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A dimensão de Gênero na ótica das Participantes

6 – Compreendendo processos de significação e geração de sentidos sobre Envelhecimento e Bem-Estar

6.3. Compreendendo os processos de significação e geração de sentidos – enfatizando eixos temáticos específicos

6.3.2. A dimensão de Gênero na ótica das Participantes

Nestes relatos, as participantes demonstraram possuir percepção acurada e ampla compreensão da realidade, ao apontarem com clareza a hierarquia e as desigualdades que caracterizam as relações de gênero, na sociedade atual.

Todas afirmam que os homens e as mulheres envelhecem de forma diferente. No entanto, discordam em alguns aspectos e nuanças: Para Artêmis, as mulheres envelhecem mais do que os homens em função de serem elas a terem os filhos, “as mulheres têm uma vida mais corrida, é aquela correria” – numa possível alusão ao fato de criarem os filhos praticamente sozinhas, com pouca ou nenhuma participação dos maridos. E conclui: “a gente vê as mulheres envelhecidas e os homens novos, tranqüilos mesmo”.

Atenas já pensa diferente: para ela é o homem quem aparenta envelhecer mais depressa, devido ao fato dele não se cuidar, ser “mais simples”; já a mulher, se cuida: “a gente usa uma camisinha (blusa), bota uma pintura, pinta o cabelo, ajeita, procura andar assim mais ou menos na moda... e o homem...”. Também para Afrodite, “o velho tem o seu jeito de envelhecer e a velhinha tem outro”, embora não saiba apontar a diferença.

Com relação às formas de encarar o envelhecimento em função do gênero, observou-se alguma dificuldade por parte das entrevistadas em falar a respeito do envelhecimento masculino, e a conclusão que apresentavam era sempre espelhada na vivência que haviam tido com seus respectivos maridos. À exceção de Artêmis, que chega a ironizar a insegurança e a preocupação dos homens idosos em relação ao próprio desempenho sexual:

“Eu gosto mais da cabeça da mulher. O homem... ele pensa que ele envelhece mais, ele pensa que às vezes eles não estão sendo mais homens, né (risos). E as mulheres... não tem idade para a mulher, né? Eu acho que os homens às vezes têm problemas, ficam ainda querendo ser homens... eles têm uma decaída medonha, não sei com todos. E a

mulher, não; não tem idade para a mulher. A mulher é mulher a vida toda!”

(ARTÊMIS, 78).

Esta reação dos homens idosos resgatada por Artêmis não é de todo infundada: primeiramente, diz respeito a algumas mudanças sutis que os homens percebem em seu desempenho sexual, à medida que envelhecem; e, segundo, está relacionada ao estereótipo negativo reforçado culturalmente pela mídia e, inclusive, pela medicina, que associa a sexualidade do idoso à impotência e debilidade (Butler & Lewis, 1985).

Daí não serem propriamente incomuns por parte dos homens mais velhos reações de superioridade e de supervalorização do próprio desempenho sexual, ou de rivalidade e rechaço em relação àqueles mais jovens – na realidade um comportamento defensivo que tenta preservar o autoconceito e mascarar um sentimento de insegurança possivelmente presente. Tornar-se pai numa idade mais avançada ou casar-se com mulheres bem mais jovens – eventos que são alardeados e reforçados culturalmente em nossa sociedade como sinônimo de potência e virilidade masculinas – exemplificam bem essa questão.

Ao contrário da mulher idosa, que tem na interrupção da menstruação (menopausa) um indicador claro do término de sua função reprodutiva, os sinais do climatério masculino são mais sutis, uma vez que, no homem, a diminuição do hormônio masculino – a testosterona – acontece em ritmo gradual à medida que se vai envelhecendo.

A diminuição da testosterona geralmente se faz acompanhar de algumas alterações na resposta sexual do homem, relacionadas com o amadurecimento biológico: há mudanças na quantidade, na qualidade e na duração das ereções; a redução no volume do líquido seminal resulta numa diminuição da necessidade de ejacular, interferindo, conseqüentemente, na freqüência das relações sexuais. Apesar das contrações serem menos fortes, a capacidade para sentir orgasmo mantêm-se preservada. No entanto, a produção de esperma, que diz respeito à

fertilidade masculina, geralmente termina por volta dos 70 anos, havendo, entretanto, variações individuais (Butler & Lewis, 1985).

Portanto, os homens não perdem, com o avançar da idade, suas capacidades de terem ereções, ejaculações e orgasmo. A impotência – que é a perda da capacidade masculina para conseguir uma ereção suficiente para garantir a relação sexual – não faz parte do processo de envelhecimento normal. Quando isto ocorre, é preciso que se investigue as causas – podem ser decorrentes de alguns tipos de doença (problemas na próstata, por exemplo), efeitos colaterais de certos medicamentos ou de origem psicológica.

Como se pode observar, existem alterações na atividade sexual masculina à medida que se envelhece. No entanto, o desconhecimento, a deturpação de informações e os mitos existentes sobre o assunto causam alarme e potencializam um profundo sentimento de medo e de inadequação por parte do homem mais velho. É preciso reconhecer que todas essas mudanças são mediadas pelas condições de saúde física e emocional, pelas histórias de vida e pela variabilidade individual inerente à sexualidade de cada pessoa – ou seja, não existe um padrão ideal de atividade sexual, generalizado para todos.

Já no caso das mulheres de mais idade, estas sofrem pouca degeneração em sua capacidade sexual quando ultrapassam a idade madura. As dificuldades sexuais relatadas – falta de lubrificação, dor na hora da relação ou irritação provenientes de mudanças na estrutura das paredes da vagina (afinamento) e enfraquecimento do desejo sexual – decorrem mais da diminuição dos hormônios femininos (estrogênio, principalmente), o que acontece a partir da menopausa, do que propriamente do envelhecimento (Butler & Lewis, 1985). No entanto, desde que ela tenha condições de saúde física e emocional satisfatórias, nenhum desses fatores interferirá em sua capacidade de ter orgasmo, até uma idade bem avançada.

Conforme já comentado anteriormente nesta pesquisa, ter desejos e fantasias sexuais não é prerrogativa apenas de corpos jovens – a criatividade nas expressões de afeto, a necessidade de carícias e o desejo de seduzir e de ser seduzido estão presentes na velhice como em qualquer outra etapa da vida (Souza dos Santos, 2003), já que o ser humano é um ser de desejo. É preciso, apenas, que a sociedade se dispa de seus preconceitos e de sua intolerância, e enxergue a sexualidade dos idosos com a naturalidade merecida.

Vivenciar a sexualidade, por outro lado, não diz respeito apenas à relação genital – expressar carinho, tocar e ser tocado ou o sentimento de aconchego proporcionado por estar junto de quem se gosta são simples prazeres que, igualmente, trazem gratificação afetiva ao ser humano. Afrodite nos ensinou isto, ao longo de suas entrevistas.

Contudo, as desiguais relações de gênero vigentes na sociedade são destacadas pelas participantes, particularmente por Artêmis, que ressalta alguns pontos importantes: a supremacia masculina em relação à mulher, a desigualdade na divisão social do trabalho e o duplo padrão moral vigente na sociedade, que tanto penalizou – e penaliza - as mulheres idosas da atualidade:

“É o homem, né, que desfruta mais a vida, não? Porque o homem sai, tem mais chance de sair, andar por todo canto, fazem o que eles gostam mesmo, o que tem direito, e a mulher sempre fica mais em casa...” (ARTÊMIS, 78).

Esta observação de Artêmis é mais do que pertinente, conforme já analisado em outro momento desta pesquisa. Ao longo dos séculos, a história tem registrado e “naturalizado”, relações hierárquicas de subordinação e exploração das mulheres de formas variadas e em diferentes contextos e sociedades. Na divisão social do trabalho que estabelece, até hoje, domínios e áreas de poder diferentes para os dois sexos, reside a origem da subordinação feminina. Por muito tempo, coube a elas, exclusivamente, o domínio da esfera doméstica: cuidados com a casa, o marido e os filhos. A eles, o domínio da esfera pública, da política, das

artes, do trabalho remunerado (e valorizado). É esta dualidade antagônica que está na base da estruturação dos papéis sexuais e que legitima, até hoje, a relação desigual entre homens e mulheres.

Assim, as mulheres idosas de hoje, especialmente, cresceram obedientes ao jugo paterno; casaram e – de acordo com o ideal patriarcal de feminilidade – viveram à sombra de seus maridos, respeitando-lhes, obedecendo-lhes e sendo-lhes incondicionalmente fiéis. E sempre dentro de casa. Afinal - elas aprenderam - o seu “reino” era o lar.

Fica evidenciada nas falas de Artêmis uma visão crítica avançada e pouco comum em mulheres de sua idade a respeito das questões de gênero no contexto local. Por exemplo, em sua opinião, os homens pensam ter mais direitos do que as mulheres, mas deveria haver uma igualdade: “um casal não pode ser um mais do que o outro, tem que ser uma igualdade, combinar tudo, dividir as tarefas da casa... mas muitos não quer, não aceita”. E, ao referir-se à velhice, é como se creditasse às mulheres um maior discernimento e aceitação em viver essa fase da vida, já que...

“... na velhice, o ponto de parada de um homem é em frente a um bar. E as mulheres, não, as mulheres vão à festa, vão à missa, vão às reuniões... procuram sair mais do que os homens, e os homens ficam nos bares, bebendo...” (ARTÊMIS, 78).

Não parece infundado o comentário de que, na velhice, as mulheres tornam-se mais ativas do que os homens. A este movimento de saída para o mundo externo à casa, através de maciça participação em programas, clubes, centros de conivência, universidades da terceira idade, movimentos religiosos, viagens e confraternizações sociais de diversa ordem – Britto da Motta (1998) denominou de “liberdade de gênero”. O que acontece: sentindo-se livres das obrigações familiares – os filhos já estão casados e elas, em sua grande maioria, estão viúvas – as mulheres idosas que desfrutam de boa saúde e de uma condição social satisfatória tendem a

procurar espaços públicos onde podem exercitar – muitas vezes pela primeira vez – sua tão desejada e igualmente reprimida (grifo nosso) autonomia e independência (Neri, 2001a).

À queixa de Artêmis de que o lazer dos homens mais velhos restringe-se aos bares soma-se à de Atenas, ao destacar as diferenças de gênero. Para esta participante, os homens tendem a ficar parados, em casa, sem ocupação:

“...a mulher tem mais condições assim de fazer trabalhos manuais, alguma coisa do lar... é melhor do que a pessoa estar parado (...) E o homem já não tem essa atividade assim, quer dizer, o homem quando sai do emprego fica só dentro de casa: não vai lavar, não vai engomar, não vai cozinhar, não vai fazer crochê! (...) aí ficam encostados, parados numa cadeira, acho que envelhecem mais depressa; então para a mulher fica melhor por causa das atividades, das responsabilidades do lar, dessas coisas” (ATENAS, 85).

Assim, não tendo o domínio do espaço doméstico socialmente destinado às mulheres – principalmente se participava pouco do cotidiano das atividades familiares - os homens idosos têm procurado ocupar seu tempo livre com outros tipos de programas e em outros espaços, tais como bares, jogos etc. Em decorrência disso, casos de alcoolismo masculino e conflitos domésticos têm sido observados com uma certa freqüência, após a aposentadoria (Frias, 1999; Pacheco, 2004).

Relatos e queixas como as de Artêmis e Atenas encontram ressonância em inúmeros relatos de mulheres idosas obtidos em grupos de convivência. Assim, no Projeto Saúde e Cidadania na Terceira Idade (CEFET-RN) – do qual são alunas Artêmis e Afrodite e onde sou facilitadora de um grupo formado em sua imensa maioria por mulheres - é com um misto de mágoa e ressentimento que elas se perguntam: “Onde estão os homens velhos, por que não estão aqui conosco?” – referindo-se à inexpressiva participação dos homens idosos nos grupos de terceira idade, fato, inclusive, confirmado pela literatura (Cachioni, 1999; Neri, 2001a; Britto da Motta, 2003). Esta forma diferenciada de perceber e vivenciar a velhice em função do gênero é,

sem dúvida, tema de extrema importância e que merece ser melhor analisado pelos pesquisadores do envelhecimento.

Por hora, como forma de clarificar um pouco essa questão, é importante resgatar o papel desempenhado pela aposentadoria na determinação do uso desse tempo livre por parte dos idosos. Sendo um evento normativo que teoricamente proporciona às pessoas o usufruto do ócio após anos de trabalho - mas que é visto pela sociedade como um dos principais “ritos de passagem” para a velhice (Pacheco, 2004) – a aposentadoria e o tempo que sobrevém a ela têm significados diferentes e são vividos de maneira igualmente diversa pelos idosos dos dois sexos.

Devido a questões culturais já comentadas anteriormente no Capítulo 2, o trabalho constitui mais fortemente a identidade masculina – já a identidade feminina é consubstanciada na família. Tanto que grande parte das mulheres velhas da atualidade nunca trabalhou (Britto da Motta, 2003; Pacheco, 2004; Tavares, Neri & Cupertino, 2004), o que faz com que a vivência da pós-aposentadoria termine sendo uma experiência bem menos traumática para o segmento feminino idoso do que para o segmento masculino. Aquelas mulheres que trabalharam, após a aposentadoria retornam ao controle dos afazeres da vida doméstica – um espaço, aliás, que nunca deixou de lhes pertencer. Este posto proporciona às mulheres idosas sentimentos de vitalidade, autonomia e autocompetência (Britto da Motta, 2003; Pacheco, 2004). Já os homens, ao se aposentarem (e, em menor número, também as mulheres), precisam ajustar-se a várias perdas: o desengajamento do mundo do trabalho e com ele toda uma rotina de vida estruturada, relações de amizade e interações sociais; diminuição da renda familiar, perda de status e de poder, dentre outros. Se a aposentadoria não tiver sido bem planejada em termos de projetos futuros, a vida sem o trabalho pode dar lugar a sentimentos de vazio e inutilidade, solidão e isolamento.