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Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer

2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM

2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer

Todo o querer nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito, permanecem pelo menos dez que não o são. (Schopenhauer)18

Ainda hoje, as discussões acerca da “superação” do pessimismo schopenhaueriano nos primeiros escritos de Nietzsche ter sido alcançada ou não,

17 ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Loyola, 2005. p. 29-30.

18 SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índices: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 266.

divide a opinião de seus comentadores. A proposta afirmativa da vida baseada na dimensão dionisíaca manifestada especialmente na arte, e não na transcendência, já se mostrava vigorosa nesta sua primeira obra e define um referencial para tal superação. Para o filósofo, não é o otimismo que substitui o pessimismo, mas antes uma outra forma de entender o pessimismo pela via trágica.

O próprio Nietzsche, na sua auto-crítica a O nascimento da tragédia, reconheceu a “dificuldade” de sua compreensão. Apesar de afirmar que o livro estava destinado “para iniciados”, apontando a sua “inconveniência”, tanto quanto à sua forma, quanto ao seu conteúdo. Considerou-a

edificada a partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte [...]. Um livro talvez para artistas [...]. Ainda assim não quero encobrir de todo o quanto ele me parece agora desagradável, quão estranho se me apresenta agora [...]. Este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se – ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...19 [grifo presente no original]

Afirma também, na mesma auto-crítica:

Um livro talvez para artistas dotados também de capacidades analíticas e retrospectivas (quer dizer, um tipo excepcional de artistas, que é preciso buscar e que às vezes nem sequer se gostaria de procurar...), cheio de inovações psicológicas e de segredos de artistas, com uma metafísica de artista no plano de fundo, uma obra de juventude, cheia de coragem juvenil e de melancolia juvenil, independente, obstinadamente autônoma,

19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.

mesmo lá onde parece dobrar-se a uma autoridade e a uma devoção própria, em suma, uma obra das primícias, inclusive no mau sentido da palavra.20

Com esta perspectiva, faz uma crítica ao contexto de sua época, reafirmando a dimensão dionisíaca ou artística como antídoto ou cura às conseqüências da metafísica tradicional. Reedita o que ele chamou de “livro impossível”,21 sem modificações, apenas com o acréscimo do posfácio Tentativa de autocrítica. Nele, apresenta sua preocupação quanto ao pessimismo e sua interface com o dionisíaco.

Como pressuposto fundamental desta pesquisa, aceitam-se a importância e a deferência da obra primeira de Nietzsche como intuição e origem, suporte e “húmus filosófico” da sua construção teórico-filosófica. Nela, reconhecem-se a arte trágica e a dimensão dionisíaca como critérios básicos para a realização de toda a sua produção.

Quanto ao contraste entre o pessimismo de Schopenhauer e a afirmação da vida na obra de Nietzsche, cabe observar que, quando Nietzsche escolhe o autor de O mundo como vontade e como representação como inspiração do seu primeiro livro, foi porque este lhe ofereceu todo um arcabouço de reflexões impregnadas de inovações no campo crítico de superação do que estava instituído como válido e vigente na filosofia do século XIX.

Schopenhauer foi um dos primeiros pensadores a criticar o idealismo, que teve como ponto de partida os pressupostos filosóficos de Platão e de Kant, passando também por Hegel. Esses pressupostos delineavam um pensamento

20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.

21 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Seção 2, p. 15.

otimista, confiante na capacidade de a ciência e a lógica responderem aos anseios da civilização. Mas, para Nietzsche, as idéias modernas e a crença na ciência banalizavam o que havia de mais sublime: a vida

Segundo Paschoal, em Notas preliminares à leitura da I Consideração extemporânea [ou intempestiva] de Friedrich Nietzsche (1873),

em oposição a esse mundo desencantado das idéias modernas, Nietzsche propõe uma renovação da cultura alemã, por meio da filosofia de Schopenhauer, de alguns aspectos da cultura grega antiga e da música de Wagner. Frente à banalização do sublime, propõe a arte como representação da tensão que caracteriza a existência da força mítica da vida, como expressa a figura de Dionísio.22

A filosofia de Schopenhauer é fruto de uma “intuição” de mundo, em que o filósofo estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (noumenon), ou seja, entre o aparente e o que existe em si mesmo. Deve-se lembrar que, para Kant, a coisa-em-si não pode ser objeto de conhecimento científico como até então pretendeu a metafísica clássica. Assim, a ciência restringir-se-ia ao mundo dos fenômenos e seria consolidada pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento.

Em sua metafísica, Schopenhauer introduz algo que não existia no pensamento kantiano. Conclui que o mundo não seria mais do que representações, ou seja, intui que “o mundo”, num primeiro momento, seria uma síntese entre o subjetivo e o objetivo ou entre a consciência humana e a realidade exterior. Assim,

22 PASCHOAL, Antonio Edmilson. Notas preliminares à leitura da I Consideração extemporânea de

Friedrich Nietzsche. 2006. Inédito. Segundo Paschoal, este texto compreende a preocupação do autor em ler a cultura de seu tempo.

contrariando Kant, Schopenhauer pretendeu apreender a coisa-em-si, que para aquele é inacessível ao conhecimento humano.

Para o autor de O mundo como vontade e representação, a experiência interna revela ao “indivíduo” que ele é um ser que move a si mesmo. É pela experiência interna do indivíduo, que ele se percebe mais do que um objeto entre outros. Ainda, a coisa-em-si, conclui o autor, a raiz metafísica de toda a realidade, seria a vontade.

O mundo para Schopenhauer é, em essência, vontade. Ao pensar a vontade e a representação, o filósofo, em sua obra principal, esclarece que o mundo aparece ao homem em sua multiplicidade e em suas numerosas particularidades. Ele, o mundo, tem duas faces inseparáveis e necessárias: uma é o objeto – suas formas são o espaço e o tempo –, daí a pluralidade; a outra metade é o sujeito, que não se coloca no espaço e no tempo, no momento em que percebe ou que tem consciência da realidade.

Porém, como perceber essa realidade que se encontra “oculta” por detrás das aparências? Para Schopenhauer é por meio do corpo que se tem acesso a esta realidade, ou se toma consciência interna de que ela é vontade – um em si. Também, o corpo humano é apenas objetivação da vontade, tal como aparece sob as condições da percepção externa.

A vontade é, de acordo com Schopenhauer, o princípio fundamental da natureza, uma espécie de vontade única, superior, de caráter metafísico, presente no mundo vegetal, animal, assim como nas relações humanas.

O real é para este filósofo, cego e irracional enquanto vontade.

Aqui ele vai diametralmente contra Hegel, que afirma que a realidade suprema é o pensamento e que todas as coisas constituem um universo racional. Ou

seja, o real é racionalizável. Para Schopenhauer as formas racionais da consciência não passariam de ilusórias aparências, contrariando a prepotência idealista de “abarcar” toda a realidade pela razão. Schopenhauer observa que a experiência mostra o contrário de um mundo bom e idealizado, evidenciando antes a dor e o sofrimento, as maldades, as fatalidades, as perversões e os horrores, fundamentando que esta vontade cega define a realidade suprema, origem de todas as coisas, e isto explica o seu caráter irracional.

Evidenciar a arbitrariedade tirânica e visceral da vontade sobre a realidade é o que caracteriza a concepção schopenhaueriana, abrindo espaço para a construção nietzschiana.

Repensando a caracterização de Schopenhauer como pensador pessimista, este filósofo é também reconhecido como filósofo da vontade. Não obstante a vontade entendida como fundo originário, ela é concebida por ele como a fonte de todo o sofrimento e de toda a dor. Assim, pode-se ressaltar para posterior comparação com Nietzsche, que vontade e sofrimento, em Schopenhauer, não se diferenciam. O egoísmo (individuação) é natural na relação com o outro e com o meio em que se vive (natureza), uma vez que o corpo é habitado pela vontade, daí a sua susceptibilidade ao prazer e à dor, oriundos do desejo e da frustração, e a conseqüente luta de todos contra todos. Para Schopenhauer, a dor é perene e o prazer, momentâneo. Nietzsche inverte esta visão, como se pôde observar.

A vontade irracional, fonte de horror e sofrimento, é a imagem do suplício da humanidade e de um ciclo permanente dada a perversidade da natureza, vista pela perspectiva da vontade como cerne da realidade ou do mundo. Os parágrafos a seguir, do livro Crítica da filosofia kantiana, de Schopenhauer, descrevem esta concepção da doutrina do sofrimento do mundo:

Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara –, doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte etc. A história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos parecem apenas curtas pausas, entreatos, uma vez aqui e ali. E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua, porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio; mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho.23

Para esta leitura preliminar e que se fundamenta na afirmação da superação do pessimismo herdado por Nietzsche, parece que o pessimismo deriva da noção de vontade como conseqüência ética no pensamento do “Cavaleiro Solitário” como Nietzsche denomina seu mestre. Nietzsche não nega a realidade da guerra e da luta constante, mas as vê, como Heráclito (Capítulo 4), aceitando-as como inerentes à existência.

Todavia, no sistema schopenhaueriano, como mencionado, a vontade é a raiz metafísica do mundo e define a moral e a conduta humanas. Porém, é também sua fonte inesgotável de sofrimento. A vontade não tem meta ou finalidade, é um querer inconsciente que gera, em última instância, sempre dor e infelicidade. Na sua filosofia pessimista, o mal e o egoísmo são inerentes ao homem.

Em Schopenhauer, o prazer é apenas um momento fugaz de ausência da dor e a felicidade uma interrupção momentânea, temporária, de um processo de

23 SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da filosofia kantiana. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). § 150 e 151, p. 278.

infelicidade que permeia o mundo, pois viver é sofrer. Ainda assim, observa-se que, apesar do seu pessimismo, o filósofo aponta para algumas vias de superação da dor. A citar: a contemplação artística – foco deste diálogo; a superação ou o desaparecimento da individualidade, que podem tornar o homem bom, como diz a máxima: não prejudiques pessoa alguma, sê bom com todos; e a mortificação dos instintos, o caminho do Nirvana, ou seja, a fuga para o Nada.24

O que se percebe é uma tentativa de libertação do homem, mesmo que fugaz, diante da vontade. Porém, essa questão serve como ponto de partida para referenciar o estudo da influência do pessimismo de Schopenhauer na obra de Nietzsche e ressaltar a proposição afirmativa e dionisíaca deste, superando o legado de seu mestre.

Em Schopenhauer, é necessário também resgatar os elementos ou as vias de superação desta dor, que são a arte; a superação do egoísmo – a compaixão; e a auto-anulação da vontade – o Nirvana.

Schopenhauer não entende que a libertação proporcionada pela arte seja completa. No entanto, a atividade artística para ele revelaria as idéias eternas em diversos graus, passando pela arquitetura, escultura, pintura, poesia e em especial pela música. O mérito de colocar a música ocupando a primazia entre as artes é de Schopenhauer.25

Outra noção importante é a de superação da individualidade ou do egoísmo em um grau superior de conduta ética. Schopenhauer rejeita a ética kantiana, presa à noção de “dever”, acusando-a de ser coercitiva e ancorada em mandamentos

24 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 11.

25 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Vida e obra. In: SCHOPENHAUER. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores). p. 10-11.

(imperativos), mas aceita a noção de que a contemplação da verdade é o caminho de acesso ao Bem, que é uma noção platônica.

O indivíduo não é mais do que objetivação da vontade. Tal individualidade, na proposta schopenhaueriana, é pura ilusão gerada pela razão para conseguir seus fins (egóicos); servindo a razão, em última instância, à irracionalidade da vontade universal. A vida moral, portanto, consiste na renúncia à individualidade e em reconhecer-se como pura expressão da vontade universal. A arte aqui seria, pela contemplação estética, um exercício de desapego do egoísmo às coisas. É este egoísmo que faz do homem inimigo do próprio homem; e tal problema só pode ser superado pelo conhecimento da natureza única e universal da vontade.

A transição possível – embora, como dito, só como exceção – do conhecimento comum das coisas particulares para o conhecimento das Idéias ocorre subitamente, quando o conhecimento se liberta do serviço da vontade e, por aí, o sujeito cessa de ser meramente individual e, agora, é puro sujeito do conhecimento destituído de vontade, sem mais seguir as relações conforme o princípio de razão, mas concebe em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação.26

Ainda assim, o filósofo não entende que seja suficiente esta ética da comiseração, compaixão ou compadecimento, e que ela venha a constituir, efetivamente, um princípio de conduta para o homem.

Para Schopenhauer, a salvação do homem só pode ser encontrada na renúncia ao mundo. O homem pode tornar-se inerte, cessar o seu centro ambicioso

26 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 34, p. 245.

de vida, livrando-se do tumulto de aspirações sem fim, desejos e busca de alegria em meio ao “mar de sofrimento”, ou seja, a salvação está na mortificação dos instintos, na auto-anulação da vontade e na fuga para o nada:

Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar da natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. A tempestade das paixões, o ímpeto dos desejos e todos os tormentos do querer são, de imediato, de uma maneira maravilhosa, acalmados. Pois no instante em que, libertos do querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o que excita a nossa vontade e assim, tão veementemente nos abala, não mais existe. Tal libertação do conhecimento eleva- nos tão completamente sobre tudo isso quanto o sono e o sonho. Felicidade e infelicidade desaparecem. Não somos mais indivíduo, este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento.27

Se em Schopenhauer a busca de superação da dor na arte se mostra provisória, na moral, enquanto compaixão, essa busca de superação é definitiva. É uma consolação ou uma resignação, pois a vontade continua a fazer imperar a dor e o sofrimento. Na busca da superação da dor, Schopenhauer mostra-se talvez mais como um filósofo da vontade que propriamente do pessimismo, apontando que o mundo é a vontade e nada mais.

Uma observação do caminho que Nietzsche percorreu nos passos do mestre: ambos viam na música uma expressão artística superior e a relacionavam à tragédia grega. Enquanto para Schopenhauer ela apenas atenua o sofrimento diante da

27 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad., apres., notas e índice: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. § 38, p. 268-269.

vontade, perante o momento de contemplação, para Nietzsche ela configura o próprio mergulho e acesso à dimensão dionisíaca em uma afirmação da vida.

A tragédia, para Schopenhauer, é o retrato da dor. Este espetáculo trágico mostra quão angustiante é o mundo real, ou o mundo da vontade. Enquanto para ele a arte significava apenas um distanciamento passageiro e não a supressão da vontade, ao contrário, na obra de Nietzsche, a arte aparece como critério básico para a interpretação da vida.28 Nesse contexto, a tragédia grega é a possibilidade de afirmação desta mesma vida.

Em sua juventude, ao ler O mundo como vontade e representação, Nietzsche se deparou com a seguinte interrogação: uma vida absurda, sem razão, da vontade, merece ser aprovada? Na sua obra O nascimento da tragédia, o autor assume esse desafio, optando pela tragédia grega como uma resposta afirmativa e alegre diante do sombrio pessimismo schopenhaueriano.

Nietzsche, em lugar de anular a individualidade, ressalta a importância de fazer surgir o herói trágico, personagem este, que revigora exatamente aquelas forças instintivas, dionisíacas, oprimidas e rejeitadas pela racionalidade. Afirma, assim, a vida em sua tragicidade e o fundo originário, carregado de dor e sofrimento. Nesse sentido, ele se opõe ao seu mestre, que escolhe anular os instintos e opta pela fuga para o Nada, o Nirvana.

Nietzsche não tenta resolver a questão da metafísica clássica no campo racional. Ele aborda a metafísica junto à questão da verdade no campo da moral. Tenta desvencilhar-se da metafísica e afirma o homem no mundo e não fora dele – metafisicamente – como fez Schopenhauer.

Apesar de Nietzsche apontar em O nascimento da tragédia, os dois impulsos artísticos da natureza, o apolíneo e o dionisíaco, ambos já estavam presentes na filosofia de Schopenhauer. É, no entanto, na interpretação de Dionísio por Nietzsche, que se encontra a diferença essencial entre os dois filósofos.

Apolo é o deus da luz, da medida ordenadora do mundo, dos contornos precisos, é o princípio da lei e da individuação. Deus da verdade, da interpretação dos sonhos (Oráculo de Delphos), da música e da poesia, era “claramente luminoso e ordenadamente belo”.29 Medida, proporção, equilíbrio eram cânones próprios do princípio apolíneo.

Dionísio, por sua vez, é para os gregos o deus “das forças primitivas da natureza que embriagam os sentidos, deus do vinho, da dança e do teatro, sensualmente extático e ebriamente mítico, da música grega”.30 É o deus do fluxo da vida e também da sexualidade, em certo sentido, da desmesura e do êxtase; representa a fecundidade da terra. Também é o deus da música enquanto força primitiva da natureza que embriaga os sentidos.

Os opostos complementares expressos pelos deuses Apolo e Dionísio, na filosofia de Nietzsche, permitem um paralelo com a oposição entre representação e vontade, no pensamento de Schopenhauer. Como ressalta Roberto Machado, o mérito de Nietzsche, na oposição clara que faz a Kant e a Schopenhauer, embora influenciado por eles, é optar pela aparência como necessária à vida e como via de acesso à “essência”, à coisa-em-si ou, ainda, ao fundo originário. Faz, enfim, uma apologia à arte, pois, para ele, a arte lida com a aparência de forma autêntica. Em última análise, a aparência, para Nietzsche, é a representação. De outro lado, a vontade de Schopenhauer é o Uno-primordial de Nietzsche.

29 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171. 30 MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. v. 1. Madrid: Alianza, 1989. p. 171.

Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apologia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à manutenção, mas à intensificação da vida.31

Mas, ao ressaltar a importância da aparência no desfecho de O nascimento da tragédia, Nietzsche, em sua oposição apolíneo-dionisíaca aponta a embriaguez trazida “do estrangeiro”.32 É na embriaguez que acontece a morte ou o aniquilamento das individualidades e que o homem, retornando a um estado natural, reconcilia-se com a natureza, identifica-se com o Uno-primordial ou fundo originário.

Do exposto pode-se inferir que a ênfase de Dionísio no pensamento nietzschiano tem o efeito análogo às festas dionisíacas da antiga Grécia,33 por conta de que o pretenso equilíbrio entre as pulsões deve ser rompido pela força extasiante da embriaguez, da fecundidade e da inconsciência. É o desequilíbrio entre Apolo e Dionísio que leva o filósofo, assim como o poeta trágico, à percepção do indizível, do fundo originário, que Nietzsche chama de Uno-primordial.

O principium individuationis, por força do deus Apolo, é o oposto à dimensão dionisíaca, na qual as individualidades são dissolvidas na embriaguez da