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3 – A vivência feminina da Velhice

3.4. Gênero e Velhice

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” A famosa e tão utilizada frase da escritora

francesa Simone de Beauvoir (1990b, p.9), durante pelo menos quatro décadas esteve na vanguarda do discurso dos movimentos feministas em todo o mundo: afinal, ela reforça a convicção de que, embora haja um continuado esforço da sociedade para naturalizar processos de caráter social, não é o sexo, em si, que determina o destino das pessoas: a fisiologia, o sexo anatomicamente configurado (macho ou fêmea) sugere – mas não determina – a transformação de certos indivíduos em mulheres e de outros em homens. Assim, o tornar-se mulher e o tornar-se homem deriva, ao contrário, das relações de gênero, cujo conceito, segundo Saffioti (1992) inclui

“a trama de relações sociais, bem como as transformações historicamente por ela sofridas através dos mais distintos processos sociais” (p.187).

Assim, o conceito de gênero situa-se na esfera social, ou seja, é um produto social aprendido e transmitido ao longo das gerações, diferentemente do conceito de sexo, quase sempre posicionado no plano biológico e relacionado às características fisiológicas relativas à procriação, à reprodução biológica (Strey, 1998; Sorj, 1992). Para Saffioti (1992), inclusive, pode-se dizer que tanto o gênero quanto o sexo são inteiramente culturais, pois o sexo, em si, não tem registro apenas no terreno biológico, mas é perpassado por toda uma elaboração social, uma vez que os próprios fatos da sexualidade são expressos socialmente e incluem significados oriundos da cultura.

Ao conceber a natureza relacional do sexo, a autora se afasta das posturas essencialistas que tentam “naturalizar” processos de caráter eminentemente social – como a dominação-exploração exercida pelos homens sobre as mulheres, por exemplo – e insiste no caráter “histórico e mutável” das atribuições da sociedade às categorias de sexo. Segundo ela, “graças a este sistema de representações e de atribuições, a mulher, ao nascer apenas um exemplar fêmea da espécie humana, torna-se um ser submisso à supremacia masculina” (p.186).

No entanto, as preocupações teóricas relativas ao gênero enquanto categoria de análise estiveram ausentes na maior parte das teorias sociais formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX. No Brasil, o campo de estudos de gênero só veio a se consolidar no final dos anos 1970, paralelamente ao fortalecimento do movimento feminista no país (Farah, 2004).

Surgido na segunda metade do século XX, mais especificamente nas décadas de 60 e 70, o feminismo emerge como um movimento social que vem questionar radicalmente a forma desigual e assimétrica pela qual as relações de gênero estão estruturadas. Ao denunciar a histórica condição de subordinação das mulheres expressa “ao nível público e ao nível privado, ao nível da

razão e do afeto, do trabalho e do prazer, da obrigação e do desejo” (Pinto, 1992, p.132), o movimento feminista vai posicionar-se contra a naturalização das relações hierárquicas entre os sexos, apontando o caráter social de tal condição.

Comprovadamente, relações hierárquicas de subordinação/exploração das mulheres, de formas variadas e em diferentes contextos e sociedades, têm marcado a história ao longo dos séculos. Desde as revoluções do século XVIII as mulheres vêm lutando por direitos civis (à educação e ao voto são exemplos) – baseadas, porém, num modelo de igualdade que referenciava apenas o modelo masculino – e neste não estava incluída a idéia de igualdade para as mulheres (Ávila, 2002). Tanto que, no Brasil, o voto feminino, mesmo tendo sido assegurado por lei em 24 de fevereiro de 1932 – portanto, com 108 anos de diferença entre a primeira lei eleitoral que assegurava aos homens o direito de votar e serem votados - só pôde ser exercido pelas mulheres casadas, e com a devida autorização dos maridos (Plataforma Política Feminista, 2002).

Considerada, no entanto, “natural”, a relação hierárquica entre homens e mulheres manteve-se na modernidade, amparada nos novos paradigmas do projeto iluminista: nesta nova ordem, as mulheres foram nomeadas como “parte da natureza”, integrantes da “esfera doméstica” e, nesta condição, privadas de ter acesso à esfera pública, esta sim, destinada aos homens (Ávila, 2002). Citando os estudos de Arendt (1988), Yannoulas (1994) resgata que, historicamente, “o espaço do público equivalia à pollis grega e, portanto, à vida política, enquanto o espaço do privado equivalia à oikia (casa)” (p.11). Estava posta, assim, a dualidade antagônica entre público/ privado, natureza/cultura, casa/cidade, prisão/liberdade que terminaria por estruturar papéis sexuais e legitimar, até hoje, a “natural” desigualdade entre homens e mulheres.

Pinheiro (2001) ressalta a importância das relações de gênero na construção da subjetividade dos indivíduos quando afirma que estas relações permeiam todo o tecido social, manifestando-se de formas distintas e específicas nos diferentes grupos sociais. Scott (1989) vai

mais além quando se refere ao gênero como uma criação inteiramente social das idéias sobre os papéis “próprios” aos homens e às mulheres. Para ela, as origens das identidades dos homens e das mulheres também são exclusivamente sociais.

Indubitavelmente, os estudos de gênero são importantes para o entendimento de como as sociedades humanas constroem e legitimam as diferenças entre os sexos. No entanto, mesmo quando o objeto de um estudo tem como eixo principal as relações de gênero, é importante trabalhar com a interface desta categoria com as outras dimensões da vida social, tais como classe, raça/etnia, gênero e idade/geração.

Macedo (2002) traz à tona a relevância dessa discussão, ao tratar da necessidade de se articular a noção de subjetividade e identidade de gênero às diversas categorias sociais, para compreender como esta interconexão de fatores influencia os processos de significação vividos pelos grupos sociais e indivíduos. A adoção dessa perspectiva representa, segundo esta autora, “um esforço de pensar os grupos e os sujeitos como socialmente situados” (p.60), cujo entendimento significa que o mesmo indivíduo possui e sofre influência de seus “múltiplos pertencimentos” às diversas categorias relacionais. Assim, para uma mulher, ser chefe de família, pobre, negra e idosa configura-se numa experiência completamente diferente se esta mesma mulher for branca, mais jovem e se pertencer a uma classe social mais abastada. Essas combinações variadas das categorias sociais terminarão por definir diferentes possibilidades, limites e lugares sociais para os sujeitos, uma vez que, conforme argumenta Macedo (2002), vão se refletir “em diferentes níveis de acesso aos bens culturais e materiais, influenciando, pois, desde elementos como a auto-estima até as possibilidades concretas de realização de projetos de vida” (p.61).

Para Britto da Motta (1998), em se tratando de pessoas idosas, além da condição de gênero (no caso, feminino) - ser relevante devido ao fato da maioria dos velhos se constituir de

mulheres - a análise das categorias de classe social e de gênero são fundamentais, sendo esta última, entretanto, “absolutamente definidora da vida dos idosos” (p.138). Esta autora argumenta que tem identificado, em sua trajetória de pesquisa, diversas situações vividas por mulheres e homens idosos que advêm, basicamente, de sua condição social de gênero, e que acontecem, de forma semelhante, nas diversas classes sociais. Britto da Motta (1998) justifica que:

Homens e mulheres de mais idade, hoje, tiveram trajetórias de vida bastante diferenciadas, de acordo com as prescrições sociais estabelecidas, no tempo social da juventude, para cada sexo em seu grupo de idade – de modo que as situações existenciais atingidas hoje, em grande parte apenas culminam as expectativas sociais postas em seus caminhos (p.138).

O fato é que, mais do que qualquer outra geração, as coortes das mulheres que atualmente encontram-se com idade acima de 60 anos cresceram ouvindo e internalizando mensagens de um contexto social que considerava “natural” a inferioridade e a submissão da mulher em relação ao homem e, conseqüentemente, a relação hierárquica entre os sexos. Estas forças sociais contribuíram para “o longo processo de domesticação da mulher no sentido de torná-la responsável pela casa, a família, o casamento e a procriação, na figura da “santa- mãezinha”. A imagem desta “santinha” está ligada à pureza da Virgem Maria – “provedora, piedosa, dedicada e assexuada” (Del Priori, 1993, apud De Souza, Baldwin & Heitor da Rosa, 2003). A influência do marianismo (Modelo de Maria) nos processos de significação e nas histórias de vida das mulheres idosas será comentado mais adiante.

Mas, indaga pertinentemente Scott (1989), “qual a origem dessas disposições sociais que exigem que os pais trabalhem e as mães cuidem da maioria das tarefas de criação dos filhos e estruturem a organização da família?” (p.10). Em outras palavras, qual a justificativa para a associação da masculinidade com o poder, da ascensão da virilidade sobre a feminilidade?

Sorj (1992) reivindica à fundação da moral racional, ao racionalismo, um impacto direto sobre a condição de subordinação das mulheres, na medida em que esta corrente filosófica considera “irracionais” e, portanto, “inferiores”, as expressões de emoção, desejo, empatia, sensibilidade, afetividade... – sentimentos “mais identificados com o feminino”. “Na medida em que as mulheres são identificadas com um estilo moral de julgamento pautado por estes últimos, são excluídas da moral racional e confinadas à esfera doméstica” (pp.19-20). Ora, se a esfera pública, a cultura e as instituições se pautam pela moral racional - a qual reforça os estereótipos masculinos de força, virilidade, imparcialidade, objetividade e proteção – qual o lugar social a ser ocupado então pelas mulheres e, mais especificamente, pelas mulheres idosas?

Para Ávila (2002), “a restrição das mulheres ao espaço doméstico da vida privada foi sustentada em uma relação que guardava os princípios da hierarquia entre senhor e serva” (p.128). Esta relação desigual entre os sexos vem confirmar que não se pode negligenciar o conceito de poder quando se analisam relações de gênero - uma vez que é nelas que “têm lugar a exploração dos subordinados e a dominação dos explorados, dominação e exploração sendo faces de um mesmo fenômeno” (Saffioti, 1998, p.185).

Encontram-se na literatura várias teorias que questionam se a subordinação das mulheres aos homens sempre aconteceu ou se foi construída ao longo dos tempos: algumas teorias argumentam que essa subordinação é natural, outras dizem que é cultural e outras, ainda, afirmam que, apesar de ser cultural, é também universal, ou seja, está presente em todas as sociedades (Strey, 1998). Sem intenção de um maior aprofundamento em relação a esta temática – na realidade, apenas periférica em relação ao problema desta pesquisa – o que se pretende é compreender como foram gerados os processos de significação que permeiam o contexto social em que se inserem as mulheres pesquisadas, todas nascidas anteriormente à década de 1930.

É, portanto, neste cenário demarcado - em que coube às mulheres o papel de simples coadjuvantes de uma vida pública, racional e masculina que só acontecia lá fora – na polis, nas ruas, além-muros de suas residências – que as mulheres idosas de hoje construíram sua identidade: no mundo restrito ao universo privado da família. Aprendendo que o espaço público – que inclui educação, trabalho, política, artes... - é valorizado e “tipicamente masculino”; e que a elas corresponde o espaço da casa, da família, e a importante função de “rainha do lar”.

3.5. Evas, Marias, Julietas, Amélias ... – um olhar histórico sobre a