• Nenhum resultado encontrado

O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega

3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA –

3.2 O coro como manifestação do Uno-primordial na tragédia grega

Essa tradição [antiga] nos diz com inteira nitidez que a tragédia surgiu do coro trágico e que originalmente ela era só coro e nada mais que coro... (Nietzsche)19

16 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78-79. 17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78 e 85. 18 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia. das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 21, p. 125.

19 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Dentro do propósito desta pesquisa, observa-se na leitura de O nascimento da tragédia o coro como um elemento fundamental na arte ática, associado à origem ou à fonte primordial e à sua natureza dionisíaca. Intenciona-se nesta etapa da investigação, observar a relevância dada por Nietzsche para o papel do coro na tragédia grega. A hipótese aqui defendida é a de que, segundo Nietzsche, o coro trágico é a própria expressão da voz do deus Dionísio, associado, por sua vez, à dimensão originária e primordial.

Nietzsche compreende o desenvolvimento da arte, ou da tragédia grega, como uma natureza inconsciente ligada aos mais obscuros instintos vitais. Daí a concepção valorizada pelo autor, da experiência estética como ponto de partida para a reflexão sobre a cultura, e a sua investigação filosófica orientada para a dimensão dionisíaca.

Para Nietzsche, existe uma estreita relação entre a pulsão artística e a própria vida. Quem teria percebido e vivido com intensidade e autenticidade esta estreiteza, fora os gregos trágicos? Neles “a vontade queria, na transfiguração do gênio e do mundo artístico, contemplar-se a si mesma. [...] Tal é a esfera da beleza, em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos”.20

Para examinar o papel do coro trágico, faz-se necessário retomar a idéia da tensão entre as pulsões apolínea e dionisíaca, bem como a descrição da música propriamente dita nesse contexto.

Os constantes conflito e reconciliação gerados pelas duas divindades do mundo helênico configuram o desenvolvimento da arte trágica. De um lado, tem-se Apolo, o deus da forma. De outro, Dionísio, o deus da arte não figurada, o deus da

20 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 3, p. 38.

música dissonante21 e da embriaguez. Nesse sentido, Nietzsche inicia seu primeiro livro com este esclarecimento:

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio [...] ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte; até que por fim, através de um miraculoso ato metafísico da “vontade” helênica, aparecem emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática!22

Apolo e Dionísio coexistem de forma ambivalente. Não obstante, a arte grega e, em especial, a música trágica tacitamente aparecem como diagnóstico contra o racionalismo socrático. E sobre os gregos e suas obras de arte, Nietzsche os define como

a mais bem sucedida, a mais bela, e mais invejada espécie de gente até agora, [...] a que mais seduziu para o viver, [...] os gregos. [...] Adivinha-se em que lugar era colocado, com isso, o grande ponto de interrogação sobre o valor da existência.

21 Dissonância: no decorrer da história, as sonoridades tidas como dissonâncias ou consonâncias variaram sobremaneira. São considerados consonâncias os sons “agradáveis ao ouvido” e dissonâncias, os “desagradáveis”. Ora, o que é agradável para uma certa sociedade não o é necessariamente para outra. Como exemplo, pode-se citar o caso da Música Medieval, em que a terça não era apreciada, sendo que no Classicismo e no Romantismo, ela passa a ser a essência da harmonia. Outro exemplo é a música védica indiana, na qual as consonâncias eram a quarta e a quinta, as dissonâncias as segundas e as sétimas, e as assonâncias as terças e as sextas. A dissonância a que Nietzsche se refere é aquela de finais do Romantismo, que ele relaciona com Dionísio, isto é, às emoções intensas, extasiantes e até sufocantes, angustiantes ou doloridas. Para ele, estes elementos caracterizam a tragédia grega (MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 21, 167 e 85).

22 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados – como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas as aparências entre nós, homens e europeus “modernos”? Há um pessimismo da fortitude? [...] O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia?23

Ao se examinar com mais detalhes a Tentativa de autocrítica, percebe-se que, já no seu parágrafo primeiro, faz uma crítica à ciência, ao socratismo e à moral. Este prefácio está marcado, do início ao fim, por uma ênfase ao reconhecimento de Dionísio como necessário contraponto à racionalidade, intimamente relacionado à música e, portanto, ao coro trágico. Daí a justificativa do problema da presente pesquisa.

É relevante assinalar que todo o texto constitui uma autocrítica quase que condenatória a O nascimento da tragédia, pelas adjetivações deletérias das quais faz uso, designando-o como um “livro bizarro”, “livro temerário”, “defeitos da mocidade”, “livro impossível”, “desagradável”, entre outras. Não obstante, pela centralidade dos significados de Dionísio na construção do seu pensamento, mesmo considerando essa obra “temerária”, ao reeditá-la reafirma sua importância no cenário filosófico. Enaltece a particularidade do deus da desmesura na trama da experiência trágica, bem como sua manifestação existencial no plano artístico, isto é, no plano da vida. Arte e vida se confundem por terem um fundo originário comum, sintonizadas, então, com a tensão entre as pulsões representadas pelos dois deuses e manifestadas no coro trágico.

23 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Nietzsche, com maior contensão, também faz um elogio à própria obra, reconhecendo-a como um livro para artistas especiais, com uma metafísica de artista no plano de fundo: “este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se – ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida”.24 Neste ponto, encontra-se a confirmação do elemento musical e dionisíaco pertinente à argumentação sobre o coro na tragédia grega.

Nietzsche discorre sobre a dificuldade de expressão de um conteúdo reservado a “iniciados”, ou “batizados em música”, um livro que se fecha ao profanum vulgus [vulgo profano] dos homens ditos cultos, mais ainda do que ao “povo”. E finaliza a seção cinco perguntando: “O que é dionisíaco?”.25

Para responder a esta pergunta contida na Tentativa de auto-crítica, pode- se tomar as palavras do próprio filósofo, que, na Seção 5 do livro em questão, aborda Dionísio, o Uno-primordial e a música. Baseado em sua metafísica de artista, Nietzsche expõe o caso do poeta lírico, intuitivo e “embriagado”:

Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que esta seja de outro modo, denominada com justiça de repetição de mundo e de segunda moldagem deste: agora, porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho.26

24 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 2, p.15.

25 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 4, p. 17.

26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.

Neste contexto, Nietzsche faz alusão em especial ao poeta trágico Ésquilo, ao dar primazia a um modo não conceitual e imediato de expressão, encontrado no canto do coral trágico. O filósofo remete a uma realidade inacessível à palavra ou ao conceito. A dramaturgia grega introduz na narrativa e principalmente no discurso do herói épico, esta redenção na aparência, ou a cura para a insuportável experiência de dor e contradição propiciadas por Dionísio.

A partir desta constatação, Nietzsche propõe que existe um “equilíbrio” entre a realidade não mediada pela palavra e pela narrativa. Observa-se então uma reflexão sobre o inconsciente e a passagem desta dimensão dionisíaca invisível e indizível, para uma dimensão apolínea – principium individuationis –, que é visível, narrada e conceitual, constituindo, assim, o que Nietzsche descreve como o nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Em suas palavras, no livro de 1872, o autor afirma: “o sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e determinado, este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética”.27

Trata-se de uma relação entre o Uno-primordial, enquanto força inconsciente dionisíaca e o mundo apolíneo fenomênico, ambos retratados de forma exemplar, curativa28 e única no âmbito da tragédia grega. A dor é oriunda da percepção de um fundo originário repleto de sofrimento e prazer extremos, insuportáveis à consciência. Daí a cura dar-se na aparência e no sonho apolíneo.

27 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 44.

28 Os termos curativo ou beberagem curativa, associados à tragédia grega (Seção 21), são explorados por Nietzsche, em O nascimento da tragédia, contrapondo-se à idéia de cura pela razão em Sócrates (Seção 13). O filósofo alemão adota a perspectiva dos poetas trágicos, enaltecendo-a e assumindo-a como sua própria filosofia. Toma a razão como doença e tem, no mergulho da dissolução do indivíduo no Uno-primordial, a noção de reconciliação com a natureza (Seção 16). Nietzsche aponta que a tragédia e a arte são adotadas pelos gregos como proteção e remédio (Seção 15). Nos seus escritos, percebe-se que ele assume essa concepção.

Aquele reflexo afigural e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na aparência gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado.

O artista já renunciou à sua subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela dor primordial juntamente com o prazer primogênio da aparência.29

A tensão entre as pulsões artísticas é fundamental na dinâmica para a transformação na existência. Na trama trágica, a música do coro é uma das manifestações desta tensão, que ocorre especialmente na voz da multidão “embriagada” e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um só com o Uno-primordial. Este é o papel do coro na tragédia grega: a personificação do deus Dionísio.

É com freqüência que Nietzsche menciona diretamente As Bacantes, de Eurípides, para fazer referência à dimensão dionisíaca ou primaveril, relacionando-a com a música, como segue na Seção 5, de O nascimento da tragédia.

O encantamento dionisíaco-musical do dormente lança agora à sua volta como que centelhas de imagens, poemas líricos, que em seu mais elevado desdobramento se chamam tragédias e ditirambos dramáticos. [...] O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta.30

29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 5, p. 44.

30 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

É em nota de tradução de As Bacantes, que Maria Helena da Rocha Pereira explica a facilidade que os gregos tinham em passar da personificação à representação da divindade, ou seja, passar da condição de ser humano à de um deus. Isso ocorre, por exemplo, no intervalo entre o diálogo de Penteu e Tirésias, estrofes 370 e 385, no trecho do coro que diz:

Reverência, senhora dos deuses, Reverência, que sobre a Terra passas tua asa dourada, ouves de Penteu as palavras? ouves a irreverente

insolência para com Brómio,

de Sémele o filho, ele que nos festins de belas coroas está à frente

dos bem aventurados? ele a quem pertence fazer cessar os cuidados

dançar no tíaso, rir ao som da flauta, fazer cessar os cuidados,

quando ao banquete dos deuses chega o brilho dos cachos,

e nos festins de hera engrinaldados, o krater31 derrama o sono

sobre os homens.32

A transformação dos personagens em divindades para que estas falem e intervenham na vida dos gregos também é observada na voz do coro, que, da mesma forma, cumpre com o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida ou,

31 Krater: vaso de grandes dimensões, destinado à mistura de água com vinho, que era de regra nos banquetes (Nota 18 do livro As Bacantes, de Eurípides. Lisboa: Ed. 70, 1998. p. 54).

32 EURÍPIDES. As Bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 54, estrofes 370 a 385. Nota-se que Brómio é também um nome de Dionísio.

como os gregos viam, imposta pelos deuses. A música dionisíaca, por acessar a fonte originária, ou até por ser a sua própria manifestação, é considerada, na perspectiva de Nietzsche, como o melhor instrumento para carregar esta tensão e envolver, também pelas suas características inebriantes e imitativas, o espectador dentro da trama do espetáculo, da representação, da tragédia.

Nietzsche, na Seção 6 de O nascimento da tragédia, faz uma relação da música com a poesia lírica, esta justificada como “fulguração imitadora da música em imagens e conceitos”33 ou representação da vontade no sentido schopenhaueriano. Não obstante, acrescenta que o espírito da música, em sua ilimitação, não precisa da imagem e do conceito; ou seja, dispensa a linguagem para alcançar por completo o simbolismo universal referente à contradição e à dor primordial no coração do Uno-primordial. Na poesia da canção popular, a linguagem empenha-se para “imitar” a música e o coro é a representação do povo, que na cena trágica, mostra-se como um extrato da multidão, ou “espectador ideal”.34

Para Schiller, de acordo com Nietzsche,35 o coro trágico se mostra como uma

muralha viva contra a realidade, ou seja, como uma esfera da poesia que não se encontra fora do mundo ou da dimensão do mundo fenomenal, mas sim da coisa em si, o Uno-primordial, tornando-se o consolo metafísico. Esse consolo metafísico, essa forma de o homem se posicionar frente à vida, essa é a essência da tragédia grega. O grego dionisíaco quer a verdade da natureza em sua força máxima, com toda a sua dor e com o seu prazer.

33 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 6, p. 50.

34 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 7, p. 52-53.

35 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

A excitação dionisíaca é “capaz de comunicar a toda uma multidão essa aptidão artística de ver-se cercada por uma tal hoste de espíritos com a qual ela, multidão, sabe interiormente que é uma só coisa”.36 Isto significa, no coro trágico, o processo de ver-se transformado diante de si como se estivesse entrando em outro corpo ou outra personagem. Nietzsche usa o termo transe para falar de tal fenômeno, ou de epidemia que toma conta da multidão, que se sente enfeitiçada. Talvez se pudesse chamá-lo de catarse37 ou metamorfose: um processo em que o coro ditirâmbico é um coro de transformados. O coro, aqui, assumindo o próprio papel do espectador, do público, da platéia. Porém, observa-se que esta catarse não é uma descarga patológica da moral.

E mais: o autor afirma que “o encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática [...] é a sua metamorfose. [...] Nos termos desse entendimento devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”.38

Dionísio, efetivo herói cênico, não está presente, mas representado. É o princípio mais antigo da tragédia. O coro é a tragédia, não o drama. O coro contempla em sua visão o seu senhor mestre Dionísio – o coro é a mais alta contemplação da natureza e da sabedoria. Quando Dionísio aparece (se objetiva), não é mais o mar perene, ou viver ardente. Agora Dionísio fala como herói épico.39

A arte dionisíaca repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento. São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural, ingênuo, até o esquecimento de si, característico da embriaguez, a pulsão primavera e a bebida

36 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 59-60.

37 Catarse é um termo aristotélico associado ao descarrego e à liberação de tensões sociais.

38 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 60.

39 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

narcótica.40 Esse arrebatamento pode ser compreendido como a catarse, a experiência da embriaguez dionisíaca, a muralha citada por Schiller, ou ainda o aniquilamento da perspectiva do indivíduo: o principium individuationis é rompido. O princípio da individuação é a dimensão apolínea. O escravo e o homem livre deixam de existir frente à experiência do coro báquico.41

Aquele cantar e dançar não é mais a instintiva embriaguez da natureza: a massa do coro em agitação dionisíaca já não é a massa do povo inconscientemente arrebatada pela pulsão primavera. A verdade é, agora, simbolizada, ela se serve da aparência, ela pode e precisa por isso também, usar as artes da aparência.42

Aqui se infere a importância de Apolo nas artes da aparência. Porém, se, em A visão dionisíaca do mundo, o autor se mostra mais schopenhaueriano, ao publicar pela primeira vez O nascimento da tragédia, ele busca um distanciamento e faz uma crítica ao seu mestre. No posfácio mencionado ele assume definitivamente um posicionamento dionisíaco enquanto elemento de afirmação da vida. Coloca em questão o pessimismo de Schopenhauer, bem como a filosofia de sua época.

Por vezes, a vivência da música é tão intensa, que tememos pelo nosso pobre eu, ameaçado de sucumbir no orgiasmo musical, de tão excitado com a música. Por isso, é necessário

40 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 8.

41 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich

Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9.

42 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich

Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.

que entre a música e o ouvinte dionisiacamente receptivo, seja interposto um meio distanciador: um mito de palavra, imagem e ação cênica.43

Essa é a explicação de Rüdiger Safranski, em seu livro Nietzsche, biografia de uma tragédia, no qual afirma a importância das duas dimensões, ligadas à consciência e à inconsciência. Aponta como Nietzsche entende a música, a qual leva ao estado de arrebatamento dionisíaco, com a anulação dos limites e fronteiras comuns da existência. “A música leva ao coração do mundo”.44 Apolo, por sua vez, propicia a consciência do indivíduo.

No jogo ritualístico encontrado na tragédia grega, o espectador do teatro ático, enquanto povo, multidão, muralha, está sentado nas pedras do anfiteatro, disposto para a festa. Ele se dilui junto ao coro e é representado pelo herói trágico, na mais intensa representação. A tragédia grega leva para o palco a relação de poder entre a palavra e a música. O protagonista domina a palavra, mas é a música do coro que domina o que as palavras produzem.

Uma importante ressalva para se compreender este discurso ou esta falsa dualidade é a compreensão da poiesis, que via todas as linguagens artísticas (música, poesia, literatura, dança, representação e artes visuais) como integrantes de uma mesma manifestação da vida.

Sócrates quebra o poder da música e, em seu lugar, coloca a dialética. O logos vence o pathos. E assim, ser e consciência não se harmonizam mais.45

43 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 15.

44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 8, p. 61.

45 SAFRANSKI, Rüdigger. Ecce Homo: Nietzsche, biografia de uma tragédia. Trad.: Lya Left. São Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 54-55.