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A dignidade da pessoa humana sob a perspectiva antropocêntrica do direito

2.6 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2.6.1 A dignidade da pessoa humana sob a perspectiva antropocêntrica do direito

A toda evidência, a Constituição Federal de 1988 procurou construir, como o fez a

Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, o início da ordenação constitucional

19 “No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. [...]. Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Portanto, a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade” (KANT, 2005, p. 77-78).

pela referência aos direitos humanos, mediante a técnica jurídica de restrição do poder do

Estado e de declaração de inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, a qual passou a ter,

conforme destaca Fiorillo (2009, p. 14), “excepcional relevo em face da interpretação do

direito constitucional em nosso País e, por via de consequência, de todo e qualquer subsistema

jurídico dele derivado”.

Perfilha o texto constitucional, assim, a concepção de que a dignidade nasce com a

pessoa, lhe é conatural, inerente a sua essência, ou seja, o ser humano é digno porque é

(NUNES, 2009, p. 51).

Nesse contexto, mostra-se importante a transcrição das conclusões de Fiorillo (2009,

p. 15):

Daí duas conclusões importantes: 1) a pessoa humana passa a ser a verdadeira razão de ser de todo o sistema de direito positivo em nosso país e evidentemente do direito ambiental brasileiro; 2) a importância da pessoa humana se reafirma, no plano normativo e particularmente perante o direito ambiental brasileiro, em face de restar assegurada no plano constitucional sua dignidade como mais importante fundamento da República Federativa do Brasil, constituída que foi em Estado Democrático de Direito, a saber, uma vida com dignidade reclama desde logo a satisfação dos valores mínimos fundamentais descritos no âmbito de nossa Carta Magna no art. 6° (direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à proteção à infância, assim como à assistência aos desamparados), verdadeiro piso vital mínimo a ser assegurado pelo Estado Democrático de Direito.

Vale ressaltar o constante no Princípio n. 1 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o

Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992:

Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.

Concebe-se, portanto, uma argumentação antropocêntrica do Direito Ambiental do

Trabalho na perspectiva do Direito Constitucional, na medida em que o destinatário final do

Direito Ambiental é a pessoa humana, ainda que a tutela abarque toda e qualquer vida,

porquanto, como registram Brandão, Mendonça e Menezes (2007, p. 146), “a natureza sempre

propiciou a subsistência humana”.

Segundo Fiorillo (2010, p. 67), “o direito ambiental possui uma necessária visão

antropocêntrica, porquanto o único animal racional é o homem, cabendo a este a preservação

das espécies, incluindo a sua própria”, estando o meio ambiente voltado para a satisfação das

necessidades humanas.

Nesse sentido, transcreve-se valioso trecho de Derani (2008, p. 52-53):

Em resumo, um ponto em comum de onde parte toda sociedade contemporânea seria o seguinte: natureza é recurso (matéria a ser apropriada) natural, e o homem, sujeito apartado do objeto a ser apropriado, não é mais natureza. Sujeito e objeto vivem dois mundos: mundo social e mundo natural. Meio ambiente seria toda a

entourage deste solitário sujeito. Não somente a natureza „bruta‟ em sua forma primitiva é meio ambiente, porém todo o momento de transformação do recurso natural, ou seja, todo movimento deste objeto que circunda o homem, quem sobre ele age com seu poder, querer e saber, construindo o meio ambiente. Meio ambiente é um conceito que deriva do homem e a ele está ligado, porém o homem não o integra. O fato de o homem não constituir o conceito de meio ambiente não significa que este conceito seja menos antropocêntrico, muito pelo contrário, ele mostra exatamente o poder de subordinação e dominação do „mundo exterior‟ objeto de ação do „eu ativo‟. Isto significa que o tratamento legal destinado ao meio ambiente permanece necessariamente numa visão antropocêntrica, porque essa visão está no cerne do conceito de meio ambiente.

Dessa forma, a vida que não seja humana só poderá ser tutelada pelo direito

ambiental na medida em que sua existência implique garantia da sadia qualidade de vida do

homem, “uma vez que numa sociedade organizada este é o destinatário de toda e qualquer

norma” (FIORILLO, 2010, p. 66).

Ao propor uma reinterpretação do conceito da dignidade humana e da visão

antropocêntrica do Direito Ambiental, escreve Cavalcante (2007, p. 136-137):

Dessa feita, considerando a flagrante realidade atual da humanidade que, apesar do grande desenvolvimento tecnológico e científico, produz, inspirada nas regras neoliberais, imensa desigualdade social, concentração de renda, violência e pobreza de todos os níveis e, o que é mais sério, a acelerada e degradante destruição do meio ambiente como um todo, pondo em risco, assim, a existência futura do próprio homem ou até mesmo de qualquer outra espécie de vida. Em suma, tendo em vista toda essa realidade de autodestruição humana e da natureza, procura-se mostrar que a idéia da dignidade humana deve estar necessariamente relacionada à noção de respeito à existência em todas as suas formas. Somente assim é possível a garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, digno de proporcionar uma sadia qualidade de vida ao ser humano.

Para Melo (2008, p. 48), acaso adotada visão filosófica diferente – ecocentrismo –

como linha mestra do Direito Ambiental, tornar-se-ia “insólito e infértil o estudo, ainda que

meramente didático, do meio ambiente do trabalho”, na medida em que, no meio ambiente do

trabalho, “os interesses do homem (trabalhador) prevalecem sobre o ecológico e o

econômico”.

À parte de reconhecer que o ser humano é contraditório, ambíguo, instável e

dinâmico, declara Cotrim (2006, p. 13):

[...]. Um produto da natureza e da cultura e, ao mesmo tempo, um transformador da natureza e da cultura. Criatura e criador do mundo em que vive. Um ser capaz de, em muitos aspectos, dominar a natureza mesmo fazendo parte dela. [...].

No mesmo sentido é o entendimento de Sady (2000, p. 16):

[...] podemos vislumbrar que o bem jurídico sob proteção é um conjunto de interações entre natureza e atividade humana, gerando uma sadia qualidade de vida para as pessoas em geral. A preservação desse bem jurídico é o objeto das normas que estruturam o direito ambiental.

Ao delinear a ideia de desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas,

difundida pelo art. 225 e incisos da Constituição Federal de 1988, destaca Melo (2001, p.

36-37) “a necessidade de interação do homem com o mundo natural”, no sentido de que “num

dado ecossistema, não se perca de vista que o ser humano ali radicado tem tanto direito à vida

quanto a fauna e flora ali ocorrentes”, ou seja, “a necessária defesa do Tamanduá -Bandeira

ou do Mogno em determinada região do país, deve ser gerenciada de modo a que haja igual

preocupação com o homem ali vivente”.

Santos (2010, p. 29-30), sob a perspectiva antropocêntrica do Direito Ambiental,

conceitua meio ambiente como sendo “o processo interacional que influencia e condiciona as

formas de vida na terra, tendo o homem como agente pró-ativo, cuja conduta pode significar o

equilíbrio ou não do conjunto de seres abrigados no espaço-meio-comum”.

Acrescenta (2010, p. 30-31):

Meio ambiente é a condição de produção da existência humana, condicionada pela relação com os elementos naturais, bióticos, do globo terrestre, em vista da preservação do ser humano, que por ter consciência, é o único que pode se propor a relação de cuidado com o todo. Não há como se romper, nessa linha de raciocínio, com essa visão antropocêntrica, se o direito está envolvido no estudo interdisciplinar do meio ambiente. O direito é um fenômeno humano, implicando necessariamente o fator pensamento voltado para um comportamento desejável. O Direito se dirige a padrões de comportamento que não se pode exigir dos seres vivos não humanos. Não é possível prescrever à onça a proibição de comer a tartaruga. Ou de que não pode caçar em certo território, ou seja, não há como reconhecer direitos próprios da natureza, independentemente da utilidade ou valor que tenha para o ser humano. Primeiro, porque não se pode prescrever condutas as outras formas de vida ou aos elementos não bióticos, como exemplificado anteriormente. Nem estes podem exigir que as normas de proteção sejam respeitadas. As regras de direito podem ser sobre condutas referentes a coisas e animais a cargo do homem, não porque tenham direitos, mas sim porque interessam à qualidade de vida humana, seja patrimonial (pelo uso sustentável e sustentado), ou moral (a vida humana tem um sentido, que se encontra entre outros valores, na beleza). Pode inclusive haver lei preservando o respeito de certa forma de vida, mas isso não significa que tenha direito. Não é a destinatária real da proteção porque ao final o que se assegura é que o homem desfrute do meio ambiente ecologicamente equilibrado. É certo que o homem é parte da natureza, mas não é passivo. É ativo. E é esse ser ativo, pensante que evolui do papel de subjugador da natureza para

buscar a harmonização entre todos os componentes da real idade natural, onde desempenhará o papel de consciência e liberdade. Ao assegurar proteção a uma espécie animal, a certa paisagem, ou a outro bem ambiental, o que se busca sempre é tornar efetivo o direito do próprio homem a ter qualidade de vida.

Nessa linha de reflexão tem-se que inexistindo permissão de fragmentação e de

interpretação reducionista da norma encartada no art. 225, § 3°, da Constituição Federal de

1988 e considerada a espécie humana como integrante da concepção do meio ambiente –

antropocentrismo – e, via de consequência, da pessoa humana do trabalhador como integrante

do meio ambiente do trabalho, como de fato se concebe, pode-se declarar que a citada norma

constitucional (art. 225, § 3°, CF/88) aplica-se aos casos de acidentes de trabalho típicos, quer

sejam de efeitos individuais, quer sejam de efeitos coletivos, concebendo-se, assim, a

dignidade da pessoa humana sob o ângulo antropocêntrico do direito constitucional ambiental.

Assim, a norma inserta na parte final do art. 7°, inc. XXVIII, da Constituição

Federal de 1988, numa interpretação sistêmica, aplicar-se-ia apenas aos casos de acidentes de

trabalho atípicos, sendo neste caso subjetiva a responsabilidade civil do agente.

Nessa linha de raciocínio, declara doutrina pátria que o art. 225, § 3°, da

Constituição Federal de 1988 “permite a interpretação de que os danos causados pelo

empregador ao meio ambiente do trabalho, logicamente abrangendo os empregados, devem

ser ressarcidos independentemente da existência da culpa, ainda mais que o art. 200, VIII, da

mesma Constituição expressamente inclui o local de trabalho no conceito de meio ambiente”

(OLIVEIRA, 2002, p. 252).

É certo, por outro lado, que a atividade normativa inerente ao meio ambiente, tendo

por finalidade a proteção, preservação e recuperação, não se confunde com o objeto de outros

ramos do Direito (CAVALCANTE FILHO, 2011, p. 1).

Derani (2008, p. 65-68), ao qualificar referido movimento do Direito Ambiental

como transversal, afirma:

A potencialidade de efeitos que as normas de direito ambiental carregam faz deste direito não puramente um ramo do direito, mas uma classificação de normas que intencionam uma organização do meio como local (ambiente) e meios como instrumento – recurso natural e ambiental. A identificação entre estas normas está no seu objetivo final: assegurar a proteção do meio ambiente. Por seu caráter teleológico, podem-se ter normas de direito ambiental que são direcionadoras de regras originariamente pertencentes a determinados outros ramos do direito. Este é o movimento do direito ambiental, direito transversal.

Ao laborar estudo sobre a temática da proteção do meio ambiente sob o enfoque do

antropocentrismo, assevera Santos (2007, p. 68-69):

Com efeito, o destinatário final do Direito é sempre o ser Humano, mesmo que a tutela aparentemente abranja toda e qualquer vida, mesmo o planeta terra. O argumento é silogístico: todo direito visa satisfazer os interesses humanos. Ora, o direito não pode por si mesmo estabelecer quais são esses interesses. Como quem os estabelece é o ser humano (aqui compreendido como animal racional relacional), logo o direito nada significa sem a mediação humana. Ou ainda: só há direito se humanamente estabelecido. Então, sempre o destinatário final do direito será o ser humano, porque razão última da existência da norma jurídica. O próprio direito ambiental tem necessária visão antropocêntrica, porque a proteção da vida em todas as suas formas visa a satisfação das necessidades humanas (desde as básicas, como alimentação e moradia, como de auto-transcendência, como a arte). Dessa forma, a vida que não seja humana só poderá ser tutelada pelo direito ambiental na medida em que sua existência implique garantia da sadia qualidade de vida do homem, uma vez que numa sociedade organizada este é o destinatário de toda e qualquer norma. Ora, se o destinatário final do direito é o ser humano, e este passa grande parte de sua vida exposto no habitat laboral, segue-se que a proteção do meio ambiente do trabalho efetiva mais e melhor os objetivos do cuidado jurídico do próprio meio ambiente considerado na sua unidade. Desconsiderar o meio ambiente do trabalho é deixar de lado a finalidade da proteção ambiental que é a vida e a satisfação humana.

Não se propõe uma revisitação à temática dos direitos da natureza, mas àquela

inerente aos “direitos e interesses de cada membro da sociedade em assegurar a qualidade de

vida, desde as condições necessárias à sobrevivência ao padrão de vida decente” (FUKS,

2001, p. 74). Em palavras outras, ao trabalho decente, seguro e sadio.