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Como já analisada, a dignidade humana, segundo Kant (1969), fundamenta- se na vontade racional e autônoma do homem que, por intermédio de imperativos morais categóricos, determinaria a conduta de todos.

Este princípio da humanidade e de toda natureza racional em geral como um fim em si mesmo, princípio que é a condição suprema limitativa da liberdade das ações de todo o homem, não se deriva da experiência; primeiro pela sua universalidade, posto que se estende a todos os seres racionais e não há experiência que alcance determinar tanto (KANT, 1969, p. 81).

Apesar da grande contribuição de Kant (1969) para a compreensão universal da dignidade da pessoa humana, constituída na autonomia do homem de prescrever normas morais, a partir de um agir racional, ele equivoca-se ao tratar o homem apenas como um ser “abstrato, cuja liberdade estaria fora da natureza, não se sujeitando sequer às leis da causalidade” (SARMENTO, 2016, p. 43). O homem é muito mais que um ser especulativo. É igualmente um ser real e concreto que, vinculado à sua comunidade, age também em razão de suas inclinações e necessidades.

Santoro (1999, p. 44) analisa essa contraditória visão impessoal de dignidade humana em Kant (1969) ao realçar que se deve respeitar no indivíduo “não o concreto ser humano, mas a abstração que está presente nele; não a dignidade da pessoa singular, mas a dignidade da lei moral; não o indivíduo específico, mas a humanidade que está em cada um”.

Essa teoria possibilitaria afirmar que “o Estado não deveria intervir nas relações sociais travadas por agentes iguais perante a lei” (SARMENTO, 2016, p.44), uma vez que a dignidade humana se apresentaria como um referencial moral categórico, ou seja, uma referência moral filosófica abstrata, e não concreta como são as relações cotidianas do homem.

Essa constatação gerou muitas críticas “no sentido de que a abstração seria um disfarce para a dominação burguesa” (SARMENTO, 2016, p. 44). Não é por acaso que Marx (2005) escreveu:

que os chamados direitos humanos, os direitos do homem (droits de l’homme), ao contrário dos direitos do cidadão (droits du citoyen), nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem

egoísta, do homem separado do homem e, da comunidade (MARX, 2005, p. 34).

Para Marx, os direitos do homem não são os mesmos direitos do cidadão. Os direitos do homem são de uma classe social específica, a burguesa. Neste sentido, explicita Soriano (2003):

[...] é o indivíduo de uma classe que possui realmente direitos (a liberdade, a propriedade, etc.), enquanto o cidadão do Estado só é atributo de uns direitos imaginários. Os direitos humanos – dirá Marx – são direitos do homem concreto, não do cidadão, porque além de cidadão, há que ser indivíduo da burguesia, para desfrutar dos direitos humanos. Os direitos do homem, isto é, do burguês, único que pode desfrutar de direitos, são direitos de seres egoístas, porque são limitativos dos direitos dos demais (SORIANO, 2003, p. 334).

Essa visão de que o Estado não deveria intervir nas relações entre iguais culminou no absenteísmo estatal. Isto é, a não interferência do Estado nas relações sociais e econômicas transferiu-se para a economia de mercado, assim denominada pelos economistas franceses de: deixa fazer (laissez-faire), deixa passar (laissez-

passer), o mundo vai por si mesmo (le monde va de lui même)24. A resolução das práticas mundanas, como as controvérsias nascidas das relações de trabalho entre empregado e empregador, gerou, entre outros fatores, o aprofundamento da desigualdade entre as classes.

Embora se enfatizasse nos textos constitucionais o resguardo das liberdades individuais, eram as liberdades econômicas, e não as existenciais, que efetivamente eram protegidas pelos ordenamentos jurídicos.

As limitações às liberdades pessoais, inspiradas por propósitos moralistas de grupos culturalmente hegemônicos, proferiam o comportamento a ser seguido, reprimindo e oprimindo aqueles considerados diferentes.

Os discursos empreendidos pelos legisladores e tratados internacionais da dignidade do homem ! fundada na igualdade entre sujeitos ! eram, na verdade, uma falácia, pois, sob a égide do Estado liberal-burguês, a miséria e a exploração econômica dos mais fracos vicejavam.

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Laissez-faire, laissez-passer e le monde va de lui même significam: deixa fazer, deixa passar, o mundo vai por si mesmo, expressões utilizadas pelos economistas franceses e que traduzem o liberalismo-econômico, ocorrido a partir do século XVIII até início do século XX. Significavam um mínimo de interferência do Estado, apenas intervindo em litígios que extrapolassem os acordos firmados (BARROSO, 2012, p. 29).

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Relevantes foram as críticas levantadas pelas teorias discordantes desse modelo, oriundas das correntes socialistas e anarquistas, assim como da doutrina social da igreja. São determinantes para que o Estado assumisse novas posturas de intervenção e resguardo dos hipossuficientes, provenientes das relações sociais e econômicas.

No plano constitucional, as constituições passam a consagrar também direitos sociais e a relativizar as liberdades econômicas, bem como o direito de propriedade, que, em alguns textos constitucionais, passou a estar condicionado por uma função social. No âmbito do direito privado tornam-se cada vez mais frequente as restrições à autonomia individual, voltadas não só à tutela de interesses públicos, mas também à proteção dos mais débeis e dos direitos humanos em geral (SARMENTO, 2016, p. 48).

Sob essa bandeira, equivocadamente, muitos grupos tomaram o poder, respaldados pelas ideologias autocratas e despóticas, como foi o caso da Alemanha, de Hitler, e da Itália, de Mussolini. Tratava-se, na verdade, “não da adoção de nova leitura dos direitos fundamentais a partir de compreensão mais realista da pessoa, mas da total degeneração desses direitos” (SARMENTO, 2016, p. 49).

Esses episódios foram significativos para chamar a atenção da sociedade do desprezo, até então levada a efeito pelas instituições de poder às classes não hegemônicas. Assim também foi a conscientização do corpo social ao seu sujeito: cidadão real, corpóreo e singular, merecedor de todo o reconhecimento e respeitabilidade unicamente por ser homem.