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As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica

3 A MÚSICA DIONISÍACA E O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA –

3.1 As pulsões artísticas apolínea e dionisíaca e a música trágica

A dialética otimista, com o chicote dos seus silogismos, expulsa a música da tragédia: destrói a essência da tragédia. (Nietzsche)1

A oposição arte-ciência tem seu ápice, segundo Nietzsche, em Sócrates, visto como o “divisor de águas” entre a arte trágica e a racionalidade científica. Para ele, a arte trágica e a dimensão dionisíaca são elementos emancipadores do modelo socrático, isto é, do espírito científico (crença na penetrabilidade da natureza e na virtude do saber). Constitui, nesta pesquisa, o ponto de reflexão para reencontrar na arte grega a força originária do pensamento de Nietzsche.

Para ele, a arte é mais importante que a ciência, porque está ligada à afirmação da vida. O filósofo percebeu que na modernidade não há oposição entre a moral e a ciência, mas antes, que estas são conseqüentes. Em sua crítica, aponta a arte como princípio avaliador da vida.

Na presente pesquisa, ressaltam-se duas das três proposições contidas no livro O nascimento da tragédia. A primeira é uma explicação da origem, da composição e da finalidade da arte trágica grega; e a segunda, a denúncia da morte dessa arte perpetrada por Eurípides.2 Não será abordada a terceira, que é a idéia de avaliar a modernidade e encontrar nela manifestações da Idade Ática.3 Em outras palavras, as proposições que serão aqui investigadas, distintas e complementares

1 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 14, p. 90.

2 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7, 9 e 11.

são: a apresentação da arte trágica como expressão da natureza, nos princípios apolíneo e dionisíaco; e uma crítica à racionalidade conceitual “inaugurada” com a morte da tragédia grega, oriunda do socratismo. Com esta antinomia entre a arte trágica e a metafísica racional inaugurada por Sócrates, Nietzsche denuncia também a oposição que se manifesta entre a arte e a ciência.

O espírito científico que se desenvolve a partir da opção pela razão socrática pretende alcançar uma validade universal, ilimitada, capaz de penetrar na essência das coisas, separando a “verdade” da “aparência”.

A discussão sobre a morte da tragédia grega, apresentada por Nietzsche, descreve também a confrontação entre verdade e aparência. Nesta exposição, o poeta “embriagado” e inconsciente, Ésquilo, condenado por Sófocles e posteriormente criticado por Eurípides, este é o poeta sóbrio, enaltecido por Sócrates. Estes dois últimos, condenam a aparência em nome da verdade. Os três poetas trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides constituem o que Nietzsche chamou de “os três sapiens de seu tempo”.4 O julgamento de Sócrates sobre a obra destes poetas e a

sua predileção pela de Eurípides, de acordo com Nietzsche, levou à morte da tragédia. Para ele, Sócrates falava pela voz de Eurípides. Trata-se de uma racionalização da obra de arte. Há, porém, uma pista deixada por Sócrates e Eurípides e, ao mesmo tempo, uma dúvida quanto à opção de ambos pela razão e pela consciência. Nietzsche a descreve como

Aquela palavra da socrática aparição onírica é o único sinal de uma dúvida de sua parte sobre os limites da natureza lógica: será – assim devia ele perguntar-se – que o não compreensível para mim não é também, desde logo, o incompreensível? Será

4 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 12, p. 83; § 13, p. 84.

que não existe um reino da sabedoria, do qual a lógica está proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário e um complemento da ciência?5

Mas a dúvida e a intuição socráticas não foram ouvidas e a razão dialética ocupou o lugar da arte. Por sua vez, a ciência e a lógica são condenadas, por Nietzsche, como um fenômeno de superfície. Para ele, a arte trágica é profunda, é oriunda da desproporção e da intensidade das pulsões dionisíacas. A vida da diferença6 é, ao mesmo tempo, a criação e a dissolução das formas planejadas pela razão científica ou socrática, desejosa da verdade.

O excesso dionisíaco e sua música ditirâmbica encontram prazer na embriaguez, na qual a superfície da consciência só encontra sofrimento e dor. A crueldade e a tragicidade da vontade, ou do fundo originário, em Nietzsche, superam a contemplação da superfície. A tragédia tem na expressão musical, em especial no coro trágico, a manifestação do elemento indizível e inacessível à razão.

Essa importância do musical é rebatida num outro plano: a tragédia apaga-se no momento em que a música é suprimida. O fim para Eurípides, ou melhor, para o par Eurípides-Sócrates são a razão e o consciente que se colocam como senhores do teatro. Figura híbrida, Eurípides não é apenas a sombra do socratismo ou um duplo de Sócrates: mais que isso Eurípides é ele próprio um duplo; misto de poeta e homem teórico, elimina da tragédia o essencial: o ilimitado, o excessivo. Suprimir a música é suprimir o trágico: com Eurípides, Dionísio se apaga. O homem teórico “expulsa a música da tragédia, isto é, destrói

5 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 14, p. 91.

6 A vida da diferença é um termo que Kossovitch usa para descrever o efeito de Dionísio na experiência humana. KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 170.

a essência da tragédia, que só é compreensível como uma manifestação e uma representação simbólicas de estados dionisíacos, uma encarnação visível da música, o mundo de sonho que se desprende da embriaguez dionisíaca”.7

Não obstante, a convicção com que Sócrates assumiu a morte faz este homem teórico, assumido também em vida, transfigurar-se em modelo.O instinto de ciência, o otimismo dialético, se alargou sobre a posteridade e o homem teórico assumiu a significação de meta, de protótipo; isto, inclusive para acessar a própria arte e para perscrutar a natureza das coisas.8 A arte dá lugar à ciência e o belo passa a ser racionalizado fora da embriaguez.

Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo, com excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa sublime ilusão metafísica é aditada como instinto à ciência, e a conduz sempre de novo a seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte, que é objetivo propriamente visado por esse mecanismo.9

A luta contra a tragédia grega, e em especial contra a visão esquiliana, inaugura o socratismo. A tragédia euripidiana exclui a dimensão dionisíaca que, como se pretende demonstrar na leitura nietzschiana, é a via de acesso mais

7 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. p. 174-175. 8 Assim como Eurípides após ver o “Templo de Dionísio” em ruínas e a derrota de Ésquilo, o poeta embriagado, se interroga. Sócrates também desconfia, se indaga, mas por último, opta pela cicuta e pela morte!

9 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 15, p. 93.

autêntica para a compreensão da existência. Daí a afirmação de Nietzsche, que a arte é mais importante que a ciência.

Em A visão dionisíaca do mundo, o jovem Nietzsche aponta o papel dos poetas trágicos. O primeiro é Ésquilo, o sublime pensador da justiça grandiosa, que vê deus e homem entrelaçados pelo daimon que leva o homem ao delito, cega o indivíduo, mas apregoa que é possível escapar da necessidade do crime. O segundo é Sófocles, que vê na sublimidade o impenetrável da justiça; ele reduz em todos os elementos o ponto de vista do povo e o caráter imerecível de um horrível destino, que antes pareceu-lhe sublime. Os enigmas insondáveis eram as suas musas trágicas, solicitava resignação. “Assim não há culpa e sim piedade”.10

Eurípides, por sua vez, foi o poeta que condenou seus contemporâneos pelas suas características inconscientes e embriagadas11 e tornou a tragédia mais discursiva e racional. Isto, pela vertente socrática de que só é belo o que pode ser compreensível. Com ele temos o que Nietzsche chamou de “a morte da tragédia”.12

Se antes, na tragédia grega, a “aparente oposição” era entre Apolo e Dionísio, com a morte da tragédia, o confronto passa a ser entre o dionisíaco e o socrático. Para Sócrates, a arte trágica nunca diz a verdade.13 Desta forma, só pode ser desvelada pela racionalidade e pela consciência. Trata-se de um confronto entre as forças instintivas e a pensamento lógico. É o otimismo dialético expulsando a música (dionisíaca) da tragédia grega.

10 NIETZSCHE, Friedrich. A visão dionisíaca do mundo e outros textos de juventude / Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes; Maria Cristina dos Santos de Souza. Rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28-29.

11 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade: São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 30.

12 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 79. 13 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.

Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão do mundo não-dionisíacos – tal é a tendência de Eurípides que agora se nos revela em luz meridiana.14

A luz meridiana acusa, à guisa da morte da tragédia, a luz do meio-dia, isto é, da razão que tudo ilumina e que torna tudo claro, consciente e racional. Funda-se, assim, uma moral não conformada com a presença dionisíaca.

Ainda em O nascimento da tragédia, na crítica a Sócrates, Nietzsche afirma a dimensão artística como mais importante que a dimensão racional:

Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates, voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de entusiasmo artístico – e pensemos quão interdito lhe estava mirar com agrado para os abismos dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na “sublime e exaltada” arte trágica, como Platão a denomina? Algo verdadeiramente irracional, com causas sem efeitos e com efeitos que pareciam não ter causas; e, no todo, um conjunto tão variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole ponderada, constituindo, entretanto, para as almas sensíveis e suscetíveis uma perigosa isca.15

O próprio Eurípides, no final de sua vida, indaga sobre se realmente Dionísio deveria subsistir. Foi uma tentativa de retratação do poeta, segundo Nietzsche, uma consolação frente à dúvida, sobre o que não pode mais voltar atrás. Afinal, o mais

14 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e

posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 12, p. 78. 15 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. § 14, p. 87.

belo dos templos jazia em ruínas. A tragédia esquiliana foi vencida por Sócrates e por Euripides.

É assim que Dionísio foi afugentado do palco trágico.16 Todavia, este deus tentador parece, segundo Nietzsche, ter “seduzido” Sócrates, na hora da morte e dentro da prisão, a repensar sobre a arte e a música. Era uma voz em sonhos (o daimon), que dizia repetidamente “Sócrates, faz música, Sócrates, faz música”.17

O orgiástico sentimento de liberdade depende do engano da aparência. O herói trágico prescinde da derrota e não da vitória, morre mais cedo. A música, então, é vista como a única e a mais elevada forma de representação para vivificar o mundo material. Confiando desta forma na nobre ilusão, entregando-se ao orgiástico sentimento de liberdade, na dança ditirâmbica.18

Esse mergulho orgiástico no Uno-primordial é experimentado ou vivido por meio do coro, na tragédia grega, como se apresentará no texto a seguir.