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II. DEFINIÇÃO DE SAÚDE E SUA ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL

1. O Código de Defesa do Consumidor

As transformações havidas no processo produtivo desde a revolução industrial na segunda metade do século XVIII e, principalmente, com a revolução tecnológica, fenômeno decorrente do grande desenvolvimento técnico alcançado no período pós II Guerra Mundial, ocasionaram uma profunda alteração nas relações de consumo. A produção caracterizada pela elaboração artesanal de produtos e restrita ao âmbito familiar, passou a ser uma exceção, as relações de consumo deixaram de ser pessoais e diretas, fulminando com o relativo equilíbrio existente entre as partes.

Essa nova configuração do mercado baseada na produção em massa, pelo domínio do crédito, marketing e práticas comerciais abusivas colocou o consumidor numa situação de extrema precariedade frente aos agentes econômicos, impondo-se uma transformação ou amenização deste sistema predatório.364

Diante dessa conjuntura percebeu-se que o consumidor estava desprotegido, necessitando de uma proteção legal, sendo utópica a possibilidade de autocomposição entre os integrantes das relações de consumo sem a intervenção estatal. Baseado nessa vulnerabilidade do consumidor, iniciou-se um movimento no âmbito internacional com o intuito de

364 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. Código Brasileiro de Defesa

do Consumidor: comentado pelos autores do Anteprojeto. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 6.

reequilibrar as relações entre consumidores e produtores. No ano de 1985 a ONU pela resolução 39/248 reconheceu expressamente que os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos econômicos, níveis educacionais e de poder aquisitivo.

No Brasil, a CF de 1988 alçou a defesa do consumidor ao patamar de direito fundamental (art. 5º, XXXII: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"), ao princípio da ordem econômica e previu no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a elaboração de um Código de Defesa do Consumidor.

Visualiza-se, assim, a vulnerabilidade do consumidor como fundamento dessa nova disciplina jurídica e através do CDC busca-se a proteção integral, sistemática e dinâmica, com o regramento de todos os aspectos da relação de consumo, sejam os pertinentes aos produtos e serviços, sejam outros que se manifestam como instrumentos fundamentais para a produção e circulação destes mesmos bens: o crédito e o marketing.365

E, sendo esta vulnerabilidade ensejadora do advento do CDC, este veio para reequilibrar a relação de consumo, ora reforçando, quando possível a posição do consumidor, ora proibindo ou limitando certas práticas de mercado.

As regras constantes na Lei n. 8.089 (CDC) são de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, sendo prevalente sobre todas as leis ou normas anteriores que com ela colidirem.366

Sendo a prestação de serviços de saúde um direito de natureza difusa, a mesma insere- se na categoria de bem de consumo, na medida em que pela população são “consumidos” serviços médicos, medicamentos, sendo justamente por isso, regulados e protegidos pelo Estado, também sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor.367 Nesse diapasão, a Lei 8.078/90, em diversos artigos, refere-se de forma expressa aos serviços de saúde, deixando claro que a legislação consumerista pode incidir sobre eles.

365 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. Ibidem. , p. 7.

366 NUNES< Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Direito material. (arts. 1º a 54). São Paulo: Saraiva, 2000, p. 72.

367 A Lei 8.078⁄90 é conhecida como Código de Defesa do Consumidor e tem essa nomenclatura dupla explicada por Ada Pellegrini Grinover e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin. Dizem que o constituinte adotou a concepção de Código, mas na sua tramitação, o lobby dos empresários buscou por meio de manobra procedimental, impedir a votação do texto na legislatura, sob o argumento de que, por se tratar de Código, seria necessário respeitar um iter legislativo formal que não havia sido observado; o que foi contra-argumentado de que aquilo que a Constituição chamava de Código, assim não o era, e o Código foi votado com a nominação de Lei. Alertam os autores que não obstante esta denominação, na realidade trata-se e um Código, seja pelo mandamento constitucional, seja pelo seu caráter sistemático, tanto que o Congresso Nacional sequer se deu ao trabalho de extirpar do corpo legal as menções ao vocábulo Código. In Código Brasileiro de Defesa do

Antes de aprofundarmos no aspecto da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos serviços de saúde prestados pelo Estado através do SUS, relevante apontar algumas características deste chamado microssistema de defesa do consumidor.

Leciona José Carlos Maldonado de Carvalho que a Lei 8.078, de 11⁄09⁄1990, pela coerência e homogeneidade de seus fundamentos, é dotada de total autonomia, o que dá a certeza sobre sua natureza jurídica de legislação codificada. Diz que inspirado no Direito comunitário europeu, em especial nas Diretivas e nas legislações de Portugal e Alemanha, o CDC, em razão do seu caráter multidisciplinar, em alguns casos modifica e em outros apenas atualiza determinados instrumentos jurídicos, criando, assim, um verdadeiro microssistema jurídico.368

O próprio CDC estabelece, já no artigo 1º, que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social, de forma que é permitido ao julgador conhecer de ofício qualquer questão relativa às relações de consumo, não se operando sobre ela o efeito da preclusão.369

Em seguida, no artigo 2º, vem o conceito de consumidor como sendo “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Sustenta Filomeno que o conceito adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, levando-se em conta tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que age desta forma para atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de outra atividade negocial. Acrescenta que um traço marcante da conceituação de „consumidor‟ é a perspectiva de considerá-lo como vulnerável.370

No parágrafo único do artigo 2º consta que é equiparado a consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Aqui, o que se tem em mira é a universalidade de consumidores, sobretudo os indeterminados e que tenham intervindo em dada relação de consumo, como é exemplo a classe dos interesses difusos, definida no artigo 81, inciso I, do CDC como “os transindividuais, de natureza

368 CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Direito do consumidor. Fundamentos doutrinários e visão jurisprudencial. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 5.

369 CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Direito do consumidor..., p. 4.

370 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do Anteprojeto. - 8ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 27-31.

indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.371

Esses interesses seriam detectados na honestidade da propaganda comercial, na proscrição de alimentos e medicamentos nocivos à saúde, na adoção de medidas e segurança para os produtos perigosos etc.

Já no artigo seguinte (art. 3º.), nos é apresentada a definição de fornecedor, definido como:

[...] toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1º. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Verifica-se que a definição de fornecedor é bastante genérica, nele se incluindo todas as pessoas que de alguma forma tenham participado desde o início do processo de produção até a disponibilização do produto ou serviço no mercado. Da generalidade da definição de fornecedor, extrai-se que são assim considerados todos os que propiciarem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, para atendimento das necessidades dos consumidores.372

Destaca José Geraldo Filomeno que as relações de consumo nada mais são que relações jurídicas, de onde se pressupõe dois pólos de interesses: o consumidor-fornecedor e a

371 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor..., p. 38-39.

372 Ronaldo Porto Macedo Jr. noticia que uma das formulações mais influentes na área consumerista refere-se ao conceito de justiça distributiva, diante da idéia de que é possível e desejável realizar uma distribuição de riquezas e oportunidades através do acesso equitativo a serviços como saúde e educação; e o direito do consumidor poderia ser visto como uma tentativa de redistribuir poder e recursos dos fornecedores para os consumidores. O próprio autor refuta esta idéia, apontando dentre outros os problemas de representatividade, citando que diversos aspectos do Welfare State, especialmente relacionados à educação e serviços de saúde, beneficiaram primordialmente os grupos de renda média, em detrimento dos grupos de baixa renda, usualmente menos representados e organizados. Sustenta que é razoável supor que o mesmo tenha ocorrido no Brasil, de que seriam exemplos os gastos sociais com medicina curativa em detrimento da medicina preventiva e maior volume de recursos destinado ao ensino universitário em detrimento do ensino básico, inversões que favorecem os setores da classe média, em prejuízo dos grupos economicamente mais fracos e vulneráveis. Contratos Relacionais e

coisa, objeto desses interesses, que no CDC são produtos e serviços.373 O produto deve ser entendido como “bens” e “é qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final”. Serviços são as atividades fornecidas no mercado de consumo, mediante remuneração, exceto as decorrentes das relações de caráter trabalhista, de forma que estão excluídos os serviços remunerados através de tributos.374

Ronaldo Porto Macedo Jr. sustenta que a “proteção do consumidor pode ser vista como um mecanismo para o fortalecimento da segurança nas transações de mercado e fornecer fontes para o desenvolvimento de normas sociais de confiança e certeza”, de que seriam exemplos os dispositivos do CDC sobre o compromisso do fornecedor com a informação prestada e com a oferta apresentada ou naquilo que o direito contratual neoclássico costuma denominar como dever de lealdade e dever de cooperação.375

Ou seja, o CDC, além do inequívoco objetivo de proteção do consumidor, visa garantir a proteção e a segurança das transações de mercado, que estaria seriamente ameaçado se os consumidores não mais tivessem a confiança e a certeza de segurança dos produtos e serviços consumidos. Exemplo dessa insegurança é o recente episódio de descoberta de adição de soda cáustica e água oxigenada nos leites comercializados na embalagem longa vida, visando acobertar a adição de água nos produtos.376 A situação causou um pânico e temor generalizado, que acarretou na drástica diminuição do consumo e desconfiança do mercado nos leites comercializados nessa embalagem, sendo que várias pessoas deixaram de consumir o produto essencial para a nutrição, com temor de dano à saúde.377

Isso demonstra que a proteção e a segurança das transações e dos produtos existentes no mercado são imprescindíveis para a harmonia do mercado, ensejando benefícios tanto para o consumidor como para o fornecedor.

373 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do Anteprojeto. - 8ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 46-47.

374 Idem, p. 48-49.

375 Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 302.

376 MICHAEL, Andrea; SILVA, Luisa Alcântara e; SOLANO, Pablo. Soda é misturada ao leite há 2 anos, dizem funcionários, Folha de São Paulo, edição de 25⁄10⁄2007, disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u339611.shtml>, acesso em 02 fev., 2008.

377 JUNIOR, Cirilo. Adulteração do leite diminui demanda e preço cai ainda mais, diz IBGE. Folha de São

Paulo, edição de 07⁄11⁄2007, disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u343468.shtml>, acesso em: 02 fev. 2008.

2. Política nacional de relações de consumo do código de defesa do