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O contraponto entre a sociedade política e a sociedade civil

Mesmo com o surgimento do Estado como ente representativo do poder dos grupos determinantes politicamente, não houve eliminação total, no interior da sociedade, de sua potencialidade política. Constata-se o significativo papel que detêm os aparelhos ideológicos, representativos das várias camadas sociais, como entes garantidores da hegemonia da classe dominante sobre as demais, pela figura do Estado.

A partir de então, é preciso analisar duas concepções fundamentais para a interpretação do Estado e de seu papel em âmbito social, que, aparentemente, divergem na origem, mas se completam em sua designação: a do Estado governo e a do Estado sociedade.

Conforme os estudiosos Bastos (1998), Bonavides (2004) e Bobbio (2000), o Estado governo seria formado por todo aquele aparato burocrático e organizacional que estruturará o instrumento legal da governança. Sua função, ainda, é levar para o mundo concreto o mundo das interações sociais e políticas, o determinismo desse regime. A relação Estado sociedade surgirá no momento em que ocorrer uma interação efetiva entre a gestão desse governo e a sociedade, na condução da conduta a ser implementada e imposta à coletividade.

Apresenta-se o Estado governo como aquele ente com representação e constituição da Nação em dimensão política. Eventualmente, despontar-se-ão, na sociedade, agrupamentos societários que estarão fora do controle do Estado e até em caráter de oposição ao governo do Estado legitimado. Fundamentado em tais conjecturas, faz-se necessário analisar o papel da sociedade civil na legitimação das condutas impostas pelo Estado.

Esse estudo apresenta-se complexo porque, atualmente, se entende que a expressão sociedade civil traduz uma das grandes divisões e distensões das relações existentes entre o Estado e a sociedade política. A fim de melhor entender essa dicotomia, faz-se necessário buscar, nas raízes históricas, a designação dessa expressão societária.

Conforme esclarece Bobbio (1999, p. 45), foi Aristóteles, em sua obra A

Política, que utilizou a expressão pólis ou politikós, sinônimo de civilis de civitas, e definiu o termo cidade, “cujo caráter de comunidade independente e autossuficiente, ordena a base de uma constituição (politia), considerada ao longo dos séculos como a origem ou o precedente histórico do Estado”.

Na verdade, Aristóteles esclarece que o termo societas civilis é a consequência natural da sociedade familiar. Trata-se de uma sociedade natural que corresponderá à natureza social do homem, visto ele ser um ser politikon zon, um ser social que terá o Estado como prosseguimento natural da sociedade familiar (BOBBIO, 1999).

Sabemos que uma cidade é como uma associação, e que qualquer associação é formada tendo em vista algum bem: pois o homem luta apenas pelo que ele considera um bem. As sociedades todas elas, portanto, propõem-se algum lucro – especialmente a mais importante de todas, visto que pretende um bem mais elevado, que envolve as demais: a cidade ou sociedade política (ARISTÓTELES, 2007, p. 11).

Diversamente, para o Jusnaturalismo, cujos principais expoentes são Hobbes (1983), Locke (1983), Rousseau (2005) e Kant (2003), a sociedade civil se constitui mediante acordo dos indivíduos. Ao optarem por abdicar do estado de natureza, no qual eram hipoteticamente iguais e livres, constituirão uma sociedade artificial, sinônimo de Estado ou sociedade política, constrangendo-se em suas condutas a ditames externos e legais.

Já a sistemática hegeliana da sociedade civil faz uma análise complexa da relação dessa sociedade com o Estado, dividindo seus estudos em três acepções: o

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sistema das necessidades – em que se analisariam as relações econômicas ! da administração da justiça e da política.

Hegel (2005) parte de análises já consolidadas quanto à definição de família e Estado e procura definir seu ponto de vista fundamentado no estudo da doutrina do Estado, quanto à função judiciária e administrativa. Assim, justifica a existência da sociedade civil a partir de dois grandes momentos. No primeiro momento, a sociedade civil se formaria a partir da formação do Estado. Isso explicaria o nascimento do Estado para evidenciar a necessidade da criação de instrumentos jurídico-administrativo, necessários à regulamentação da convivência dos indivíduos em sociedade, tratando especificamente das relações externas. Já o Estado propriamente dito representaria o momento ético-político, fundamentado na adesão íntima do cidadão à totalidade das ideias propostas pelo Estado. Mais que “sucessão entre fase pré-estatal e fase estatal da eticidade, a distinção hegeliana entre sociedade civil e Estado representa a distinção entre um Estado inferior e um Estado superior e o poder administrativo” (BOBBIO, 1999, p. 42).

O Estado superior se caracteriza pela norma fundamental, a Constituição, e a consagração da separação das funções do Estado, representativas da presença do Estado nos vários segmentos sociais quanto à administração e governança, à atividade legiferante e jurisdicional. O Estado inferior atua especificamente a partir do poder judiciário e administrativo, dirimindo os conflitos e provendo as necessidades da coletividade na busca do bem-estar social.

Como se verifica, a teoria hegeliana (2005) dispõe que a sociedade civil e o Estado se confundem e se completam. Há de se realçar que, diferentemente da sociedade civil, o Estado tem representação política no âmbito externo, na medida em que só ele pode representar e relacionar-se com outros Estados em nível internacional, por possuir personalidade jurídica de direito público, tanto interna como externamente.

A interpretação de sociedade civil, a partir da teorização de Marx (1998), será fundamental para a compreensão hodierna do tema, pois, como salienta Bobbio (1999, p. 37), “o uso atual da expressão sociedade civil como indissolúvel ligado a Estado ou sistema político é de derivação marxiana”.

Marx ([1846],1998) começa seus estudos da sociedade civil a partir das análises teóricas de Hegel ([1820], 2005). Ele constata que as instituições jurídicas e políticas consagradas como definidoras da sociedade civil, na verdade,

fundamentaram-se nas relações materiais da existência, ou seja, das relações econômicas de subsistência.

Isso ocorre devido à definição de bloco histórico (GRAMSCI, 1999), que traduzirá a teorização central do marxismo: a relação entre estrutura e superestrutura, teoria e prática, entre forças materiais e ideológicas.

Conclui Marx, segundo Bobbio (1999), que:

[...] na medida em que Marx faz da sociedade civil o lugar das relações econômicas, ou melhor, das relações que constituem a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política, a sociedade civil passa a significar o conjunto das relações interindividuais que estão fora, ou antes, do Estado (BOBBIO, 1999, p. 38).

Essa noção é a partir da obra A Ideologia Alemã ([1846],1998), em que Marx interpreta a sociedade civil como aquele componente fundamental que integra um sistema ou modo de produção na definição de estrutura e superestrutura. Logo, apresenta a sociedade civil como a estrutura que revela as forças de produção.

A sociedade civil compreende o conjunto das relações materiais dos indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas. Compreende o conjunto da vida comercial e industrial de um estágio e ultrapassa, por isso mesmo, o Estado e a nação, embora deva, por outro lado, afirmar-se no interior como Estado (MARX, 1998, p. 33).

Já para Gramsci, sociedade civil seria “o conjunto dos organismos, vulgarmente ditos privados, que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade” (PORTELLI, 2002, p. 21). Neste sentido, Gramsci entende que a sociedade civil não pertenceria ao âmbito da estrutura, como entendia Marx, mas da superestrutura.

Ao localizar a sociedade civil ao lado da sociedade política no campo da superestrutura, estará ensejando sua articulação política e social. Isso acontece porque a sociedade civil não se consolida numa estrutura que possa deslocar, de modo unilateral, o domínio da superestrutura das ideias, mas, como superestrutura, possibilitará que se realize um conjunto de relações recíprocas, que devem ser debatidas e aprimoradas em um concreto desenvolvimento dialético-histórico.

Gramsci ainda esclarece que, no seio do bloco histórico (GRAMSCI, 1981), ambiente de articulação interna de uma situação histórica definida, estrutura e

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superestrutura hão de manter, ao mesmo tempo, uma relação orgânica e dicotômica, tornando a sociedade civil o campo próprio da luta de classes.

A estrutura e a superestrutura formam um ‘bloco histórico’, isto é, o conjunto complexo – contraditório e discordante – das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção. Disto decorre: só um sistema totalitário de ideologias reflete racionalmente a contradição da estrutura e representa a existência das condições objetivas para a inversão da práxis (GRAMSCI, 1981, p. 52).

Apresenta-se o estudo das relações entre estrutura e superestrutura essenciais à noção do significado do bloco histórico, entendendo que não há primazia de um ou outro elemento desse bloco. Isso possibilita a discussão desses arranjos no campo dos debates e das divergências, a partir da relação orgânica que ocorrerá entre a estrutura e a superestrutura.

Abre-se, a partir dessas noções, o campo para negar que os esforços políticos advindos dos grupos sociais ocorrem unicamente pelas mudanças materiais e econômicas fundamentadas exclusivamente na estrutura, posto que os elementos superestruturais que compõem as relações ideológicas culturais, a exemplo da sociedade civil, também possam favorecer eventuais alterações estruturais.

Para Gramsci, “o ponto essencial das relações estruturas-superestruturas reside, na realidade, no estudo do vínculo que realiza sua unidade”, de modo a qualificar “tal vinculo de orgânico” (PORTELLI, 2002, p. 14).

Esse vínculo orgânico, que amarra a superestrutura e a estrutura, justificaria o processo dialético das trocas entre esses dois entes, pois, “na medida em que os movimentos superestruturais respondam a essas condições orgânicas, será o

reflexo da estrutura e formarão com ela um bloco histórico” (PORTELLI, 2002, p. 56). Estando a sociedade civil na superestrutura, elemento motor do bloco histórico, possibilitar-se-ia reconhecer as condições materiais de sua ação e, a partir de tal consciência, mudar e transformar suas relações ético-políticas.

Como se verifica, a superestrutura tem um papel de igual importância à estrutura, não estando acima desta, pois ambas se complementam num processo dialético.

O momento estrutural se apresenta como a base em que se forma a superestrutura, refletindo, no primeiro momento, apenas seu reflexo. Pelo amadurecimento posterior, advindo da conscientização de tais representações ético-

morais nas relações humanas, desenvolve-se a consciência de classe dos grupos sociais, tornando-se a estrutura instrumento da atividade da superestrutura, por meio de um processo dialético constante de trocas.

A teorização de Gramsci é significativa para a definição de sociedade civil, à medida que labuta sua contextualização enfeixada na superestrutura, a partir da subsunção ao bloco histórico, fundamentado na argumentação e organicidade.

A partir do estudo da sociedade civil, contrapondo o Estado, nota-se claramente que esses dois entes, mesmo atuando em momentos diferentes e representando papéis aparentemente divergentes, se completam.

No entanto, só a sociedade civil é capaz de questionar o poder dos grupos hegemônicos representativos e justificadores do determinismo do Estado na exigibilidade da conduta social, dentro do bloco histórico. Como Gramsci deixou claro, essa mesma sociedade civil poderia, por meio de todo um processo dialético, rever e questionar as formas de aplicação e condução das condutas sociais na superestrutura, alicerçadas pelas classes sociais, e recriar um novo bloco histórico.