• Nenhum resultado encontrado

1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A TEORIA DO

1.3 A teoria do Uno-primordial

O Uno-primordial como ‘uno vivente’ representa a totalidade da força vital da natureza concebida como um único ser vivo não individualizado. (Benchimol)58

É no início dos seus escritos, que Friedrich Nietzsche concebeu, ou intuiu, uma série de elementos que proverão sua original produção filosófica posterior. Ou, por que não dizer, desenvolveu os preceitos que justificam sua ruptura com a tradição filosófica platônica.

Para se entender o conceito do Uno-primordial na perspectiva de Nietzsche, é necessário encontrar na dimensão dionisíaca, excluída do cenário socrático, a via de acesso mais autêntica para a compreensão da existência, sem deixar de considerar a dimensão apolínea, necessária à consciência, à harmonia e ao processo de individuação.

Os primeiros escritos da obra de Friedrich Nietzsche têm, entre outras peculiaridades, a relevância dada à filosofia da Grécia antiga ou, mais apropriadamente, à tragédia grega e aos filósofos pré-socráticos. Porém, a tese do Uno-primordial passa pela noção romântica de sua época, em que se concebe a imagem do mundo como um único organismo vivo que gera a si mesmo.

58 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.

É a partir da dimensão dionisíaca, presente na tese do Uno-primordial, que Nietzsche desfere um ataque aos pressupostos do racionalismo da tradição filosófica ocidental. Esse ataque está presente em seus primeiros escritos e conjuga um esforço intelectual para superar a bipartição metafísica do mundo, estabelecida pela racionalidade e compreendida até então entre o “real” e o “aparente”, ou seja, entre a realidade do mundo físico e a do mundo metafísico. A idéia do mundo como organismo vivo só pode ser concebida a partir desta superação da bipartição metafísica.

Para tornar possível tal superação, Nietzsche analisa o momento em que ocorre a supremacia da razão, que passa a ser entendida como princípio constitutivo do Ser, concomitantemente à morte da tragédia grega. O filósofo pressupõe uma incongruência entre o conceito e a realidade e, inspirado em Heráclito de Éfeso, valoriza uma “percepção intuitiva” da existência, traço fundamental da filosofia trágica, como um instrumento superior à racionalidade, para investigar a existência. Daí a retomada da Grécia antiga como modelo para verificar e valorizar uma outra forma de interpretação da vida e da existência e elaborar a metafísica de artista, diferente da tradição ocidental, racionalista, e, assim, diagnosticar seu próprio tempo.

Ao propor a superação da identidade entre conceito e realidade, questão que se inicia em Sócrates,59 Nietzsche pretende subordinar a razão e a própria ciência a

uma instância de investigação anterior e mais essencial, qual seja, a interpretação estética, artística e intuitiva da vida.

59 A leitura particular nietzschiana sobre Sócrates o aponta como responsável pela Decadence, mas esta terminologia não é usada por Nietzsche em seus primeiros escritos.

A vida, para Nietzsche, tem como fonte original uma natureza obscura, irracional, cega e selvagem, dolorosa e atuante. É a perspectiva dionisíaca em questão, ou o Uno-primordial.

Para elucidar o que significa essa natureza irracional, faz-se necessário entender a oposição Apolo-Dionísio na tragédia grega, vista pela perspectiva de Nietzsche, a fim de diferenciá-la da vontade (sua fonte inspiradora) em Schopenhauer,60 que já havia constatado esta natureza irracional, em O mundo como vontade e representação:

A Vontade também é o Em-si da coisa particular e do indivíduo que a conhece, os quais a objetivam imperfeitamente. Vontade que, alheia à representação e a todas as suas formas, é uma única e mesma tanto no objeto contemplado quanto no indivíduo que se eleva à contemplação e se torna consciente de si como puro sujeito. Esses dois, por conseguinte, não são em si diferentes, pois em si são a Vontade que aqui se conhece a si mesma. Pluralidade e diferença existem apenas devido à maneira como esse conhecimento chega à Vontade, ou seja, apenas no fenômeno, e em virtude de sua forma, o princípio da razão. Assim como eu, sem o objeto, sem a representação, não sou sujeito que conhece, mas pura Vontade cega, assim também sem mim, como sujeito do conhecer, o objeto não é coisa conhecida, mas pura Vontade, ímpeto cego.61

60 Ver o Capítulo 2.1 da presente investigação.

61 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 248-249.

A teoria do Uno-primordial é relevante para compreender a filosofia afirmativa e dionisíaca de Nietzsche, diante da qual razão e consciência são apenas suas manifestações superficiais.

Segundo Nietzsche, é a vida em seu transbordamento e não a vontade cega, como descrita por Schopenhauer, que existe “no fundo das coisas”. Aponta Benchimol que,

de fato, Nietzsche, através da idéia do Uno-primordial, procurou compreender, assim com os filósofos pré-socráticos, o surgimento dos entes individuais a partir da diferenciação de um Ser primordial, afirmando, ao mesmo tempo, a necessária dissolução destes entes novamente no seio daquele Ser. Com isto, novamente à semelhança da filosofia pré-socrática, procurou explicar o surgimento da pluralidade a partir da unidade e do determinado a partir do indeterminado, bem como dar conta da relação entre o Ser e o devir.62

Em Schopenhauer, a vontade como coisa em si sugere uma nostalgia pelo nada. Para Nietzsche, esta vontade schopenhaueriana é aparência, fenômeno. O prazer, em Nietzsche, é mais originário que a dor. A dor é considerada como fenômeno decorrente da vontade de prazer, ou vontade de vir a ser.

Anna Hartmann Cavalcanti, esclarece sobre este distanciamento entre Schopenhauer e Nietzsche:

A concepção da vontade como aparência representa [...] o distanciamento de Nietzsche em relação à metafísica da vontade de Schopenhauer e o desenvolvimento de uma

62 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 36.

concepção artística do Uno-primordial, descrito como um processo de criação e produção ativa da aparência [...]. Esse tema é apresentado na tese, desenvolvida no fragmento 12 (1), de que a vontade é a forma mais universal da aparência. A vontade é diferenciada do ser originário e descrita tanto como forma da aparência quanto como alternância de dor e prazer. Nietzsche caracteriza o sofrimento como fonte originária das coisas, o ser verdadeiro, caracterizado como ‘a sensação de si’. Esse sofrer e sentir projetam a vontade como um processo artístico originário, através do qual é engendrada a forma e a visão, a libertação da dor na aparência. A vontade, compreendida como a forma mais geral da aparência e associada ao devir.63

Assim, observa-se que existe um elemento essencial no Uno-primordial, que é a necessidade de libertação do ser verdadeiro, em sua eterna dor e contradição, por meio da visão extática e da aparência prazerosa, conclui Cavalcanti.

A dimensão dionisíaca que se pode perceber a seguir diz respeito à dissolução do princípio individualizador apolíneo:

Vejo Apolo diante de mim como gênio transfigurador do principium individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas.64

63 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. p. 188.

64 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 16, p. 97.

É evidente a importância das duas forças na sustentação nietzschiana de que a tragédia grega, pela metafísica do artista, enaltece a aparência como necessária à vida e como única via de acesso “à essência”, ou ao Uno Primordial.

Ao evidenciar a filosofia socrática que privilegia, lega, uma visão racional e lógica da realidade, Nietzsche evidencia a fonte moral intencional do instinto do conhecimento. O que o filósofo propõe é uma perspectiva alternativa que implica uma apologia à arte trágica em que, em Dionísio, reside a afirmação da vida pela aparência, porque a própria vida é aparência.

Anna Hartmann Cavalcanti apresenta em seu livro Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, um estudo sobre O nascimento da tragédia e os Fragmentos póstumos, os pressupostos metafísicos que dão origem à teoria estética nietzschiana e ao conceito do Uno-primordial.

O filósofo observa que as pulsões artísticas da natureza, em sua aspiração à aparência, revelam um elemento essencial do Uno Primordial, a saber, a necessidade de libertação do ser verdadeiro, em sua eterna dor e contradição, por meio da visão extática e prazerosa.65

Cavalcanti ainda acrescenta uma importante observação quanto a um duplo movimento de Nietzsche, que, ao conceber o conceito ontológico do Uno-primordial, desenvolve, assim, uma metafísica da arte, ao mesmo tempo que tece uma crítica à metafísica e os seus pressupostos clássicos.

Segundo Nietzsche, há uma oposição entre um instinto estético e um instinto de conhecimento. Ele aponta Apolo como gênio transfigurador do principium

65 CAVALCANTI, Anna Hartmann. Símbolos e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em

individuationis, proposto como único veio de alcance da verdade (instinto de conhecimento). Porém, apesar deste afã socrático, é pelo júbilo dionisíaco (aquela “isca” perigosa do instinto estético, que aturdiu o filósofo na hora da morte),66 que tal feitiço da individuação se dissolve dando acesso ao caminho para as “Mães do Ser”, ou “cerne mais íntimo das coisas”, ou seja, o Uno-primordial.

A essência do Uno-primordial é a contradição, caracterizando-se tanto pela dor suprema quanto pelo prazer supremo.

O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados.67

Por “limites da existência” e “usuais barreiras”, entendem-se a dimensão moral criticada por Nietzsche, ou a opção pelo conteúdo luminoso da razão, ou ainda o princípio individualizador próprio do deus Apolo que proporciona a capacidade de tolerar o absurdo da existência.

O elemento letárgico, que Nietzsche descreve como oriundo das vivências pessoais do passado, é o que impede de alcançar uma perspectiva sobre o movimento e sobre a transformação da existência que a arte trágica, a música

66 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 78.

67 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55-56.

ditirâmbica ou o instinto estético proporcionam. Segundo Leon Kossovitch, em Signos e poderes em Nietzsche, a figura, ou arte plástica apolínea, é passiva, é a

ignorância de movimento – as intensidades móveis estão do lado de Dionísio. Supressão das distâncias e da visão: o movimento dionisíaco suscita as reações musicais – canto e dança. Mas não menos essencial – que só a música e a mística fornecem – é o estabelecimento de uma comunicação que unifica as singularidades, abolindo-as como indivíduos, como consciência.68

Desta forma, pode-se compreender a validação dos dois movimentos: o de dissolução das consciências e das individualidades pela dimensão dionisíaca; e a de tomada de consciência e de individuação proporcionada pela dimensão apolínea.

Contudo, na composição da tragédia grega, a partir do coro, há uma ênfase na música dionisíaca, vista como apta a conduzir o homem ao “coração da natureza” e, assim, promover a sua reconciliação com a existência. Esta é a justificativa de Nietzsche ao interpretar a civilização grega como referência, ao ser capaz de conjugar a arte trágica como curativa e redentora da vida.

Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a “arte”; só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em apresentações com as quais é possível viver: são elas o “sublime”, enquanto domesticação artística do horrível, e o “cômico”, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. O coro satírico do ditirambo é o ato salvador da arte grega; no mundo intermédio desses

acompanhantes dionisíacos esgotam-se aqueles acessos há pouco descritos.69

Esta é a relação da tensão entre os opostos que se complementam e não se aniquilam. Esta luta oferece, ora em Apolo, ora em Dionísio, os determinantes para a afirmação da vida, pois conferem a dinâmica da tragédia grega.

Para lograr o êxito proposto de encontrar na dimensão dionisíaca a via mais autêntica para compreender a existência, faz-se necessário entender o sentido da vontade e sua distinção da concepção schopenhaueriana do que Nietzsche chama de “fundo originário” desta própria vontade, ou sentido primordial de todas as coisas – o Uno-primordial, fonte da suprema dor e do intenso prazer.

A dor, compreendida como fundo originário da vontade e como é concebida por Schopenhauer, é absorvida como influência pessimista por Nietzsche. Não obstante, em O nascimento da tragédia e, novamente, na Tentativa de Autocrítica, encontra-se também uma revisão de sua posição frente ao seu mestre, marcada pela presença mais pujante de Dionísio. Esta se mostra na interpretação deste fundo originário, também como prazer e sensualidade. E deste prazer evoca a força de redenção diante da obliteração, socrática e cristã. Para os dois filósofos, a vontade é a contradição e a dor. Não obstante, para Schopenhauer, a arte possibilita um apaziguamento diante da vontade, enquanto em Nietzsche, a própria vontade é aparência e, portanto, a possibilidade artística de redenção nela mesma. Em última instância, esta dimensão dionisíaca é o elemento adotado por Nietzsche para a superação do pessimismo schopenhaueriano.

69 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 56.

O ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso. [...] A moral mesma – como? A moral não seria uma “vontade de negação da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo dos perigos? [...] Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei “dionisíaca”.70

Esta força dionisíaca mostra-se em duas facetas do mesmo deus. Uma, do deus da desmesura, do caos, do êxtase; e outra, do deus da fecundidade da terra. Esta diferenciação torna-se cada vez mais clara diante da recorrência que Nietzsche faz das forças dionisíacas e marca a retomada deste “impulso” ou “instinto” estético, que apareceu na segunda fase dos seus escritos. Daí, estar na Tentativa de Autocrítica, quatorze anos depois da primeira edição de O nascimento da tragédia, e em Assim Falou Zaratustra, permanecendo até os últimos escritos da terceira fase. Deleuze aponta tal distinção, distinguindo as características das duas faces do deus Dionísio mencionadas. Afirma que “estamos longe do primeiro Dionísio, aquele que

70 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 19-20.

Nietzsche concebia sob a influência de Schopenhauer, como reabsorvendo a vida num Fundo original, como aliando-se a Apolo para produzir a tragédia”.71

É a este Dionísio da afirmação da vida que Nietzsche faz o seu elogio. E lhe dá a importância de “antídoto”, contra a socratização da cultura apolínea. No texto de As Bacantes, de Eurípides, ficam claras as duas aparições dionisíacas: uma personificada, outra impessoal, uma interpretação que impregna medo, outra que seduz e inebria.

Em Diálogo, Penteu que já se referia aos atributos físicos de Dionísio, descreve-o deste modo:

A verdade é que não és desgracioso de corpo, ó estrangeiro, pelo menos para o gosto das mulheres, por quem vieste a Tebas. Os teus cabelos compridos, porque não lutas nas palestras, caem-te pelas faces, plenos de desejo. Graças aos teus cuidados, possuis uma tez branca, conservada, não aos raios do Sol, mas no recanto da sombra, e com a tua beleza consegues captar as graças de Afrodite. 72

A exemplo destas duas aparições, nas notas da tradutora de As bacantes, Maria Helena da Rocha Pereira, são expressos os conteúdos ligados ao uso das máscaras na tragédia grega, bem como a afirmação do coro como representações dionisíacas.

Pereira comenta, ainda, que o uso dessa máscara por Dionísio traz um sorriso ambíguo: ora um sorriso de mártir, ora um sorriso destruidor.73 No coro de As bacantes, no épodo, são referidas as formas animalescas que Dionísio pode assumir, invocando um enigmático sorriso bizarro: “aparece com a forma de touro ou

71 DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Edições 70: Lisboa Portugal, 1965. p. 29-30. 72 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. § 455, p. 57.

serpente multifauce ou leão ignispirante. Vai, ó Baco, com teu rosto sorridente, e ao caçador das Ménades rodeia-o com teu laço mortífero, quando ele tomba na manada das Bacantes”.74

Na citação a seguir, Roberto Machado traz uma passagem que ilustra a força Dionisíaca retomada pelo próprio Eurípides, autor de As Bacantes, como arrependimento pela morte da tragédia. O culto dionisíaco das bacantes – cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dionísio, à noite, nas montanhas, invadiram a Grécia, vindos da Ásia – é a negação dos valores principais da cultura apolínea. Em vez de um processo de individuação, é uma experiência de reconciliação do homem com os outros homens e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade:

Sob a magia do dionisíaco, torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da reconciliação com seu filho perdido, o homem. [...] A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade.75

A arte trágica é caracterizada pela complementaridadeentre Apolo e Dionísio, e não por uma suposta oposição entre estes deuses. E esta peculiaridade é a nova estratégia artística nietzschiana de integrar, e não mais de obliterar, o elemento

74 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. Coro § 1020, p. 87.

75 MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 88-89.

dionisíaco que outrora fora transformado no próprio desgosto e horror pelo “absurdo” da dor da existência.76

A complementaridade parte de uma diferença essencial entre as divindades. Sem esta compreensão, não se pode entender a tese do Uno-primordial. Kossovitch faz um esclarecimento desta diferença, no âmbito da dinâmica de movimento, transformação e afirmação do devir, inerentes a esta tese.

A diferença Apolo/Dionísio é a da arte passiva e da ativa. A experiência dionisíaca é a dor do criador: é aqui que a alegria disseminadora de signos se exibe, mas é aqui também que se exprime o sim. Afirmar o devir no seu duplo movimento de criação e destruição das distribuições; não mais a visão, por essência recuo, separação, variedade, mas a experiência da inclusão numa totalidade subterrânea, em todos os pontos ativa: o amor fati.77

Assim, o Uno-primordial adquire status ontológico de coisa-em-si e também de origem de todo o mundo fenomenal, desempenhando o papel da vontade em Schopenhauer, porém distinguindo-se em sua formulação. A vida é tomada como tese fundadora e anterior a qualquer forma fenomênica.

Para compreender melhor a tese do Uno-primordial e as suas implicações com relação à vontade e à representação ou ao mundo fenomênico e ao mundo aparente, faz-se necessário identificar nas perspectivas de Schopenhauer as distinções e categorias nietzschianas. Para tal, serão abordadas a seguir a vontade

76 MACHADO, Roberto, Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 22 ss.

77 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170. As