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II. DEFINIÇÃO DE SAÚDE E SUA ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL

3. A Saúde, na seguridade social – retrospecto histórico

3.1. Breve histórico da prestação do serviço de saúde.

A preocupação com a saúde é inerente ao ser humano e está diretamente vinculada com o seu instinto natural de autopreservação. Consta que os egípcios, há quase 4.000 anos, já lembravam fatores naturais como causas de doença, sendo responsáveis por grandes avanços na área médica. E, como legado da civilização greco-romana, surgiu a figura de Hipócrates e a sistematização de um conhecimento médico por Galeno, havendo notícias de que os serviços eram pagos pelos necessitados e em algumas situações custeados pelas polis.230

Os romanos testaram várias formas de financiamento de saúde, sendo que alguns médicos vendiam diretamente os seus serviços, enquanto outros, vinculados às famílias, recebiam anualmente por prestar assistência. Com o tempo, houve a regulamentação da atividade, fixando-se um limite máximo de profissionais médicos em cada município, sendo que os serviços públicos de assistência médica organizaram-se a partir do século II D.C. Também existiam hospitais públicos e particulares, de maneira que os serviços médicos eram prestados de várias formas, ora sendo custeado pela coletividade, ora pelo próprio enfermo, sendo este modo mais raro, ante a fragilidade natural da pessoa que se encontra doente.231

Durante a revolução industrial, passou-se a considerar doença como prejuízo ao capitalismo, merecendo atenção do setor privado. Diante disso, o Estado foi chamado para exercer o papel central na promoção da saúde, em virtude das necessidades econômicas geradas pela industrialização e pela urbanização. É nesta fase que o movimento sanitarista ganha força, influenciado pelo capitalismo liberal.232

No âmbito internacional, em momentos de grandes epidemias, o Estado assumiu ocasionalmente os cuidados com a saúde dos indivíduos, sendo que as ações se caracterizavam por saneamento e combate às epidemias, ou seja, tendo um caráter preventivo233. Em alguns casos também havia o assistencialismo privado, com a construção

230 FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1995, p. 21-22.

231 FERNANDES NETO, Antonio Joaquim. Plano de saúde e direito do consumidor, p. 22. 232 FERNANDES NETO, Antonio Joaquim, op. cit, p. 24.

de hospitais e contratação de médicos234, que era motivado também pelo receio que as pessoas tinham de serem contaminadas pelos doentes.

Esse sistema misto de serviços de saúde também foi implementado em países de regimes socialistas ou marxistas, organizados para minimizar o papel do governo central na efetivação de políticas de saúde, citando como exemplo a China, que, desde 1970, tem a economia parcialmente privatizada, contando com atendimento mínimo do governo central.

3.2. Evolução nacional da prestação dos serviços de saúde

A questão da saúde está intimamente vinculada ao desenvolvimento histórico da seguridade social. Conforme já visto, a Lei Eloy Chaves criou as CAPS, que tinham finalidade puramente assistencial: benefícios em pecúnia e prestação de serviços.

Nesse período, os preceitos da saúde pública respondiam apenas às medidas de caráter coletivo, em particular as às campanhas sanitárias, como o combate à febre amarela e varíola; e à classe assalariada urbana, até então assistida pelas mutualidades e pela filantropia (como de resto a população em geral), passou a ser destinado serviços e atenção médica individual, prestado pelas CAPS, que por sua vez os comprava do setor privado, através do mecanismo de credenciamento médico235.

A assistência médica era concebida como pertinente à esfera privada, sendo um serviço ao qual se tinha acesso a partir da inserção no mercado de trabalho formal com contribuição de um percentual do salário, através de um contrato compulsório236; ou seja, a saúde era entendida como direito subjetivo do trabalhador no âmbito do Seguro Social.

Na década de 1930, iniciou-se a formação dos IAPS, que institucionalizaram o seguro social por categoria profissional, fragmentando as classes assalariadas urbanas por inserção nos setores da atividade econômica. A estrutura dos IAPS, juntamente com a das CAPS remanescentes em várias empresas permaneceu até a edição do Decreto-Lei 72, de 1966, quando ocorreu a unificação do sistema previdenciário no INPS.

Diante de profundas transformações da sociedade brasileira no período, especialmente em razão dos processos de acelerada industrialização e urbanização, os serviços previdenciários de saúde passaram a ser progressivamente pressionados pela demanda dos

234 FERNANDES NETO, Antonio Joaquim. Plano de saúde e direito do consumidor, p. 24.

235 COHN, Amélia (et. al.). A Saúde como direito e como serviço. São Paulo: Cortez, 1991, p. 14-16. 236 COHN, Amélia (et. al.). A Saúde como direito..., p. 15.

trabalhadores assalariados urbanos, que não tinham outro serviço médico alternativo, quer estatal, quer privado, à exceção da rede de estabelecimentos de natureza filantrópica e uma escassa rede pública hospitalar, ambulatorial e de atenção primária.

Tal situação perdurou até meados da década de 1970, quando a rede pública de serviços de saúde passou a assumir, de forma progressiva, também a assistência médica individual.237 Em 1975, através da Lei 6229, foi criado o Sistema Nacional de Saúde que reafirmou as especialidades preferenciais das tarefas a cargo da Previdência Social e do Ministério da Saúde, firmando-se a competência deste também na atenção médica individual.

No entanto, ainda se mantinha a importância da Previdência Social nos serviços de saúde, diante de sua opção pela compra de serviços privados por credenciamento ou convênio. Esta situação associada a um decrescente investimento da União fez surgir e avançar o setor privado de prestação de serviços médicos, que se capitalizou às custas da intervenção estatal na previdência social, enquanto a rede pública de passou a sofrer um acentuado processo de sucateamento, em razão da não priorização das políticas de saúde.

Dessa forma, passou a ocorrer uma seletividade da clientela: o da previdência destinada à população urbana inserida no mercado de trabalho e os serviços públicos, vinculado ao Ministério da Saúde e o das populações de baixa renda, excluídas do setor formal da economia.

O favorecimento do setor privado de atendimento médico através da política previdenciária prevaleceu de forma explícita até a década de 1980, que foi o período de apogeu das empresas médicas (conhecidas como medicinas de grupo), dos hospitais privados e das cooperativas médicas.

Essas distintas modalidades de prestação de serviços de saúde do setor privado contavam com a clientela cativa (previdenciária), que comprava seus serviços, sob forma de convênios ou de credenciamentos firmados pelo INPS e posteriormente pelo INAMPS. Este processo de privatização da esfera pública teve como conseqüência o prevalecimento da lógica do lucro e da capitalização nos investimentos do setor.

Podemos dizer que nessa época existiam basicamente as seguintes situações: os mais abastados que podiam se socorrer da rede privada de saúde, arcando com todos os custos; os assalariados que se utilizavam do INAMPS; os trabalhadores rurais que faziam jus aos

benefícios do FUNRURAL; e as entidades municipais e assistenciais, que atendiam o restante da população, como os não assalariados e os que não possuíam trabalho formal.

Em 1979 foi implantado um Programa de Interiorização das Ações de Saúde (PIASS), e somente a partir desse momento começou a ocorrer a modificação do modelo de atenção à saúde no Brasil, expandindo-se a cobertura.

Tanto é assim que já na década de 1980, com as mudanças econômicas e políticas ocorridas no país, passou-se a exigir a substituição do modelo médico-assistencial privatista por um novo modelo de atenção à saúde, ensejando a criação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde, que nunca passou de mero projeto.

Como prenúncio destas modificações, em 1983, foram implantadas as Associações Integradas de Saúde (AIS), que despontaram como o primeiro desenho estratégico de co- gestão, de desconcentração e de universalização da atenção à saúde; sendo que, em 1986, na 8ª Conferencia Nacional de Saúde, consolidou-se a proposta orientadora da elaboração do capítulo específico na atual CF, surgindo a idéia de um sistema único, o qual se opõe à dicotomia originada quando o Ministério da Previdência e Assistência Social retirou do Ministério da Saúde o poder sobre atividades de assistência, separando-a das ações preventivas.238

No relatório final dessa 8ª. Conferência Nacional de Saúde (CNS)239, cumpre destacar o seguinte trecho, que relata a situação sanitária da época:

6 – As limitações e obstáculos ao desenvolvimento e aplicação do direito à saúde são de natureza estrutural.

7 – [...] As desigualdades sociais e regionais existentes refletem estas condições estruturais que vêm atuando como fatores limitantes ao pleno desenvolvimento de um nível satisfatório de saúde e de uma organização de serviços socialmente adequada.

8 – [...].

9 – Na área de saúde, verifica-se um acúmulo histórico de vicissitudes que deram origem a um sistema em que predominam interesses de empresários da área médico-hospitalar. O modelo desorganização do setor público é anárquico, pouco eficiente e ineficaz, gerando descrédito junto à população. 10 – Este quadro decorre basicamente do seguinte: não prioridade pelos governos anteriores do setor social, neste incluído a saúde, privilegiando

237 Para Antonio Joaquim Fernandes Neto, o interesse estatal pela saúde sempre esteve relacionado com o interesse econômico, o que explicaria o fato dos primeiros hospitais terem sido nas cidades portuárias, regiões de produção agrícola e em locais que se constituíam em canais de exportação. In: Plano de saúde e..., p. 26. 238 FERNANDES NETO, Antonio Joaquim. Plano de saúde e direito do consumidor, p. 38.

239 Anais, 8ª Conferência Nacional de Saúde, Brasília, 1986. Relatório final. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987.

outros setores, como por exemplo o da energia, que contribuiu para a atual dívida externa; vigência de uma política de saúde implícita que se efetiva ao sabor de interesses em geral não coincidentes com os dos usuários dos serviços, acentuadamente influenciada pela ação de grupos dedicados à mercantilização da saúde; debilidade da organização da sociedade civil, com escassa participação popular no processo de formulação e controle das políticas e dos serviços de saúde; modelo assistencial excludente, discriminatório, centralizador e corruptor; falta de transparência na aplicação de recursos públicos, o que contribuiu para o seu uso dispersivo, sem atender às reais necessidades da população; inadequada formação de recursos humanos tanto em nível técnico quanto nos aspectos ético e de consciência social, associada à sua utilização em condições insatisfatórias de remuneração e de trabalho; controle do setor de medicamentos e equipamentos pelas multinacionais; privilégio na aplicação dos recursos públicos na rede privada de assistência médica, como também em programas de saneamento e habitação; interferência clientelística no que se refere à contratação de pessoal; excessiva centralização das decisões e dos recursos em nível federal.

A situação sanitária descrita já mostrou significativa mudança nos dias atuais, desde a época em que se realizou a 8ª CNS, sendo inegável que houve uma ampliação dos serviços de saúde prestados pelo Estado; mas, infelizmente, muito do que se apontou como problema na época ainda persiste, fruto, não só da falta de recursos governamentais ou deficiente gerenciamento dos mesmos, mas também das desigualdades sociais e regionais decorrentes da má distribuição de renda e da propriedade fundiária. É decorrência dessa situação, a desnutrição; a falta de saneamento básico, as condições sanitárias inadequadas, a desinformação; o analfabetismo; o desemprego, que afetam diretamente na questão sanitária da população.

O SUS, criado na CF de 1988, significou a incorporação constitucional da visão reformista sobre o papel do Estado (baseado no princípio do welfare state), sem fixação das respectivas bases de financiamento para a implantação de uma política social de caráter universalista e redistributiva.240 Através do SUS houve uma universalização do direito de assistência à saúde, de forma pública e integral, crescendo muito o número de pessoas assistidas, pois de direito exclusivo dos trabalhadores, passou a ser de todos.

Desde então o Poder Público vem se adaptando material e financeiramente para o custeio das atividades relacionadas à saúde, conforme previsão contida no artigo 196 da CF. Anota Eduardo Perillo241 que, a partir do advento do SUS, os serviços de saúde pública, que atendiam cerca de 40 milhões de pessoas oriundas da Previdência Social, passaram a atender

240 COHN, Amélia (et. al.). A Saúde como direito e como serviço. São Paulo: Cortez, 1991, p. 22

241 PERILLO, Eduardo Bueno da Fonseca. Os interesses organizados na saúde e a resistência à mudança. Dissertação de Mestrado em Administração. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, (s.d.), p. 80.

cerca de 150 milhões de pessoas, não havendo disponibilização de recursos financeiros destinados a adequar a rede de atendimento à demanda.