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A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE

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A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS

PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE

CURITIBA 2006

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A DIMENSÃO DIONISÍACA DO UNO-PRIMORDIAL NOS

PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Filosofia, na linha de pesquisa Ética, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal

CURITIBA 2006

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DEDICATÓRIA

Em especial e sem ressalvas ou palavras prolongadas, as quais jamais reproduziriam o sentimento que esta menção representa, à Angelita Lombarde Divino, minha esposa e à Aline Candido de Paula, minha filha.

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AGRADECIMENTOS

À minha família e aos amigos, que souberam reconhecer em minha ausência um intercurso necessário ao crescimento e aperfeiçoamento que está longe de ser uma conquista pessoal, mas antes coletiva, e que é merecedora de comemoração de uma história de vida.

Ao meu orientador Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal, que desde a graduação exercita a paciência/sabedoria e a dedicação desmedida para que o mínimo êxito pudesse ser alcançado por este procrastinador aluno/discípulo.

Aos colegas do exercício de docência na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, que sempre contribuíram para sanar as necessidades invariavelmente urgentes impostas pela nossa incompletude originária. O companheirismo faz dar um sentido especial a cada conquista pessoal, que é, em última instância, gregária.

Aos amigos que, fora do convívio profissional e oriundos de áreas distintas à filosofia, tiveram pela sua solidariedade uma contribuição indelével na realização deste trabalho.

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iv

Bem-aventurado o povo dos helenos! Quão grande deve ter sido entre vós Dionísio, se o deus de Delos considera necessárias tais magias para curar vossa folia ditirâmbica!

(Nietzsche, na última página de O nascimento da tragédia)

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v

SUMÁRIO

RESUMO... vii

ABSTRACT... viii

INTRODUÇÃO... 1

1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL...

6

1.1 Contextualização filosófica: influências... 6 1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana... 18 1.3 A teoria do Uno-primordial... 32

2 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E O UNO-PRIMORDIAL EM

NIETZSCHE... 46 2.1 A diferença entre a vontade em Schopenhauer e o Uno-primordial

em Nietzsche... 46

2.2 Nietzsche e a superação do pessimismo em Schopenhauer... 54

3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA – UMA MANIFESTAÇÃO DO UNO-PRIMORDIAL... 68 3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica... 69

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vi

4 O MÚLTIPLO E O DEVIR EM HERÁCLITO – A INTUIÇÃO COMO ACESSO

AO UNO-PRIMORDIAL... 88

4.1 Heráclito, o filósofo intuitivo... 88

4.2 O múltiplo e o devir ... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 108

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vii

RESUMO

O presente trabalho é uma investigação sobre a dimensão dionisíaca na tragédia grega, encontrada na produção filosófica do jovem Nietzsche, no período entre 1870 e 1876. Tem como ponto de partida uma reflexão sobre a Teoria do Uno-primordial e sua natureza dionisíaca, apresentada especialmente em O nascimento da tragédia (1872). A arte trágica é apontada pelo filósofo como fundamento de uma experiência autêntica, vivida pelos gregos da Antiguidade, e que configura uma atitude afirmativa da vida, frente à inexorável experiência de dor e contradição originários. A metafísica de artista tem na coexistência das duas pulsões da vida, representadas pelos deuses Apolo e Dionísio, em constante oposição, a dinâmica que corresponde à construção e à destruição, à dor e ao prazer, à consciência e à embriaguez, que caracteriza o Uno-primordial. Ao analisarem-se os pressupostos que sustentam os escritos do primeiro Nietzsche, em relação a este tema, constatou-se a interface necessária entre a temática em torno do nascimento e da morte da tragédia grega, em especial à expulsão da música do palco trágico e a crítica à racionalidade conceitual instaurada por Sócrates. Nietzsche sustenta que a intuição é o instrumento do filósofo para conceber a dimensão estética e primitiva do Uno-primordial, em sua irracionalidade e tragicidade, assumindo a aparência como mais importante que a essência, justificando o mundo como fenômeno estético e apresentando Dionísio, deus da embriaguez, do inconsciente e da desmesura, como força plasmadora do universo. Nesta pesquisa, o diálogo entre Nietzsche e a civilização grega pré-socrática aponta para um filósofo que avalia a cultura e a própria existência a partir da ótica da arte. Percebeu-se seu esforço em justificar a vida a partir da perspectiva estética encontrada na arte trágica e a ênfase dada à dimensão dionisíaca do Uno-primordial.

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ABSTRACT

The present work is an investigation about the Dionysian dimension in Greek tragedy, found in Nietzsche's youth's philosophical production, written between 1870 and 1876. Has as a starting point a reflection on the Ur-Ein Theorie and its Dionysian nature, especially presented in Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus (1872). The tragic art is pointed by the philosopher as the foundation of an authentic experience, lived by the Greeks of the Antiquity, which configures an affirmative attitude of life, in opposite to the inexorable pain experience and original contradiction. The artist's metaphysics has in the coexistence of the two impulses of life, represented by the gods Apollo and Dionysius, in constant opposition, the dynamics that corresponds to construction and destruction, pain and pleasure, conscience and ecstasy, which characterize the Ur-Ein. By analysing the presuppositions which sustain the writings of first Nietzsche concerning this theme, the necessary interface was verified among the thematic around the birth and the death of the Greek tragedy, especially the expulsion of the music of the tragic stage, and the critic to the conceptual rationality established by Socrates. Nietzsche sustains that the intuition is the philosopher's instrument to conceive the aesthetic and primitive dimension of the Ur-Ein, in its irrationality and tragicity, assuming appearance as more important than essence, justifying the world as an aesthetic phenomenon and presenting Dionysius, god of ecstasy, unconscious and excess, as a universe's shaping force. In this research, the dialogue between Nietzsche and the Greek pre-socratic civilization points to a philosopher that evaluates culture and existence from the optics of the art. His effort in justifying life starting from the aesthetic perspective found in the tragic art was noticed, as well as the emphasis given to the Dionysian dimension of the Ur-Ein.

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A problemática concernente aos primeiros escritos de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) ocupa lugar central neste trabalho, tendo como foco especial a obra O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Nesse escrito, são abordados a apresentação da arte trágica como expressão das pulsões artísticas figuradas pelos deuses gregos Apolo e Dionísio; a crítica à racionalidade conceitual, instaurada por Sócrates e Platão; e a proposição de Nietzsche em ler o seu tempo histórico a partir da enaltecida fase da cultura grega. No presente trabalho, serão examinadas as duas primeiras, tendo como foco de pesquisa a recorrente noção do termo Uno-primordial no livro em questão e em algumas outras obras de sua primeira fase.

Dentre os assuntos fundamentais explorados pelo autor no conjunto de sua obra e, mais especificamente, na sua primeira fase, serão estudados, nesta investigação: a conformidade da música e das artes representativas com a vida; a questão do pessimismo e a justificativa da existência; a tragédia grega e a teoria do Uno-primordial em relação à sua filosofia. Todos esses elementos imbuídos da dimensão dionisíaca.

A pergunta à qual esta investigação pretende responder e que constitui o problema da pesquisa é: se Nietzsche enfatiza, em sua metafísica de artista, o equilíbrio e a coexistência das pulsões apolínea e dionisíaca como base para a compreensão da existência, por que acentua o caráter dionisíaco em sua obra?

A hipótese a ser examinada é a de que na relação entre Apolo e Dionísio há uma oposição, mas não excludente e sim complementar. Não obstante, é a

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dimensão dionisíaca que permite a compreensão desta oposição, pelo caráter transformador que implica, e que conduz à intuição de um fundo originário ou a uma essência indizível e racionalmente inacessível, que em Nietzsche aparece como Uno-primordial.

Sobre a teoria do Uno-primordial, o propósito da presente pesquisa não tem como base uma especulação sobre uma provável contradição do autor ao recorrer a uma “noção metafísica” sobre a qual teceu tão violentamente várias críticas ao longo de sua produção filosófica. É, porém, entender o papel desta teoria nos escritos do filósofo, uma vez que aparece apenas no início da sua produção. Outrossim, constatou-se ao longo desta pesquisa, que Nietzsche relaciona o nascimento da tragédia com a música, a partir da metafísica de artista. Ou, em outras palavras, a tese do Uno-primordial é apresentada como fundamento de uma reflexão sobre a cultura a partir da arte.

O filósofo constrói uma cosmovisão na qual o conceito Uno-primordial tem recorrência, configurando uma teoria. Esta abrange o entrelaçamento de diversos temas, entre eles a oposição entre os princípios apolíneo e dionisíaco, a intuição como instrumento de investigação da filosofia, a crítica à racionalidade e a primazia da arte sobre a ciência, a idéia de permanente transformação ou devir e a dimensão dionisíaca como cerne dessa transformação.

Nesse contexto, o próprio Nietzsche afirma, na Seção 21 da sua obra O nascimento da tragédia, a música dionisíaca como uma das manifestações artísticas de mais alta expressão da vida e em consonância com essa dimensão primordial. Não se pode ignorar o fato de que a música, a palavra e a representação formavam um todo expressivo indivisível na cultura grega. Ao contrário, para Nietzsche e para o seu contexto histórico-cultural, e em especial nos países germânicos, a música,

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em si, era tida como a mais nobre manifestação artística. Deve-se considerar, por fim, a importância que a música tinha no pensamento do filósofo.

A teoria do Uno-primordial, em Nietzsche, está intimamente ligada à tragédia grega e ao papel do coro no palco da representação, à intuição como instrumento de investigação intelectual sobre a realidade, à natureza, tida como “mãe do ser” e à metafísica de artista, vista como a dimensão dionisíaca reabilitada. O fio condutor desta pesquisa é a reflexão sobre a tensão e o equilíbrio entre Apolo e Dionísio, como apontado pelo filósofo, e o possível desequilíbrio entre esses deuses, visto que, com a socratização, a música dionisíaca foi expulsa do palco da tragédia.

Ao termo Uno-primordial, o filósofo confere uma noção de ordem ontológica, essencial repleta de dor e contradição, concomitantemente a um supremo prazer e inconsciência. Ou seja, um plano originário, que tem suas manifestações no mundo das aparências e, nele, cumpre o papel de redenção e cura para o sofrimento. Nesse contexto, a música é uma manifestação deste plano originário no mundo fenomênico, traduzindo-o e corporificando-o. Essa concepção só pode ser percebida de forma intuitiva e não lógica ou racional.

O primeiro capítulo da presente pesquisa tem como função situar Nietzsche nas suas influências filosóficas fundamentais, bem como os principais autores presentes em suas reflexões: Arthur Schopenhauer, os poetas e pensadores gregos trágicos, como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, Anaximandro, Heráclito e Sócrates, no campo da filosofia, e Richard Wagner e a tragédia ática, no campo da música. Não tem como alvo a discussão sobre a originalidade ou não de determinados preceitos ou mesmo a linguagem nietzschiana. Serão abordados o legado do pessimismo schopenhaueriano e o romantismo da época, bem como a crítica de Nietzsche à sua primeira obra, O nascimento da tragédia, publicada em 1872. Essa crítica foi

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publicada somente em 1886, no prefácio que escreveu para a segunda edição do livro, prefácio este intitulado Tentativa de auto-crítica. O próprio autor, por tê-lo escrito bem mais tarde e à luz de um amadurecimento filosófico, não o chama de prefácio, mas de posfácio, referindo-se ao seu primeiro livro de forma um tanto severa, porém, reeditando-o, o que demonstra que, apesar da sua crítica e auto-crítica, reiterava o seu conteúdo.

O segundo capítulo desta investigação trata de esclarecer as diferenças entre o conceito de vontade em Schopenhauer e a noção do Uno-primordial em Nietzsche. Isso, tendo em vista que tal distinção faz-se necessária para compreender o tema proposto, para entender o conceito de metafísica de artista e, assim, aproximar-se da arte como ela é vista por Nietzsche: oposta à ciência e à moral.

O terceiro capítulo tem a dimensão musical como preocupação central, partindo da metafísica de artista e de sua relação com as dimensões apolíneo-dionisíacas na tragédia grega e, em especial, no papel do coro no palco trágico. Ou seja, como Nietzsche entende e elege a arte como critério de avaliação da vida. A morte da tragédia grega configurou-se como que fundamental na pesquisa para compreender o que se perdeu, quando, a partir de Eurípides e Sócrates, a tradição filosófica se nega a conceber a dimensão dionisíaca e a escolha da racionalidade passa a ter ordem no cenário do pensamento ocidental.

O quarto capítulo apresentaa herança do homem intuitivo, de Heráclito, e sua noção do devir e do múltiplo, enquanto integrados ao conceito do Uno-primordial e sua natureza inconsciente, dinâmica e transformadora. Nietzsche, ao resgatar a intuição como instrumento de investigação filosófica, aponta o caminho para a percepção do Uno-primordial. Ao não recorrer à razão e à ciência, características da socratização, conduz para a inocência da criança no jogo da construção e da

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destruição da existência, sem recair na culpa protagonizada pela cultura do mundo ocidental.

Por fim, nas Considerações Finais, buscou-se estabelecer relações entre os objetivos propostos e os resultados obtidos no decorrer da pesquisa, em que se recorreu, excepcionalmente, a um livro escrito em 1888, Ecce Homo: como se torna o que é. Nesta obra, a autobiografia filosófica de Nietzsche, à luz de uma distância ímpar de seu primeiro livro, mais uma vez o autor se auto-avalia e distingue os elementos que caracterizam uma originalidade em sua produção filosófica.

De maneira geral, pôde-se observar a ambigüidade e a coexistência das dimensões apolínea e dionisíaca, sempre em constante oposição e reconciliação, caracterizando ao mesmo tempo a tragédia grega, a metafísica de artista, a música dionisíaca e a intuição heraclitiana como acesso ao Uno-primordial.

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1 OS PRIMEIROS ESCRITOS DE NIETZSCHE E A TEORIA DO UNO-PRIMORDIAL

São abordados neste capítulo, inicialmente, alguns aspectos pertinentes às influências que o autor recebeu de sua época, com as suas características ligadas ao pessimismo filosófico schopenhaueriano e ao romantismo wagneriano, bem como a sua contribuição mediante a produção intelectual filosófica, em especial de sua primeira fase.

Em seguida, são apresentadas a tragédia grega e sua relevância naquilo que Nietzsche denomina filosofia trágica. Suas características ligadas à ambigüidade e à contradição retratam a própria natureza humana e são apresentadas pelo filósofo na personificação dos deuses Apolo e Dionísio.

Ao finalizar o primeiro capítulo, é realizada uma exposição sobre a teoria do Uno-primordial no primeiro Nietzsche, relacionada à dor originária, que tem na projeção da aparência a sua manifestação como processo artístico. Daí a natureza da tragédia grega, intimamente ligada à tragicidade da existência.

1.1 Contextualização filosófica: influências

Certamente, existem outros meios de se encontrar a si mesmo, de escapar do aturdimento no qual nos colocamos habitualmente, como envoltos numa nuvem sombria, mas não conheço coisa melhor do que lembrar dos nossos mestres educadores.

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É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schopenhauer. (Nietzsche)1

Apesar de proximidades e semelhanças temáticas no decorrer de toda a sua trajetória filosófica, Nietzsche se submete a autocríticas e re-interpretações de suas próprias obras. As mudanças decorrentes dessas avaliações do seu próprio pensamento permitem aos seus estudiosos identificar fases ou períodos distintos. Porém, a idéia de periodização dos seus escritos, enquanto compartimentos, não é aceita por todos os seus leitores,2 pois o próprio filósofo não compreendia seus

trabalhos de forma fragmentada e, em especial, não os tomava como frutos de etapas evolutivas.3

A discussão sobre como ler Nietzsche, apresentada por Scarlett Marton no livro: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, elucida a polêmica sobre a periodização dos escritos filosóficos do filósofo. Nele, a autora apresenta as posições de Klossowski, Deleuze, Lyotard, Löwith, Andler, Jaspers, Kaufmann, Hartmann, Granier, Fink, Strong e Heidegger, entre outros.

No estudo de Marton, que traz uma demarcação dos comentaristas acerca da obra nietzschiana, destaca-se Karl Löwith, que sugere uma leitura pontual sobre Nietzsche e alerta para o fato de que o mesmo reexaminou seus próprios escritos nos prefácios de seus livros publicados e em sua autobiografia Ecce homo, fazendo, assim, um balanço de seu próprio pensamento. Este estudioso de Nietzsche

1 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 142.

2 O texto aqui apresentado com a exposição sobre a periodização e as primeiras influências sofridas pelo autor tem como objetivo discernir didaticamente o campo de pesquisa, pois os conceitos habituais nos estudos de Nietzsche, quando abrangem o todo de sua obra, não estão presentes na primeira fase. Nem tampouco há concordância quanto às datas de periodização.

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descarta as posições de ir além do texto, buscando a sua “força exterior”, como sugere Deleuze; ou mesmo a partir dos textos do filósofo, produzir “novas e diferentes intensidades” como interpretação, na compreensão de Lyotard. Ainda defende Löwith a importância de se perceber a produção aforismática de Nietzsche como um sistema.

Destaca-se também, da revisão de Marton, a posição de Charles Andler, que considera Nietzsche como um pensador assistemático e mesmo anti-sistemático. Não obstante, Andler assume que a obra de Nietzsche abriga pelo menos dois sistemas, estes originários de duas “intuições”: o do pessimismo estético, entre 1869 e 1881 e o do transformismo intelectualista, que compreende o período entre 1881 e 1888. Para Andler os dois períodos são parcialmente incoerentes entre si, mas têm uma unidade em si mesmos.

Jaspers, Kaufmann e Granier apontam contradições nos textos de Nietzsche, enfocando ora a forma da escrita, ora o tema. Além destes elementos, consideram os fragmentos póstumos como importantes contribuições que devem ser consideradas e hierarquizadas para se pensar os processos do pensamento de Nietzsche e sua lógica interna.

O perspectivismo e o experimentalismo adotados na produção filosófica nietzschiana contribuem com a noção de Nicolai Hartmann de que “Nietzsche não é um pensador-de-sistemas, mas um pensador-de-problemas”.4

Para o interesse de distinguir fases relacionadas à produção filosófica de Nietzsche nesta pesquisa, interessa a periodização que também é reconhecida por Charles Andler, bem como a nomenclatura adotada por ele para três períodos distintos: o do pessimismo romântico, o do positivismo cético e o da reconstrução da

4 HARTMANN, Nicolai apud MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em

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obra, lembrando que Andler admite pelo menos mais duas periodizações válidas. As datas sugeridas por ele não são coincidentes com as que aqui serão adotadas.

Marton aproxima esta distinção dos três períodos, daquela leitura que o próprio Nietzsche fez de sua vida, na carta de 11 de fevereiro de 1883 a Overbeck, em que discorre sobre sua oscilação entre inquietação e recolhimento e sobre seu avanço a cada seis anos. O próprio Nietzsche afirmou: “toda a minha vida decompôs-se diante de meus olhos: esta vida inteira de inquietação e recolhimento, que a cada seis anos dá um passo e nada quer além disso.5 Assim, Marton e Paschoal, sem fazer uma interpretação estanque de unidades pretensamente fechadas ou rígidas, apresentam didaticamente a periodização apresentada a seguir.

O primeiro período compreende os anos de 1870 a 1876 e dele são os escritos que constituirão as fontes de pesquisa no presente trabalho; o segundo refere-se à produção entre os anos 1876 e 1882; a última fase de sua obra foi escrita entre 1882 e 1888. Em janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso em Turim, que o privaria da razão até a sua morte em 1900. Usualmente, estes períodos são denominados de Pessimismo Romântico, Positivismo Cético e Reconstrução da Obra, respectivamente.6

Contribuindo com a polêmica acerca deste assunto, Jean Lefranc também recorre a Andler para sustentar a presente periodização.

Bem cedo foram distinguidos três períodos da filosofia de Nietzsche, ou até três “filosofias”, às quais foram atribuídos títulos diversos. Esta divisão, na opinião de muitos comentaristas,

5 NIETZSCHE apud MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 35. Carta de Nietzsche a Overbeck, em 11 de fevereiro de 1883. Uma das referências dadas pelo próprio Nietzsche para demarcar as fases de sua produção filosófica. 6 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 29.

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é tão evidente que eles nem se dão o trabalho de justificá-la, como se a filosofia devesse ceder à evidência da cronologia. Em sua importante obra (1920), Charles Andler dá como títulos a essas três filosofias: “o pessimismo estético” (O nascimento da tragédia, as Considerações intempestivas); “o transformismo intelectualista” (Humano, demasiado humano, Aurora, Gaia ciência) e enfim “a última filosofia” (a partir de Assim falava Zaratustra). Este último título mostra perfeitamente que a divisão em períodos encontra seu sentido num acabamento em que o pensamento de Nietzsche seria enfim ele mesmo, o que de fato supõe Andler [...]. Três fases do nietzschismo, eis o que é sedutor e seríamos tentados a dialetizar (como o fizeram alguns). Mas o próprio Charles Andler admite que poderiam ser duas (antes e depois de Zaratustra) ou até quatro.7

Desta forma, aceita-se tal divisão, por tratar-se de uma análise que permite localizar o aparecimento de conceitos fundamentais e observar o amadurecimento de determinados temas ao longo de sua trajetória filosófica.

A primeira fase dos escritos nietzschianos, isto é, o chamado período do Pessimismo Romântico, com obras escritas entre 1870 e 1876 e sobre o qual repousa esta pesquisa, compreende os seguintes textos: A visão dionisíaca do mundo, O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, de 1870; O nascimento da tragédia, de 1871 [livro que teve sua conclusão em 1871 e foi publicado no ano seguinte]; Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, e Cinco prefácios para cinco livros não escritos, de 1872; A filosofia na época trágica dos gregos, Sobre a verdade e mentira no sentido extra moral e Primeira consideração extemporânea: David Strauss, o devoto e o escritor, de 1873; Segunda consideração extemporânea: da utilidade e desvantagem da história para a vida e Terceira

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consideração extemporânea: Schopenhauer como educador, de 1874; Quarta consideração extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth, de 1876;8 além de fragmentos póstumos.9

Entre as características do primeiro Nietzsche, a preocupação em relação à renovação da cultura alemã, segundo Paschoal, “não é suficiente para diferenciá-lo dos demais, pois essa preocupação aparece também em seus escritos até 1888”.10 O que marca mais decisivamente esses primeiros escritos é que esta renovação, segundo Nietzsche, está ligada à filosofia de Schopenhauer e à música de Wagner.

Em O nascimento da tragédia, primeiro livro do autor, estas influências estão evidentes e claramente assumidas, assim como os primeiros passos para uma ruptura com seus mestres. Esta obra foi criticada e incompreendida principalmente pelos filólogos da sua época, que acompanhavam a trajetória acadêmica do jovem e promissor catedrático de filologia.

Vale observar três idéias centrais que norteiam O nascimento da tragédia, no que se refere aos seus objetivos. Segundo Roberto Machado, no livro Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia, a primeira idéia é uma abordagem sobre a origem, a composição e a própria finalidade da arte trágica grega. É a expressão das pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, apresentadas como alternativa à racionalidade conceitual instaurada a partir de Sócrates (470-399 a.C.) e Platão (427-347 a.C.) ou a partir das categorias metafísicas de essência e aparência na dualidade schopenhaueriana de vontade e representação.

A segunda idéia fundamental de O nascimento da tragédia é a denúncia à estética racionalista que passou a vigorar com a morte da arte trágica e cujo mentor

8 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 34, 35 e 36.

9 Os fragmentos póstumos aqui referenciados encontram-se no seguinte livro de Nietzsche:

Sabedoria para depois de amanhã. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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foi Eurípides, o poeta que subordinou a beleza à razão e, com isso, promoveu a expulsão da música do palco trágico. Passagem esta chamada por Nietzsche de socratismo de Eurípides ou socratismo estético, pois o poeta foi apenas uma máscara, no sentido de que quem falava por ele não era Dionísio nem Apolo, mais antes Sócrates, subordinando assim o poeta ao homem teórico e a beleza à razão.

A terceira idéia ou objetivo do livro é que a análise do nascimento e da morte da tragédia foi realizada com o propósito também de diagnosticar a época em que o autor vivia, isto é, de encontrar na concepção trágica do mundo algumas manifestações culturais da modernidade.11

A antinomia apresentada por Nietzsche entre a arte trágica e a metafísica racional abordadas em seu primeiro livro enaltece a dimensão dionisíaca na tragédia grega, dando acesso às questões fundamentais da existência e servindo, mesmo, como antídoto à racionalidade. Em outra obra de Roberto Machado, Zaratustra, tragédia nietzschiana, este autor explica que “enquanto a metafísica é incapaz de expressar o mundo, em sua tragicidade, pela prevalência que concede à verdade em detrimento da ilusão, ou pela oposição que estabelece entre a essência e a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma aparência”.12

Nietzsche opõe sua perspectiva sobre a arte trágica grega à cultura de seu tempo e em especial à cultura alemã, criticada como sendo o triunfo histórico da razão, desprovida de compromisso com a vida. Segundo Paschoal,

trata-se, portanto, de procurar na história uma unidade que possibilite pensar, com todas as suas conseqüências, a

11 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7-13.

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solução para a oposição entre o ‘saber artístico’ e a ‘onipotência da razão’. A concepção de Nietzsche de história, nesse período, tem a ver com sua compreensão da tragédia ática, como a síntese entre Apolo e Dionísio, que pode revelar o quanto é trágica a existência humana, mas que nunca dirá não à vida.13

O tema dionisíaco e a sua relação com o apolíneo foram abordados por Nietzsche especialmente em sua primeira obra de 1871. Porém, Rosa Maria Dias alerta que, embora ainda não existisse a antítese entre Apolo e Dionísio, quanto aos dois impulsos artísticos da natureza, ela estava presente nas suas primeiras conferências de 1870, nos textos preparatórios para O nascimento da tragédia. Segundo a autora,“Nietzsche não faz nenhuma referência ao Deus Apolo e o nome de Dioniso14 quase não é mencionado, mas o fenômeno do dionisíaco está presente, [...] relacionado a um fenômeno da natureza, ao impulso primaveril, que se manifesta de súbito e intensifica as forças vitais”.15

De fato, em A visão dionisíaca do mundo, O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, textos de 1870, mencionados por Rosa Maria Dias, Nietzsche apresenta as suas concepções sobre o teatro grego, as quais foram expostas mais detalhadamente nas seções 7, 8 e 9 de O nascimento da tragédia. A forças orgiásticas, os cortejos dionisíacos, o coro trágico e o seu envolvimento com o público na tragédia grega foram apresentados por Nietzsche nestes textos preparatórios. Observa-se, nas palavras do próprio filósofo, o seu enfoque sobre o povo grego trágico: “na consciência do despertar da embriaguez, ele [o grego] vê por toda a parte o horrível ou absurdo do ser humano: esse o repugna. Afora ele

13 PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2003. p. 31. 14 Alguns autores adotam a escrita de Dioniso, ao invés de Dionísio.

15 DIAS, Rosa Maria. Um Dionísio bárbaro e um Dionísio civilizado no pensamento do jovem

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entende a sabedoria do deus silvestre”.16 Essas forças vitais mencionadas, a embriaguez e o impulso primaveril serão chamados posteriormente de Uno-primordial em O nascimento da tragédia. Este livro trouxe ao debate a relação entre a ciência, a arte e a filosofia.

Nietzsche, em seu primeiro livro, foi além de um simples exercício estético, elaborando, antes, uma concepção ontológica da arte ou, em outras palavras, uma metafísica de artista. “A arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência, não nas aparências, mas por traz delas”.17 Para Nietzsche, a história da arte trágica dos helenos brotou do espírito da música e não da palavra falada.

A originalidade de Nietzsche em O nascimento da tragédia foi, inspirada na idéia wagneriana de drama musical, valorizar a música para pensar a tragédia grega como sendo uma arte fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito da música, concebida como única força capaz de expressar o dionisíaco. Mas também articular a filosofia de Schopenhauer [...] para pensar a cultura alemã através do espírito trágico, idéia que não existe em Schopenhauer.18

A reflexão sobre o valor da Grécia arcaica para a Alemanha, que perpassa um dos temas de O nascimento da tragédia, insere seu primeiro livro na discussão de um projeto de política cultural alemã, da época do filósofo.

O fato é que Nietzsche escreveu seus livros e propôs uma filosofia dionisíaca durante a época da Alemanha de Bismarck, o chanceler que chegou ao poder

16 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich

Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; Rev. da Trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. § 3, p. 25.

17 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 17, p. 102.

18 MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 34.

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anunciando a imposição de uma política de ferro e sangue.19 A formação de Nietzsche em meio a professores clássico-liberais, a herança da educação religiosa familiar e o nacionalismo prussiano da metade do século favoreciam uma diversidade de fatores que amadureceram o jovem filósofo, promovendo re-interpretações acerca da vida, da política, da ciência, da filosofia e da arte.

Sua principal preocupação, em 1870, foi usar o novo clima político como ocasião para exigir um renascimento da cultura trágica e do pessimismo, inspirados pela música de Wagner e por Schopenhauer, os quais Nietzsche acreditava serem capazes de dar uma nova profundidade aos ideais clássicos da educação, da política e da cultura alemãs.20

Em seus primeiros escritos sobre a educação, como na III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador (1874), o filósofo já apontava criticamente a inconformidade da própria universidade para desempenhar a base para uma cultura superior. Condenava a pobreza pedagógica e os educadores, que, para ele, não estavam comprometidos com a autêntica emancipação da vida. Da mesma maneira, condenava os governantes, sobre os quais afirmava: “qual não seria a aversão das gerações futuras, quando tiverem de se ocupar com a herança deste período, em que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os intérpretes da opinião”.21

O jovem Nietzsche da década de 1870 mostrou-se diferente do filósofo das décadas seguintes quanto à sua participação e envolvimento nas questões políticas. Mostrou-se um crítico sagaz da política moderna alemã.

19 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 37-38.

20 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 39.

21 NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Trad., apres. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2003. p. 139.

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O objetivo da ciência é aniquilar o mundo. Todavia, seu efeito imediato acaba sendo o mesmo de pequenas doses de ópio: o aumento da afirmação do mundo. Sendo assim, em política nos encontramos atualmente nesse estágio. Há de se provar que, na Grécia, esse processo já se realizou em pequena escala, embora essa ciência grega seja pouco significativa. A arte tem a tarefa de aniquilar o Estado. Isso também aconteceu na Grécia. Depois, a ciência também dissolve a arte. (Logo aparece uma época em que o Estado e a ciência caminham juntos, a idade dos sofistas – nossa época). As guerras não devem ocorrer, para que finalmente o sentimento de Estado sempre avivado adormeça.22

Observa-se nesta passagem dos fragmentos póstumos que, desde muito cedo, 1869-1870, os elementos inovadores da sua filosofia já se mostravam contundentes, tendo a Grécia antiga e a filosofia trágica como modelos para contrapor e avaliar a cultura de sua época. Sua postura diante da cultura e da religião, bem como a sua opção pela dimensão dionisíaca e embriagante (menção ao ópio), orientada pela sua reflexão sobre a Grécia antiga, também se mostram claras no próximo fragmento de 1871, em que afirma: “como artistas, devemos estar acima da religião e manejar seus mitos tão livremente como o fazia o trágico ateniense em suas produções, sem nenhuma participação patológica”.23

Nietzsche preocupa-se com o problema da finalidade, ou sentido da existência. E, como resposta à civilização moderna européia, propõe “cultivar a única atitude que ele acredita ser capaz de redimir o mundo na ausência de um

22 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por

Heinz Friedrich. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Inverno de 1869-70 e primavera de 1870, 3 [11]. p. 5.

23 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por

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ponto central ou um Deus, e restabelecer a inocência no fluxo da vida: ‘um trágico pessimismo da força’. O que é trágico é o fato de que a vida tem de ser vista como desprovida de propósitos finais ou objetivos morais”.24

Daí o papel importante também da sua II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida (1873-1874), como estudo crítico da cultura do século XIX e, antes de tudo, uma crítica ao historicismo, em especial, ao historicismo que recaía em uma teleologia idealista. Aos seus propagadores hegelianos, Nietzsche conjectura sobre os riscos e males desta história monumental utilizada por malfeitores egoístas, causando estragos e destruindo ao que a Antigüidade produziu.

Tomemos o exemplo mais simples e mais freqüente. Imaginemos as personalidades totalmente ou parcialmente indefesas à arte, armadas e paramentadas pela história monumental dos grandes criadores: contra quem voltariam elas as suas armas? Contra os seus inimigos hereditários, contra as fortes naturezas artísticas, quer dizer, contra os únicos que sabem tirar desta história um verdadeiro ensinamento, um ensinamento orientado para a vida, para em seguida transformá-lo numa prática superior.25

Pode-se observar, diante dos fragmentos póstumos e dos textos anteriores a O nascimento da tragédia, que Nietzsche iniciava um embate com o seu contexto histórico e filosófico. Ao apresentar Dionísio, e em especial a arte dionisíaca, como expressão da vida, opunha-se veementemente ao otimismo vigente no século XIX,

24 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 57.

25 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. In: Escritos sobre História. Apres., trad. e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. São Paulo: Loyola, 2005.

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marcado pela crença na ciência e pela influência do positivismo, embora também tenha sido influenciado por este. Notam-se nas obras da sua primeira fase o ímpeto e a força de um jovem filósofo que desde cedo se mostra além do seu tempo, intempestivo. Assume um pessimismo ativo, ou pessimismo da fortitude, como escreve na Tentativa de autocrítica, diante da sua visão sobre a tragédia grega, entendendo com ela a implacável necessidade de assumir a vida em sua transbordante saúde e superabundância, plenitude.26

A seguir, será examinada a filosofia que Nietzsche desenvolve a partir de uma perspectiva particular sobre a tragédia grega.

1.2 A tragédia grega e a filosofia nietzschiana

Encontrou-se [na tragédia grega] o sentido profundo e ingênuo, divino e infantil ao mesmo tempo dos velhos mitos surgidos da imaginação primitiva. (Paul de Saint-Victor)27 A arte trágica, surgida em inícios do século VI a.C., é uma representação que vai além de uma história fictícia. Constitui, antes, a própria experiência humana em sua ambivalência e contradição. A tragédia, sob a ótica nietzschiana, não pretende promover ensinamentos morais ao final, nem se destina à mera diversão. Ela tem um papel, tem uma função, mas não é moralizadora. O público era acometido por um clima de tensão e dúvida, no qual a realidade do homem era problematizada,

26 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e

posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 1, p. 14.

27 SAINT-VICTOR, Paul de. As duas máscaras – a cultura da Grécia em seu teatro. Trad.: Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Germape, 2003. p. 9-10.

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mas jamais resolvida. Convivem na tragédia o aspecto enigmático e as suas duas faces: a da reflexão, ligada ao pensar consigo mesmo, e a outra, ligada ao desconhecido e ao imprevisível.

A base da teoria nietzschiana sobre a filosofia trágica está na interpretação da tragédia ática, um espetáculo dramático, musical e religioso que, para Nietzsche, representa um dos períodos mais relevantes de um povo na história. Nela o “gênio” grego conseguiu promover a coexistência das pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, que estão em permanente inter-relação no interior da vida do povo grego. Uma concepção única que ousou conciliar dor e prazer, criação e destruição, consciência e inconsciência, em uma afirmação extasiada da vida como totalidade. Superabundância de poder e medida convergindo em uma elevada afirmação da vida, partindo exatamente da dualidade entre Apolo e Dionísio.

A perspectiva de Nietzsche sobre a Grécia antiga e sobre o cenário trágico28 é oriunda da sua leitura sobre do gênio helênico, que deu um salto decisivo frente ao pressentimento de que o devir e a dor são o sentido último de todas as coisas e, ao invés de condenar a vida perante a intuição do uno-originário, soube afirmá-la em sua natureza mais trágica. Para ele, a alegria é a essência da tragédia, agindo como prodigioso antídoto frente à angústia, à dor e ao sofrimento do mundo ou da vida. “Assim, a tragédia, com seu consolo metafísico, aponta para a vida perene, daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências. Do mesmo modo, o simbolismo do coro satírico já exprime em um símile a relação primordial entre coisa e fenômeno”.29 Sua crítica a esta forma de entender a existência como

28 É importante salientar que a abordagem de Nietzsche sobre a tragédia grega é resultado de uma reflexão ou de uma ótica muito particular do filósofo, não se encontrando concordância geral, uma vez analisada a revisão bibliográfica e mesmo filosófica sobre o assunto, como será apresentado nos conceitos de Goethe e de Aristóteles sobre a tragédia grega.

29 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 8, p. 57-58.

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martírio inexorável é a contribuição nietzschiana para transvalorar os valores que permearam a formação do pensamento ocidental, desde a filosofia de Platão, passando pelo cristianismo, até chegar ao seu mestre, Schopenhauer.

Nietzsche proclama a alegria trágica de viver a partir da sabedoria dionisíaca como afirmação da vida e contra o otimismo racional. ”Invertendo o platonismo, Nietzsche transmuta o trágico em verdade e divindade. Afirma o todo, aliás, aquilo que caracteriza um todo não-totalizável. Nietzsche abençoa a ‘vida trágica’, seja ela decepcionante ou não, tentando amá-la como tal e não fugir dela”.30 Para ele, a verdadeira tragédia funciona como um consolo metafísico, fazendo entender que a vida, “no fundo das coisas”, e apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.31

O trágico para Nietzsche não existe enquanto dicotomia indissolúvel, como no conceito de Goethe,32 nem é a perspectiva de renúncia da vida, ou pessimismo diante da supressão do homem perante o destino, da culpa ou da vontade cega. Daí pode-se destacar o papel do herói trágico, quase sempre perecendo no espetáculo trágico em um percurso curto de tempo, mas com toda a intensidade. “O universo trágico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central é a ambigüidade. Isso porque a tragédia é o resultado de um mundo que se apresenta como o choque entre forças opostas: o mítico e o racional. Deste modo, a função primordial da tragédia é a palavra poética que responde à situação do século V a.C.”.33 Assim, no

presente trabalho, entende-se tal ambigüidade em Nietzsche como a coexistência

30 GILES, Thomas Ransom. Nietzsche: no limiar do século XXI. São Paulo: EPU, 2003. p. 148.

31 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 7, p. 55.

32 Conceito de Goethe sobre a essência do trágico em 6 de junho de 1824: “Todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação desaparece o trágico”. (GOETHE apud LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 31) 33 COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988. p. 8.

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das duas pulsões artísticas: a apolínea e a dionisíaca. Esse enfoque é importante para perceber a perspectiva nietzschiana sobre a tragédia grega.

Em A tragédia grega, de Albin Lesky, encontra-se uma exposição sobre os conceitos e a origem da tragédia. Lesky faz alusão a épocas, a culturas e a autores diferentes, porém, sucintamente, é possível apontar a ênfase que dá a Aristóteles para conceituar a tragédia. Descreve-a como a catástrofe do destino de um herói, atentando para a dignidade da queda ou entendendo o elemento trágico como uma contradição inconciliável. Em Nietzsche, esta visão de “queda” do herói não existe, nem a contradição é inconciliável. Antes, tem-se pelo herói trágico a experiência profunda da intuição de uma dimensão inconsciente que o faz um gênio transfigurador.34 Apolo e Dionísio, em Nietzsche, são pulsões da vida necessárias e co-existentes, embora haja entre elas a tensão constante e transformadora, que ao mesmo tempo gera e destrói. Em suma, o fundo originário ou o Uno-primordial apresenta-se como um problema de ordem estética e metafísica. E, neste mesmo conceito, de forma paradoxal, a metafísica de artista mostra a oposição e a reconciliação na relação de forças entre as duas pulsões artísticas.

A Seção 24 de O nascimento da tragédia traz uma reflexão sobre o papel do herói trágico glorificado como “lutador” e representado repetidamente na idade mais viçosa e juvenil de um povo, como um prazer superior sob a imagem do herói sofredor.35

De acordo com as concepções gregas, os termos trágicos derivam dos mitos, mas também é possível encontrar neles a dimensão de delimitação de ordem social. Na sua encenação, isto é, na manifestação desta dramaticidade, que corresponde ao âmago da alma da Grécia antiga, observam-se o uso da máscara enquanto

34 Sobre o herói trágico e o papel da intuição em Heráclito, ver página 86 e ss. da presente pesquisa. 35 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140.

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metamorfose, que é a essência da representação teatral, bem como o coro que muitas vezes personifica a multidão e o herói trágicos;36 e, como se examinará no Capítulo 3, também personifica o deus Dionísio. Lesky faz uma referência a esse conceito aristotélico mencionando Nietzsche:

Aristóteles reconheceu claramente quando, na Poética (Cap. 6), caracterizou a tragédia não como imitação de pessoas, mas de ações e da vida. Com isto, compreendeu a tragédia clássica de seu povo melhor que seus intérpretes modernos, [... contra os quais] Nietzsche tantas vezes nos acautela.37

De fato, ao observarem-se as palavras do próprio Aristóteles a esse respeito, em Poética, na comparação entre a tragédia e a comédia, o filósofo aponta que a primeira é a representação de uma ação elevada, com linguagem adornada, com atores que encenam e não narram, fazem uso do canto e das falas, despertam a piedade e o temor, resultado de uma catarse38 de emoções.

O mais importante é a maneira como se dispõem as ações, uma vez que a tragédia não é imitação de pessoas e sim de ações, da vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Os homens possuem diferentes qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou infelizes de acordo com as ações que praticam. Assim, segue-se que as personagens, na tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar as ações.39

36 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 27-32. 37 LESKY, Albin. A tragédia grega. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 33. 38 Catarse é um termo aristotélico, não nietzschiano.

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Nesse aspecto, não se percebe distinção entre Aristóteles e Nietzsche, porém, este supõe que a arte não seja apenas imitação da realidade natural, mas um suplemento metafísico desta realidade que, colocada junto dela, pode superá-la.40

No fragmento apresentado a seguir, escrito por Nietzsche em 1871 e publicado postumamente no livro Sabedoria para depois de amanhã, o filósofo ilustra como em um ensaio, o que vai desenvolver mais extensamente em O nascimento da tragédia. Observa-se que o indivíduo, neste aforismo, ocupa o lugar do herói trágico.

Aquilo que chamamos de “trágico” é justamente essa elucidação apolínea do dionisíaco: quando separamos e dispomos numa série de imagens essas sensações tecidas entre si, que a embriaguez de Dioniso produz em conjunto, essa série de imagens expressa o “trágico” [...]. A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é derrotado e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo.41

40 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 24, p. 140. A imitação é um ponto em comum entre Aristóteles e Nietzsche, mencionado aqui apenas como referência para compreensão do conceito da tragédia.

41 NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos Fragmentos Póstumos por

Heinz Friedrich. Trad.: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Final de 1870 - abril de 1871. 7 [128]. p. 12.

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Como foi apresentado no início deste fragmento, sobre o papel do herói trágico Nietzsche aponta para a necessidade ou para a coexistência das duas pulsões ou fenômenos da natureza, representados pelos deuses Dionísio e Apolo, o último elucidando o deus da embriaguez. O filósofo expõe, ainda, uma noção de movimento ao abordar a dignidade tanto do nascer como do perecer. A relação conflitante, desta forma, não está entre as polaridades divinas que compõem a tragédia grega. A oposição criticada por Nietzsche está entre o instinto e a natureza lógica, levada a cabo por Sócrates. Nietzsche aborda este tema em especial na Seção 13 de O nascimento da tragédia, mostrando que o Daimon de Sócrates, a voz divina, sempre esteve presente em situações especiais, atuando quando sua descomunal inteligência vacilava, apesar de sua excessiva e super-valorização da natureza lógica.42 Daí Sócrates assumir a sua condenação à morte, de acordo com Nietzsche, de forma caricata. A oposição desta forma é entre Sócrates e a interação das pulsões artísticas (Apólo-Dionísio) na tragédia grega.

A função de Dionísio, ou do instinto, em Nietzsche, não obstante, é sempre referenciada com ênfase, justamente porque o filósofo observa na história da filosofia e na própria derrocada da tragédia, a negação da embriaguez do deus do êxtase e da inconsciência, em nome daquilo que é equilíbrio, medida, sobriedade ou racionalidade dialética. Elementos estes, referentes e responsáveis pela morte da tragédia na Grécia antiga.

Aqui interessa, portanto, sintonizar o argumento com a peculiaridade da leitura nietzschiana sobre a tragédia e a sua distância do conceito clássico e literário da tragédia ática, mencionado em Lesky.

42 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85-86.

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Para Platão, a virtude é sinônimo do saber racional. Felicidade e justiça derivam dessa capacidade filosófica de superar ou ultrapassar a pseudo-realidade das aparências, pois são reflexos do mundo empírico, ou a esfera inferior ao mundo das Idéias.

A busca para ir além das aparências, em Platão, é a tentativa de compreender o Bem em si por meio da razão. A principal objeção que Platão tinha a fazer contra a arte mais antiga era a de ser imitação43 de uma imagem da aparência, de permanecer, portanto, em uma esfera ainda mais baixa que a do mundo empírico.44

Para Nietzsche, no entanto, Platão simboliza junto a seu mestre o papel dos “homens teóricos”, socráticos, satisfeitos em tornar a existência compreensível e justificada, em verdade, curada. “A partir desse único ponto, julgou Sócrates que devia corrigir a existência”.45 O otimismo socrático manifesta-se abominando a arte trágico-dionisíaca e iniciando uma luta particular contra a tragédia do poeta Ésquilo.

A arte e a dimensão dionisíaca encontradas na tragédia grega é que dão os fundamentos para Nietzsche compreender e traçar novas metas para transpor o ideal socrático em uma outra perspectiva, superando essa pretensão lógica em uma cosmovisão aberta ao vir a ser. Um Dionísio que jaz despedaçado é ressuscitado e, assim, cria-se a possibilidade de um mergulho em uma unidade primogênia, que é

43 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Trad.: Artur M. Pereira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 982-983. O ataque de Platão é dirigido principalmente contra a poesia imitativa. Mas o que é a imitação? Platão esclarece a questão pelo processo habitual, partindo da hipótese das idéias, que designam a unidade na pluralidade, operada no pensamento. As coisas que os sentidos transmitem ao indivíduo são reflexos das idéias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou imitações da idéia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro cria os seus produtos, tendo presente a idéia como modelo. O que ele produz é a mesa ou a cadeira, não a sua idéia. Uma terceira fase da realidade, além das da idéia e da coisa transmitida pelos sentidos, é a que representa o produto da arte pictórica, quando um artista representa um objeto. É precisamente com esta fase que Platão compara a relação que existe entre a poesia e a verdade e entre a poesia e o ser.

44 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 88.

45 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 13, p. 85.

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diferente da vontade irascível schopenhaueriana, mas está em sintonia com a vida e, mais especificamente, com o Uno-primordial.

Ainda com referência a Platão, quando este conheceu Sócrates, rasgou seus primeiros ensaios de poesia ditirâmbica46 e tragédias e não mais as escreveu, permanecendo com os conhecidos Diálogos, ou seja, as conversas e os debates com seu mestre e com seus interlocutores.47

Platão tinha começado por fazer tragédias. Era de facto maravilhosamente dotado para a arte dramática, não só para a tragédia, mas também para a comédia e a sátira dos ridículos. Não admira pois que tenha escolhido a forma do diálogo para expor suas idéias. Aliás, nisto imitava o seu mestre Sócrates, incansável questionador, que nunca praticava outro método que não fosse a investigação por perguntas e respostas.48

Para Platão, o trágico é a representação de um mundo “baixo”, no qual vigoram mitos e mentiras; é a separação entre o que é ideal e o que é perfeito. Para seu mestre Sócrates, aponta Nietzsche,

parecia que a arte trágica nunca ‘diz a verdade’ [...]. Como Platão, ele a incluía nas artes aduladoras, que não representam o útil, mas apenas o agradável, e por isso exigia de seus discípulos a abstinência e o rigoroso afastamento de tais atrações, tão pouco filosóficas; e o fez com tanto êxito que

46 Ditirambo: "canção do culto dionisíaco, com acompanhamento de aulos (instrumento de palheta dupla)”, instrumento que evocava sensualidade e liberdade [MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. p. 173 (Aquém do título Atlas de Música, esta obra, cujo original foi escrito em alemão, figura entre as mais importantes e respeitáveis sobre o assunto)].

47 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 13.

48 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 23.

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o jovem poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus poemas, a fim de poder tornar-se discípulo de Sócrates.49

Na perspectiva de Nietzsche, a tragédia ática apresenta a inseparabilidade daquilo que se entende por bem e mal, verdadeiro e falso, êxtase e sofrimento. É este paradoxo que apresenta a unidade originária ou o Uno-primordial.

Mas, em um mundo cindido pela racionalidade socrática, que nega a aparência, a tragédia tem uma vida curta e cede lugar ao drama, à comédia e, filosoficamente, dá lugar à retórica, ao discurso e aos diálogos socráticos dialéticos.

Nos diálogos A República e O Banquete, de Platão, percebe-se que Sócrates, cujo pensamento Nietzsche tanto critica, fala pela voz do seu discípulo. Platão descreve, em seu texto O Banquete, um jantar na casa do poeta Agatão, que comemorava sua vitória em um concurso de tragédias e, entre seus convidados presentes, resolve instituir outro concurso, oratório desta vez, no qual o tema do discurso deveria ser o Amor (Eros, divindade, servo e companheiro de Afrodite). No entanto, o maior elogio ao amor é feito no campo da teoria das idéias, traçando o destino do homem numa linha de ascensão espiritual e de abstenção dos prazeres sensuais,50 perturbadores da virtude da reflexão e da pretensa capacidade de administrar os desígnios da vida.

Os elementos que poderiam caracterizar a tragédia, como a embriaguez de Alcebíades, são sobrepujados pela lógica dialética de Sócrates. E o amor, assim, é exaltado sob a luz e a vigilância da razão, como se observa no diálogo:

49 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 87-88.

50 PLATÃO. O Banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 9-13.

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Depois disso, continuou Aristodemo, reclinou-se Sócrates e jantou com os outros; fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltaram-se à bebida. Pausânias então começou a falar mais ou menos assim: Bem, senhores, qual modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem e preciso tomar fôlego — e creio que também a maioria dos senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo poderíamos beber o mais comodamente possível.

[...] quanto a Sócrates, eu excetuo do que digo, que é ele capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável.

[...] Como, então, continuou Erixímaco, é isso que se decide, beber cada um o que quiser, sem que nada seja forçado, o que sugiro então é que mandemos embora a flautista e que ela vá flautear para si mesma ou para as mulheres lá dentro; quanto a nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que discursos — eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.51

Observa-se no curto diálogo a prática socrática no domínio racional dos apetites e dos sentidos do corpo, pelos personagens da cena, resistindo tanto à fadiga e à dor como ao prazer, tal como queria Platão ao conduzir o diálogo. Nota-se que, junto da abdicação da bebida farta, foram dispensadas a música e a flautista.

Apenas com o intuito de referenciar a negativa socrático-platônica à dimensão do inconsciente e da embriaguez e também de evidenciar a reticência para com a própria música e a esfera feminina, acrescentou-se este diálogo do Banquete de Platão, cujos elementos são valorizados na leitura da Grécia nietzschiana. É

51 PLATÃO. O banquete, ou, Do amor. Trad., intr. e notas: J. Cavalcante de Souza. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. § 176 a, b, c, d, e. p. 94.

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evidente o intuito moralizante nos diálogos platônicos, levando os interlocutores e o leitor a conclusões conduzidas pelo seu autor e pelo seu mestre.

Nietzsche, no texto O drama musical grego, faz menção às Dionisíacas Urbanas,52 associadas às forças vitais e aos estados coletivos de deleite. Da mesma forma, em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta um argumento sobre as festas dionisíacas como comemorações de redenção universal, celebrações que consistiam em desenfreada licença sexual, sobrepassando todas as convenções familiares e sociais. Estas celebrações estão associadas ao rompimento do principium individuationis como um fenômeno artístico trágico.53 Novamente a relação Apolo e Dionísio está presente: o primeiro, responsável pelo princípio individualizador; e o segundo, pelo seu rompimento, o que aqui se associa ao conceito de catarse apresentado na visão de Aristóteles.

Aristóteles estabeleceu que o sentido do termo [catarse, associada à tragédia] é um alívio, combinado ao prazer, dos mencionados afetos. [...] A catarse deste tipo não está ligada, para Aristóteles, a nenhum efeito moral. Por outro lado, ela lhe parece totalmente inofensiva, e aqui ele entra em contradição clara, ainda que não declarada, com Platão. Que baniu rigorosamente a tragédia de sua República ideal, por considerá-la perigosa à moral dos cidadãos.54

52 As Grandes Dionisíacas ou Dionisíacas Urbanas eram festas em homenagem a Dionísio, celebradas em Atenas no mês de Efabolion, que corresponde ao período que vai da segunda metade de março até meados de abril (n. do t.). Nietzsche aponta também manifestações desse tipo de permissão social em festas da Idade Média e no carnaval. (NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza; rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 54)

53 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 2, p. 34-35.

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No Livro III de A República, encontra-se este traço de contestação à tragédia e à imitação, em prol da epopéia, bem como a um certo tipo de música e à harmonia de determinados instrumentos que não servem à educação ou ao Estado enquanto formadores de cidadãos, pois podem remeter à experiência dionisíaca. A citação seguinte traz um diálogo de longa argumentação que tenta descartar a imitação da arte como caminho pedagógico, artístico ou filosófico:

— Há uma espécie de narrativa oposta a esta [imitação], quando se suprime o que diz o poeta entre os discursos e se deixa ficar unicamente o diálogo.

— [...] É a forma própria da tragédia.

— [...] Há uma primeira espécie de poesia e de ficção inteiramente imitativa que compreende [...] a tragédia e a comédia; uma segunda em que os factos são relatados pelo próprio poeta — encontra-las-ás sobretudo nos ditirambos — e, finalmente, uma terceira formação da combinação das duas precedentes em uso na epopéia e em muitos outros gêneros.

— [...] tínhamos de decidir se permitiríamos aos poetas compor narrativas meramente imitativas ou imitar uma coisa, e não outra, e quais de uma e outra parte, ou se lhes proibiríamos a imitação.

— Adivinho que vais analisar se devemos admitir ou não a tragédia e a comédia na nossa cidade.55

Por intermédio do diálogo entre Sócrates com Gláucon e Simónides, e também mediante uma argumentação lógica, o texto de A República segue em confronto claro com os elementos dissonantes que compõe a música e a tragédia grega:

55 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Notas e trad.: Sampaio Marinho. Portugal: Europa-América, s.d. p. 109.

(40)

— E a harmonia e o ritmo devem adequar-se às palavras? — Como não?

— Mas nós dissemos que não devia haver queixas e lamentações nos nossos discursos.

— Quais são, então, as harmonias plangentes? Diz-nos, visto que és músico.

— São [...] a lídia mista, a lídia aguda e outras semelhantes. — Por conseguinte, essas harmonias devem ser suprimidas, não é verdade?, porque são inúteis para mulheres honradas e, com mais forte razão, para homens.

— Certamente. [...]

— Sendo assim — repliquei —, não teremos necessidade, para os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.56

Observa-se nos dois textos de Platão mencionados a abordagem negativa à embriaguez, à música e à sensualidade. Isso é essencial, também, para a compreensão posterior dos conceitos nietzschianos, principalmente no tocante à morte da tragédia grega, com a expulsão da música do palco do espetáculo trágico.

A nova arte proporcionada por Platão a partir da severa lei antiga da unidade da forma lingüística é o protótipo do romance, em que a poesia vive com a filosofia dialética, como escrava.

Ao tratar da arte do herói trágico e do mito trágico, Nietzsche assume que só pela música é possível acessar a universalidade dionisíaca. “Com essa harmonia pré-estabelecida que impera entre o drama perfeito e a sua música, alcança o drama um grau supremo de visualidade, de outro modo inacessível ao drama falado”.57

56 PLATÃO. A república. Diálogos – I. 2. ed. Portugal: Europa-América, s.d. Notas e trad.: Sampaio Marinho. p. 115-116.

57 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 21, p. 126, 128.

(41)

A fim de se compreender esta universalidade dionisíaca e o seu acesso pela música trágica, apresentar-se-ão em seguida os fundamentos do Uno-primordial.

1.3 A teoria do Uno-primordial

O Uno-primordial como ‘uno vivente’ representa a totalidade da força vital da natureza concebida como um único ser vivo não individualizado. (Benchimol)58

É no início dos seus escritos, que Friedrich Nietzsche concebeu, ou intuiu, uma série de elementos que proverão sua original produção filosófica posterior. Ou, por que não dizer, desenvolveu os preceitos que justificam sua ruptura com a tradição filosófica platônica.

Para se entender o conceito do Uno-primordial na perspectiva de Nietzsche, é necessário encontrar na dimensão dionisíaca, excluída do cenário socrático, a via de acesso mais autêntica para a compreensão da existência, sem deixar de considerar a dimensão apolínea, necessária à consciência, à harmonia e ao processo de individuação.

Os primeiros escritos da obra de Friedrich Nietzsche têm, entre outras peculiaridades, a relevância dada à filosofia da Grécia antiga ou, mais apropriadamente, à tragédia grega e aos filósofos pré-socráticos. Porém, a tese do Uno-primordial passa pela noção romântica de sua época, em que se concebe a imagem do mundo como um único organismo vivo que gera a si mesmo.

58 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. p. 32.

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