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II. DEFINIÇÃO DE SAÚDE E SUA ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL

4. A dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição

Um dos fundamentos da nossa CF é a dignidade da pessoa humana37, expressamente positivado em seu artigo 1º, deixando de ser mera concepção abstrata, como ocorria nas cartas anteriores.

35 FIORILLO, Celso. O Direito de Antena em face do Direito Ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 148.

A atual CF colocou o homem como sendo o seu foco principal e reconheceu a necessidade de resguardar a sua dignidade e garantir o bem-estar da sociedade, reconhecidamente desigual nos aspectos social e regional, conforme o prefácio elaborado por Ulysses Guimarães, na edição lançada oficialmente pelo Senado Federal, mas que depois, ao argumento de impropriedade, foi retirado de circulação:

O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania.

A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Geograficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança, é a Constituição cidadã. Cidadão é o que ganha, come, mora, sabe, pode se curar.

A Constituição nasce de parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade.

Por isso mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos impasses. O governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo.

É a Constituição coragem.

Andou, imaginou, inovou, ousou, viu, destroçou tabus, tomou o partido dos que só se salvam pela lei.

A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.38

Na mesma linha, mas de forma mais direta, o preâmbulo da atual Constituição nos indica os valores consagrados no seu texto:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

37 Tal fato decorre do fato do país ter acabado de sair de uma longa ditadura (1961-1985), que comandou o país com forte violação das liberdades individuais através da repressão policial, censura, torturas, assassinatos de lideres opositores; existindo na sociedade civil o anseio por mudanças, que valorizassem a pessoa humana, os direitos individuais e sociais. Conforme Dalmo de Abreu Dallari, na nova Constituição “Houve clara atualização quanto ao papel atribuído ao Estado e à Constituição, iniciando-se um novo processo constitucional, comprometido com a prática dos direitos e a realização da justiça social.”. (Constituição para a Justiça social. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/damoldallari/dallari_justsoc.html>, acesso em 22 mar. 2007.

Como dito, está consagrado que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamento a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Desses fundamentos, nos interessa de forma mais especial neste trabalho, o da dignidade da pessoa humana. Dignidade, conforme a Enciclopédia Larousse Cultural39 é:

1. Qualidade de quem é digno; nobreza; respeitabilidade. – 2. Cargo ou título de alta graduação. – 3. Respeito que merece alguém ou alguma coisa: a

dignidade da pessoa humana. – 4. Honra, decência, brio [...]

A origem do conceito de dignidade da pessoa humana vem de Kant40, que afirmou, de forma inovadora41, que o homem não deve jamais ser transformado num instrumento para ação de outrem, pois, por ser o homem dotado de consciência moral, possui um valor que o torna “sem preço”, pondo-o acima de qualquer condição de coisa. Somente coisa pode ser avaliada como tendo determinado valor, ou valor de troca, ou de venda, ou como meio ou instrumento útil para determinado fim ou para a ação de alguém. A dignidade é o valor intrínseco que faz do homem um ser superior à “coisa”, que faz dele uma pessoa, entendido como sendo um ser dotado de consciência racional e moral e, por isso mesmo, capaz de responsabilidade e liberdade.42

A dignidade está intimamente ligada à respeitabilidade, que é inerente à condição humana, sendo que todo o sistema jurídico brasileiro deve estar voltado à observância deste fundamento constitucional.

Apesar de algumas considerações doutrinárias de que não é possível definir a dignidade humana, por se tratar de um valor já preenchido a priori, na medida em que todos já têm dignidade pelo fato de serem pessoas e se tratar de qualidade que lhes é inerente, não é de se ignorar que ela é passível de ser violada.43

39 Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p. 1907.

40 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

41 Kant é considerado inovador porque até então o homem não era considerado o fim, mas o meio de ação de outrem. Ele defendia a existência do valor em todo ser humano, que foi a base para o desenvolvimento da idéia de dignidade inerente à condição humana.

42 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 175-206.

43 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 17.

E, por ser passível de ser violada, muito bem fez a Constituição em colocá-la como garantia e finalidade primeira, tendo-a como “último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional”.44

A esse respeito, assim discorre Alexandre de Moraes:

[...] a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações aos exercícios dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que

merecem todas as pessoas enquanto seres humanos; 45[itálicos no original]

Conforme se vê, o autor tem a dignidade como um valor espiritual e moral inerente à pessoa (não pode ser concebida a idéia de alguém que não a tenha), decorrente de sua capacidade de autodeterminação consciente e responsável da própria vida (ela não lhe é concedida, por ser o homem, por essência digno, ou seja, livre), não podendo, por este motivo, ter sua vida desrespeitada pelo Estado, que também não pode ignorar a sua dignidade.46

Interessante a concepção defendida por Bernard Edelman47, que sustenta: “Se a liberdade é a essência dos direitos do homem, a dignidade é a essência da Humanidade”, ou seja, ela seria uma reunião simbólica de todas as pessoas naquilo que eles têm de comum, que é a qualidade de ser humano.

Essa foi a concepção da dignidade mencionada no parecer consultivo da Procuradoria- Geral da República de Portugal, feito a pedido do Subsecretário de Estado da Cultura, sobre a legalidade de espetáculos de sexo ao vivo. Concluiu-se, por maioria de votos, que esses espetáculos não são ilegais, desde que essa sua natureza se encontre claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias. Todavia, na declaração de voto, Antonio Silva Henriques

44 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Ibidem, p. 15-16.

45 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2004, p. 52.

46 Esta a interpretação de Giselda Hironaka a respeito da definição de dignidade da pessoa humana formulada por Alexandre de Moraes. In: Responsabilidade pressuposta, cit., p. 164-169.

47 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta, cit., p. 216, apud EDELMAN, Bernard, La dignité de la personne humaine, Paris: Économica, 1999, passim.

Gaspar, manifestou que seria possível conclusão diversa, se o caso fosse analisado sob o enfoque da dignidade da pessoa humana, dizendo que:

A dignidade da pessoa humana, enquanto centrada no paradigma da Humanidade (do género humano) e não já no plano da liberdade de cada um (do indivíduo), introduz uma matriz radicalmente diferente, não se referindo já ao indivíduo enquanto ser livre, mas ao indivíduo enquanto pertencente ao género humano. Esta perspectiva, saindo do plano individual e atomístico da liberdade, para atender à consideração do homem e da mulher enquanto pertencentes ao género humano, coloca a dignidade como um valor fundador e federador de todos os valores, fora do comércio e insusceptível de renúncias individuais (cfr., v.g., a decisão de referência do Conselho de Estado francês, de 27 de Outubro de 1995, que considerou o respeito da dignidade humana como uma componente essencial da ordem pública, entendendo legítima, com este fundamento, a proibição de um divertimento público que consistia no lançamento, como projéctil, de um anão, a curta distância sobre um colchão pneumático). Beàtrice MAURER („Le principe de respect de la dignité humaine et la Convention europènne des droits de l‟homme‟, ed. La documentation française, 1999, pág. 464 e segs.) aponta, por exemplo, um critério, físico e de autohumilhação perversa quando alguém se reifica no sentido de fazer de si mesmo uma coisa, um objecto. „Le droit de disposer de soi-même n‟éxiste donc pas quand il s‟agit de disposer de as dignité fondamentale. La dignité marque à la fois la singularité de chaque être et son appartenance à la communauté humaine‟.48

No caso mencionado no parecer supra colacionado, conhecido como lancer de nains (lançamento de anões) ou Commune de Morsang-sur-Orge (nome da cidade em que ocorreu o caso), o governo francês proibiu o espetáculo que consistia numa competição de lançamento de anões por entender que o papel que os mesmos desempenhavam atentava a dignidade da humanidade.49 Giselda Hironaka também menciona o caso e esclarece que:

[...] a fundamentação baseada no respeito à dignidade da pessoa humana conflitou com a liberdade do anão que se declarava satisfeito por trabalhar e que a interdição promovida atentava contra a sua dignidade, tornando-o um excluído. 50

48 O questionamento feito pelo Subsecretário foi decorrente de pedido de encerramento do Cinema Odeon requerido pela Parisiana, Lda., sociedade por quotas proprietária do imóvel à Direção-Geral dos Espetáculos ao argumento de que as exibições lá promovidas pela Exifilmes, Lda., “ofendem profundamente a moral de todos os sócios da Requerente, uma vez que o Cinema Odeon sempre se caracterizou ao longo de várias décadas por ser um cinema de cariz familiar, estando a sua reputação a ser destruída pela sociedade Exifilmes”. A questão foi decidida através de decisão colegiada proferida no parecer tem o nº PGRP 00000785, Relator Luis da Silveira,

votação dia 31⁄05⁄2001. Disponível em: <

http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/cef5659fd428518b8025661700420807?Open Document>, acesso em: 09 mar. 2008.

49Vide análise da decisão intitulada “27 octobre 1995 – Commune de Morsang-sur-Orge – Rec. Lebon p. 372”. Disponível em: < http://www.conseil-etat.fr/ce/jurisp/index_ju_la47.shtml#>, acesso em: 09 mar. 2008.

50 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Responsabilidade pressuposta, cit., p. 164-169, apud EDELMAN, Bernard. La dignité de la personne humaine, um concept nouveau, passim.

O comissário do governo entendeu que o consentimento do anão ao tratamento degradante ao qual se submetia era juridicamente irrelevante, pois não se pode renunciar à dignidade; porque uma pessoa não pode excluir, de si mesma, a Humanidade, esta entendida com a reunião simbólica de todos os homens naquilo que eles têm em comum, qual seja a qualidade de seres humanos.51

Entende louvável tal decisão, não obstante ao que tudo indica o anão que se declarou satisfeito com a atividade tenha perdido o seu meio de subsistência; contudo, consoante Edelman, a dignidade da pessoa humana enquanto “essência da humanidade” restou garantida. Acredita que aqui cabe o ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet de que, mesmo o princípio da dignidade prevalecendo sobre os demais princípios, o mesmo é relativizado em homenagem à dignidade de todos os seres humanos.52

Apesar de paradigmática, entende que foi um tanto exagerada a interpretação dada ao caso, na medida em que se tratava de uma diversão que parecia arraigada no meio cultural em que vivia o anão, pois do contrário sequer existiria público para o espetáculo. O lançamento em canhão não difere muito das acrobacias, malabarismos e atrações circenses, como o de palhaços, em grande número estrelado por anões; situações que se analisadas de forma mais detida, podem ser tidas como igualmente atentatórias à dignidade da humanidade, mas nem por isso são proibidas.

Transportando o conceito da dignidade da pessoa humana para a realidade brasileira, indaga-se quanto à violação a esse princípio o fato de centenas de homens, mulheres e crianças viverem de cata de sucatas nos grandes centros urbanos e nos lixões do país. Caso o entendimento seja positivo, de que forma ela estaria sendo mais violada, pela sobrevivência com produtos retirados dos lixões ou passando fome e vivendo de mendicância nas cidades? A situação demonstra que não é fácil falar em dignidade da pessoa humana em países subdesenvolvidos como o Brasil, em que se convive com tantas e tão profundas desigualdades sociais e econômicas.

O desenvolvimento da natureza humana, porém, é uma conquista paulatina, a ser construído constante e diuturnamente, como uma atribuição não só governamental, como também de cada pessoa, pois é a humanidade na qual se integra cada um que deve ser

51 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Ibid., p. 164-169..

52 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 77.

protegida e resguardada. As violações não raras vezes são encontradas em pequenos detalhes, como na discriminação disfarçada, na miséria, na fome, no desemprego, na falta de perspectivas etc., e o permanente aperfeiçoamento da sociedade é inegavelmente um dos caminhos a serem trilhados para que a dignidade se torne cada vez mais cristalina e garantida.

Salienta Bergel que, o “respeito à dignidade humana foi sempre considerado como uma condição essencial para a elaboração e construção de todos os direitos fundamentais”53; e com razão, pois, como falar-se nestes direitos sem considerar o bem maior do homem, que é o seu valor, a sua dignidade enquanto pertencente à humanidade?

José Cabral Pereira Fagundes Junior, sintetizando a visão antropocêntrica do homem, leciona:

A pessoa humana é hoje considerada como a mais notável, senão raiz de todos os valores, devendo por isso mesmo e dentro de uma visão antropocêntrica, ser o destinatário final da norma, base mesma do direito, revelando, assim critério essencial para conferir legitimidade a toda ordem jurídica.54

Sendo o homem a razão e o centro de todas as atividades, ao intérprete e ao aplicador da lei não basta a mera interpretação fria de textos legais, devendo ele se empenhar em uma tarefa criativa, buscando, na aplicação do direito ao caso concreto, fazer com que a dignidade não seja de qualquer forma lesada.

Assim sendo, inegável e indubitável que a dignidade da pessoa humana foi elevada ao ponto máximo pela nossa Carta Magna55, devendo todo o sistema constitucional ser interpretado e toda ação tendendo ao cumprimento de seus ditames e obrigações ser realizada, tendo-se como linha mestra, a observância desse princípio.