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Concepções teóricas sobre o desenvolvimento humano

2 Velhice, fenômeno do nosso tempo

2.3. Concepções teóricas sobre o desenvolvimento humano

É freqüente as pessoas se remeterem à metáfora do desenvolvimento das plantas e árvores para tentar explicar a trajetória do próprio desenvolvimento humano: nascimento,

culminância e declínio. E assim, a exemplo das árvores frutíferas, depois de cumprida sua missão de perpetuar a espécie, o organismo envelhece e morre.

Esta é uma metáfora clássica da qual a Psicologia do Desenvolvimento tradicionalmente se utiliza, para explicar as mudanças psicomotoras, cognitivas, afetivas e sociais pelas quais passa o ser humano ao longo de seu ciclo vital.

Etimologicamente, a palavra desenvolvimento significa “desdobrar de dentro para fora, assumindo uma nova forma” (Neri, 2001b, p.26). Foi, portanto, da Embriologia que a Psicologia do Desenvolvimento tomou emprestada a noção de que “todas as estruturas já estão potencialmente presentes no embrião, e que sua manifestação segue uma seqüência ordenada e previsível, graças à maturação” (p.26). Trata-se da perspectiva maturacionista, a qual influenciou toda a psicologia da criança e do adolescente durante a primeira metade do século XX.

De acordo com esta perspectiva, o desenvolvimento cessava após a adolescência, tendo seu ápice na vida adulta. Daí em diante, ou seja, nos anos da maturidade e da velhice, só haveria espaço para declínio e degeneração. Este fato mostra claramente uma visão reducionista da vida apenas à sua dimensão orgânica-fisiológica, justificando a tardia inclusão do envelhecimento como área de interesse nos estudos sobre desenvolvimento. Goldstein (1999) corrobora com essa análise, ao afirmar que a pesquisa sobre a velhice e o envelhecimento, por mais que procurasse se tornar multifacetada, “continuou investindo e fortalecendo pressupostos estabelecidos desde o século XIX, que diziam respeito à estagnação do desenvolvimento nesse período e ao caráter involutivo da velhice” (p.1).

O problema reside em que o desenvolvimento e a expansão da Psicologia sempre foram pautados pela influência do modelo positivista de ciência, o qual tenta estabelecer leis gerais de compreensão e predição dos fenômenos naturais, sempre rejeitando explicações não passíveis de verificação empírica (Neri, 1995). Assim, de acordo com a lógica positivista, o desenvolvimento

humano, as diferenças individuais e, conseqüentemente, o envelhecimento, passaram a ser indicados como assuntos potencialmente “verificáveis” cientificamente.

Pode-se dizer, no entanto, que as Teorias do Desenvolvimento têm uma base comum: todas compartilham do mesmo ancestral, qual seja, a teoria de Darwin, que mudou o curso das ciências naturais (Neri, 1995). No entanto, ao se analisar as teorias do desenvolvimento quanto à maneira como consideram a natureza das mudanças evolutivas, encontram-se quatro concepções correntes: estabilidade, mudança ordenada, contextualista e flexível ou dialética (Baltes, Reese & Lipsitt, 1980; Lerner, 1983, apud Neri, 1995), a saber:

Segundo a concepção de estabilidade, à qual se vincula a Teoria de Traços, os padrões de diferenças individuais mantêm-se constantes ao longo do tempo. Já para a concepção de

mudança ordenada, exemplificada pelas teorias de Piaget, Freud, Bühler, Jung, Erikson, dentre

outros, o desenvolvimento acontece obedecendo a padrões ordenados de mudança ao longo do tempo. Esses padrões teriam caráter universal, ou seja, valeriam para todos os seres humanos, indissociados dos fatores histórico-culturais. Para Neri (1995), a Teoria Epigenética de Erikson, mesmo vindo da tradição organicista da Psicanálise e tendo ampliado a concepção de estágios da teoria freudiana, considera as influências culturais na resolução das crises psicossociais do desenvolvimento da personalidade e pode ser vista como precursora dos modelos dialéticos de curso de vida.

No caso da concepção contextualista, o indivíduo e o ambiente social são vistos como em interação e mutuamente influentes. Ou seja, o desenvolvimento nada mais é do que um processo de adaptação que se estende por toda a vida, numa inter-relação entre os processos internos do indivíduo e o contexto sócio-histórico. Finalmente, a concepção flexível ou dialética considera o desenvolvimento como produto da interação entre eventos normativos e não- normativos. Os primeiros são de natureza ontogenética e podem ser graduados por idade ou por

história. Os eventos não-normativos são aqueles cuja ocorrência não pode ser prevista para a mesma época da vida, nem com a mesma intensidade e duração para a maioria dos indivíduos, ou seja, sua ocorrência é idiossincrática. Como exemplo, pode-se citar: divórcio dos pais, guerras, doenças, acidentes, etc. (Neri, 1995). Esta concepção dialética coincide com a perspectiva life-

span ou de curso de vida – a qual entende que os cursos de vida resultam da interação dialética

entre os sistemas de gradação por idade, contexto histórico e eventos não-normativos -, e igualmente com os princípios da Rede de Significação, que compreende o envelhecimento a partir de uma perspectiva dialética, interacionista e relacional. Portanto, explicar-se-á, inicialmente, os princípios teóricos-epistemológicos da Rede de Significações, e, em seguida, da Perspectiva do Curso de Vida (Life-Span).

A RedSig é composta de um coletivo de pesquisadores brasileiros que, baseados no pensamento de autores sócio-históricos como Lev Vygotsky, Henri Wallon e Mikhail Bakhtin, apresenta uma visão dialética, discursiva e interacionista do desenvolvimento humano: “Nos processos de desenvolvimento humano, no constante devir das situações, a cada momento há ocorrência de novos eventos, reconfigurando-se a rede de significações, com novos papéis ou posições sendo atribuídos/assumidos pelas pessoas em interação” (Rosseti-Ferreira, 2004, p.17).

De acordo com essa perspectiva, os campos de interação ocupam lugar de destaque e são considerados fundantes no processo de desenvolvimento humano, já que o ser humano é dialógico por natureza, desde a sua concepção: dentre todas as espécies, o bebê humano é aquele que nasce mais despreparado para sobreviver sozinho, sendo vital a relação com alguém – um outro – que desempenhe o papel de “cuidador”.

No cerne dessa relação, é esse “outro social” quem vai inserir a criança em contextos e posições sociais distintos, mediando sua relação com o mundo. No início, esse outro é geralmente a mãe e/ou o pai; aos poucos, porém, vão aparecendo vários “outros”, como por

exemplo, avós, tios, padrastos, irmãos, vizinhos, professores, etc. Por meio de suas interações com a criança, esses vários outros vão favorecer ou dificultar o aparecimento de certas condições para o desenvolvimento da criança.

Para Rossetti-Ferreira et al (2004), as relações sociais que se estabelecem então entre a criança e o mundo devem ser consideradas fundantes não só nos primeiros anos de vida, mas sim ao longo de toda a existência, “mantendo-se continuamente como arena e motor do processo de desenvolvimento” (p.24). Essas relações, desde o início da vida, são construídas a partir de ações interdependentes que se estabelecem sempre através de processos dialógicos. Nessas “inter-ações”, as pessoas desempenham múltiplos papéis e posicionamentos, os quais são apreendidos e transformados, de forma compartilhada pelas pessoas, em contextos variados, durante todo o seu desenvolvimento.

De acordo com essa perspectiva interacional, as características das pessoas, bem como suas identidades pessoais e grupais são construídas no histórico de interações que cada um desenvolve no decorrer do curso de vida: “O outro se constitui e se define por mim e pelo outro, ao mesmo tempo em que eu me constituo e me defino com e pelo outro” (Rosseti-Ferreira et al, 2004, p.25). Toda essa rede de relações é atravessada pela linguagem, o que marca o caráter fundante da dialogia na constituição do ser humano, e também sua multiplicidade: “A pessoa é múltipla porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros com quem interage” (p.25).

Importante é a compreensão trazida por Rosseti-Ferreira et al (2004) sobre o que vem a ser o contexto em que estão situados os processos de desenvolvimento, a qual vem associada à noção de meio. Coincidentemente à proposta de Wallon (1986), para essas autoras o meio atua de duas formas: como ambiente, contexto ou campo de aplicação de condutas, e também como meio enquanto instrumento, recurso, para seu desenvolvimento. Daí poder-se concluir que o meio só pode ser definido em função das pessoas ou grupos específicos que o freqüentam, com

competências e objetivos singulares, inseridos num determinado momento sócio-histórico. Assim, as relações pessoa-meio são entendidas como mutuamente constitutivas, uma vez que “(...) a própria presença da pessoa é parte constitutiva daquele meio. Daí dizer que pessoas-meio se constróem e se transformam dialeticamente” (p.26).

Também a Perspectiva do Curso de Vida, apoiando-se nas tradições contextualista e dialética “(...) abandona as concepções acumulativas e unidirecionais das teorias de estágios, em favor da aceitação dos princípios da multidimensionalidade e multidirecionalidade do desenvolvimento” (Neri, 1995, p.26). Portanto, ao considerar o desenvolvimento como produto da interação entre eventos normativos (de natureza ontogenética) e não-normativos (de natureza sociogenética), esta Teoria vê a velhice como uma experiência heterogênea de ganhos e perdas, determinada por vários aspectos em interação durante todo o curso da vida.

A Perspectiva do Curso de Vida ou Life-Span em Psicologia do Envelhecimento começou a firmar-se nos anos 70, tendo em Paul B. Baltes um de seus principais expoentes. Representa uma síntese de várias fontes de influência sobre o pensamento psicológico que se desenvolveu sobre a vida adulta e a velhice. As que exerceram maior impacto foram as teorias de Erikson (1950), o Interacionismo Simbólico em Sociologia e a teoria da aprendizagem social em Psicologia do Desenvolvimento. Neri (1995) resume as proposições teóricas da Perspectiva do Curso de Vida feitas por Baltes em 1987:

ƒ“O desenvolvimento ontogenético estende-se por todo o curso de vida, envolvendo tanto processos de mudança de origem genética como outros que se iniciam em diferentes momentos do curso de vida.

ƒNenhum período do curso de vida tem supremacia na regulação da natureza do desenvolvimento.

ƒO desenvolvimento é um processo multidirecional, isto é, não é caracterizado por processos isolados de crescimento e declínio, dependendo da fase do curso de vida.

ƒNum mesmo momento do desenvolvimento as mudanças podem assumir múltiplas direções, inclusive crescimento num dado domínio e declínio em outro.

ƒO desenvolvimento envolve equilíbrio constante entre ganhos e perdas, e significa mudança adaptativa constante.

ƒA proporcionalidade entre os ganhos e as perdas no desenvolvimento sofre alterações ao longo do curso de vida: na infância preponderam ganhos e, na velhice, perdas.

ƒExiste considerável variabilidade intra-individual no desenvolvimento e em suas potencialidades e limites para diferentes formas de comportamento e desenvolvimento. ƒO desenvolvimento e a plasticidade individual quanto ao desenvolvimento dependem das

condições histórico-culturais existentes durante um dado período coincidente com o curso de vida das pessoas, grupos etários e gerações.

ƒOs cursos de vida individuais resultam da interação dialética entre três sistemas de influência: o de gradação por idade, os provenientes do contexto histórico e os eventos não-normativos – os quais tendem a ser experienciados como crise.

ƒComo o desenvolvimento humano é um evento multideterminado e multifacetado, é importante levar em conta o conhecimento derivado de várias disciplinas e a integração de suas contribuições. A Biologia, a Antropologia e a Sociologia representam partes substanciais dessa contribuição.”

Também conhecida como Perspectiva Life-Span – termo da língua inglesa que tem a conotação de extensão ou abrangência, esta abordagem constitui-se hoje no modelo mais influente da Psicologia do Envelhecimento contemporânea (Neri, 2001a). E apesar de ter uma conotação de extensão ou de abrangência, quer da vida em toda a sua extensão, quer de algum

período particular, a Perspectiva do Curso de Vida não se utiliza de nenhum critério de estágio para fins de delimitação ou periodização: a idade cronológica é vista como variável relevante, mas, longe de ser considerada uma causa, ela é vista como elemento organizador na pesquisa sobre o desenvolvimento (Neri, 2001a).

Sem dúvida, a contribuição metodológica mais importante da Perspectiva Life-Span à pesquisa psicológica é o fato de atentar para os eventos do contexto sócio-histórico ao qual pertencem indivíduos e grupos, os quais, necessariamente, exercem forte influência nos processos de significação dessas pessoas. Ou, nas palavras de Rosseti-Ferreira et al (2004), para quem os processos de desenvolvimento humano “(...) são concebidos como se dando, durante todo o ciclo vital, nas e por meio das múltiplas interações estabelecidas pelas pessoas em contextos social e culturalmente organizados” (p.23).

Especialmente, a Perspectiva Life-Span é considerada a perspectiva típica da Psicologia do Envelhecimento, embora, desde os anos 80, venha sendo aplicada também às outras fases do desenvolvimento. Esta perspectiva rejeita a noção unidirecional das teorias de estágios e defende os princípios de multidimensionalidade e multidirecionalidade para o desenvolvimento humano (Neri, 1995). São estes pressupostos teóricos que fazem com que a velhice seja vista como uma experiência de ganhos e perdas, sempre heterogênea para todas as pessoas, isto é, que acontece de modo diferente para indivíduos que vivem em contextos históricos e sociais distintos.

Portanto, a metáfora crescimento, culminância e contração (componentes do modelo pioneiro de Charlotte Bühler, 1935) – que já chegou a representar um avanço nas teorias sobre ciclo de vida – atualmente não explica mais a complexidade do processo do desenvolvimento humano. Segundo Neri (2001a), não há hoje uma teoria única sobre o envelhecimento em nenhuma das disciplinas que compõem o campo da Gerontologia – embora muito esforço tenha

sido dispendido nessa direção nos anos 1960 e 1970, marcados pela emergência de grandes teorias, especialmente no campo da Sociologia.