação como vimos no caso da tragédia. Schopenhauer, que rejeita as manifestações dolorosas da vontade no mundo, extasia-se com o prazer musical. Ele experimenta uma satisfação estética nesse mundo à parte nessa ‘língua do sentimento e da paixão’. A filosofia schopenhaueriana da música, que representa a coisa em si efetivamente a cantar, revela um pessimista que se submete ao poder efêmero da consolação pelo som.3

O mundo é para Schopenhauer sobretudo vontade. E é com o corpo que se tem acesso à realidade originária e dolorosa. A vontade, enquanto impulso cego e visceral, ávido de vida, se objetiva em idéias e fenômenos, e é percebida pelo princípio de individuação no mundo dos fenômenos, dentro do espaço e do tempo. A vida se consome a si mesma e isto é a causa da dor e do sofrimento. “Aquele tipo

3 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 94.

mais suave, mais rápido, mais sutil de ação dos corpos uns sobre os outros, ao qual agradecemos a de longe mais perfeita e pura das nossas percepções”.4

Georg Simmel, ao considerar as diferenças entre Nietzsche e Schopenhauer, apresenta a seguinte distinção:

A diferença de posição entre ambos os filósofos, apesar da concordância quanto ao ponto de partida – negação do fim absoluto como ser –, acentua-se naqueles valores aos quais se dirige principalmente a desvalorização schopenhaueriana do mundo. Quando num dado momento não existe nem um fim absoluto, como no cristianismo, nem um relativo, como na teoria da superação de Nietzsche, o valor se traslada indefectivelmente e as emoções são determinadas pelo próprio momento, em dor e em prazer.5

Schopenhauer aponta, na música, a capacidade de causar alívio momentâneo a esta dor que é sentida pelo corpo.

Em Nietzsche, a noção de vontade – o princípio originário – é, simultaneamente, dor e prazer supremos. Em A visão dionisíaca do mundo, ele escreve que “nos gregos a vontade queria se contemplar transfigurada em obra de arte: para se magnificar, as suas criaturas precisavam se sentir como dignas de magnificação, elas precisavam se rever em uma esfera mais alta”.6

A tragédia grega está assentada em meio a um transbordamento de vida, enaltecido por Nietzsche, aceitando sofrimento e prazer em um êxtase sublime e

4 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 272-273.

5 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 20. Tradução livre.

6 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich

Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 18.

dionisíaco. A tragédia escuta um cantar distante – o cantar que fala das Mães do Ser, cujos nomes são ilusão, vontade e dor da vida em abundância.7 O termo Mães do Ser, em Nietzsche, é usado como recorrência ao Uno-primordial, assim como as expressões Fundo Originário e Fonte Primaveril e, mesmo Vontade. Todos esses termos, apesar dos diferentes significados e símbolos que carregam, remetem à mesma tese do Uno-Primordial, que os engloba. A natureza do Uno-primordial, marcada por dor e sofrimento, neste filósofo, é também supremo prazer e embriaguez. Anna Cavalcanti salienta que a tese nietzschiana do Uno-primordial tem uma natureza conflituosa e que o sofrimento originário, cuja essência é a contradição, procura sua superação na aparência. Ainda referenciando o fragmento 12 (1), neste âmbito, ela explica que:

O principal aspecto que diferencia o fragmento 12 (1) de O nascimento da tragédia é justamente o de formular a existência de dois diferentes domínios da experiência, o âmbito fenomênico e um âmbito que escapa às representações, a partir do questionamento do caráter metafísico da vontade, assim como da caracterização da linguagem como uma atividade simbólica, sem relação com a essência das coisas. Diferentemente de O nascimento da tragédia, onde esse distanciamento em relação a Schopenhauer não é explicitado, nesse fragmento a vontade, assim como o conjunto do mundo pulsional, só podem ser conhecidos enquanto representação, não segundo a essência. E o fundamento originário, não mais associado ao conceito de vontade de Schopenhauer, passa a ser descrito de modo

7 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 20, p. 123.

indireto, a fim de enfatizar o caráter inacessível às nossas representações, indecifrável desse domínio originário.8

Em contraposição, para Nietzsche, a vontade é uma forma de fenômeno, ou ainda, ela pertence ao mundo da aparência. Assim, a arte, para Schopenhauer e Platão, é pura imitação das idéias. Já para Nietzsche ela é a própria “aparição” de uma instância originária que, na tragédia grega, pela música trágica, ocorre no coro a figura do deus Dionísio.

A estética de Schopenhauer é um elogio ao homem contemplativo que foge do mundo. Já a estética de Nietzsche se mostra como um elogio às aparências e promove a reconciliação das pulsões artísticas com a existência.9 O que resulta em dizer que a arte, para Schopenhauer, é apenas um consolo, um sedativo momentâneo, enquanto, para Nietzsche, ela se mostra como a via de acesso para a essência do mundo.

Anna Hartmann Cavalcanti aponta, ainda sobre o Uno-primordial, que o substancial é a sensação, o aparente é o corpo ou a matéria. Em seu estudo, a distinção entre sensação e a forma é um elemento essencial para reflexão sobre a teoria do Uno-primordial.10 A autora observa que a sensação não é produto do corpo, mas ele é o resultado da sensação, ou seja, é uma projeção artística, uma imagem.11

Para Rosa Maria Dias, em conformidade com esta idéia, Nietzsche percebe esta vontade diferentemente de Schopenhauer, por ultrapassar as barreiras usuais

8 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 54-55.

9 BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 115-116.

10 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: Daad, 2005. p. 189.

dos postulados da racionalidade. Obtém-se, assim, a compreensão por intermédio da intuição12 poética.13

Por fim, o que diferencia o pensamento de Schopenhauer do de Nietzsche é o seu posicionamento diante da vida.

Schopenhauer carece de compreensão para com o sentimento que perpassa Nietzsche plenamente, quanto ao sentimento da solenidade da vida. Nietzsche, em oposição a Schopenhauer, extraiu do pensamento da evolução um conceito completamente novo de vida: o de que a vida é, no seu ser mais íntimo e próprio, intensificação, aumento, concentração cada vez maior das forças ambientes no sujeito.14

O que Simmel reconhece em Nietzsche é o sentimento de solenidade perante a vida. A idéia de dor, medo e sofrimento schopenhaueriana é substituída, em Nietzsche, por um regozijo diante da vida. A visão do terror diante da vontade, em Schopenhauer, é transfigurada em louvor à vida, em Nietzsche, que fala em dádiva já na Seção 1 de O nascimento da tragédia, quando descreve a transfiguração dionisíaca proporcionada não pela tristeza, mas, antes, pela alegria.

Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial. Cantando e dançando, manifesta-se o homem

12 A intuição é o instrumento de investigação que Nietzsche observa, por exemplo, na filosofia heraclitiana. A intuição, em Heráclito, será apresentada no item 4.1. da presente investigação.

13 DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e Schopenhauer: uma primeira ruptura. In: FEITOSA, Charles et al. A

fidelidade à terra: arte, natureza e política. Assim falou Nietzsche IV. Rio de Janeiro: DPA, 2003. p. 240.

14 SIMMEL, Georg. Schopenhauer y Nietzsche. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. p. 15-16. Tradução livre.

como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares.15

A arte trágica permite afirmar o sofrimento universal como que inerente à vida e sua expansão inexorável, ou, como salienta Rogério Miranda de Almeida em Nietzsche e o paradoxo: “o heleno profundo lança seu olhar sobre as forças destruidoras da história e da natureza, corre sempre o risco ‘de aspirar a uma negação budística da vontade’. Mas a arte vem em seu socorro, ela o salva... transfigurando-o [o sofrimento universal] pela afirmação ou pelo sim à vida”.16

A influência de Schopenhauer está presente em todo O nascimento da tragédia e, com ela, as idéias de Kant e as implicações entre o que é acessível e o que é incognoscível. Porém, por meio da arte trágica, mediante a ilusão apolínea e a música dionisíaca, é revelado o fundo mais íntimo das coisas, da vontade ou do Uno-primordial, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico.

Ainda no texto de Rogério Almeida, se assevera o distanciamento de Nietzsche em relação à doutrina schopenhaueriana da resignação.

Nos últimos capítulos [de O nascimento da tragédia], Nietzsche não se contentará mais em se interrogar sobre as relações entre o apolíneo e o dionisíaco, nem em somente constatar que a tragédia reproduz a vontade universal, onde o artista e o espectador dionisíaco mergulham o olhar no Uno originário e, assim, transfiguram o sofrimento por meio da arte. Não! Ele dará um passo a mais na tentativa de captar este fenômeno

15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 1, p. 31.

original que é a arte dionisíaca e de compreender em que propriamente consiste o gozo que nela experimentamos.17

Sem recorrer a uma justificativa moral sobre o prazer, Nietzsche contesta a interpretação do mito trágico, quando visto como catarse ou efeito de alívio. O mito é, segundo o filósofo, uma forma superior de arte e não uma descarga de tensões sociais. Para entender esta forma de arte e a sua pulsão e sua alegria dionisíacas, faz-se necessário apresentar a perspectiva do pessimismo em Schopenhauer e em Nietzsche. Isso, além de observar a tentativa de superação por parte do discípulo em relação à postura schopenhaueriana de resignação frente à vida.

No próximo item da presente pesquisa, após identificar as diferenças entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial em Nietzsche, abordar-se-á a superação do pessimismo na filosofia que se pretendia afirmativa da vida.