• Nenhum resultado encontrado

Migrações e música cabo-verdiana

4.3. A dimensão identitária da música e a questão da etnicidade

Formada por processos sociais determinados pela estrutura social, na acepção de Giddens (2003), a identidade constitui uma componente básica da realidade subjectiva que, por seu turno, se encontra em relação dialéctica com a sociedade. Não obstante a sua determinação pela estrutura social o certo é que as identidades reagem sobre esta, “mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a” (Berger e Luckmann, 2004:179). verdade, não se tem conhecimento, “de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas, em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida”, afirmava Calhoun (1994), a propósito da construção da identidade, cujo conceito tem vindo a ser aprofundado por estudiosos das diversas áreas das ciências sociais, em especial, pelo seu significado.

Independentemente da sua natureza, “as estruturas sociais históricas específicas” originam tipos de identidade que, em casos individuais, são identificáveis, enquanto produtos sociais e “elementos de certo modo estáveis da realidade social objectiva” (Berger e Luckmann, 2004: 179-180). Assim, tendo em conta que a construção social da identidade se verifica num contexto determinado por relações de poder, Manuel Castells propõe uma distinção entre três formas e origens de construção de identidades: identidade legitimadora, que é introduzida pelas instituições dominantes da sociedade com vista à expansão e à racionalização da sua dominação sobre os actores sociais. A identidade legitimadora dá origem a uma sociedade civil, ou seja, um

conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de actores sociais estruturados e organizados que reproduzem a identidade, ainda que às vezes de forma conflituosa; identidade de resistência, criada por actores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência, na expressão do próprio Castells. Este segundo tipo de construção de identidade, a identidade destinada à resistência, conduz à emergência de comunas ou comunidades; identidade de projecto, quando os actores sociais constroem uma nova identidade capaz de redefinir a sua posição na sociedade, socorrendo-se, para o efeito, de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, a exemplo do feminismo O terceiro processo de construção de identidade, a identidade de projecto, produz sujeitos (2007: 4-7).

Do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade, seja ela individual ou social77, é um fenómeno que resulta da dialéctica entre indivíduo e sociedade e, logo, construída, se bem que, para Castells, a principal questão que se coloca diga respeito a “como, a partir de quê, por quem e para quê” (2007: 4).

Enquanto expressão da identidade, “elemento fluido e dinâmico de cultura” (Slobin and Titon, 1992: 13) e, logo, “facto social total”, na expressão de Marcel Mauss, (1968), a música encontra-se também ao serviço da construção identitária, através, designadamente, de processos de construção criativos e contínuos (passe-se o pleonasmo) e, por isso mesmo, tem uma “função interpeladora de identidades sociais” (Frith, 1996)78, ao mesmo tempo que constitui um lugar privilegiado de formação da subjectividade e de negociação de identidades colectivas, um conceito muitas vezes genérico, que caracteriza o estado da pessoa ou do grupo em referência,

77 A identidade social de um indivíduo, “feita com base na reflexão sobre as experiências pessoais e colectivas, mas

também com base nas «vozes sociais» exteriores ao grupo” (Lima e Vala, 2003: 78), está ligada, segundo Tajfel, ao “reconhecimento da sua pertença a certos grupos e ao significado sociais e ao significado emocional e avaliativo que resulta dessa pertença” (1972: 292).

78 A poderosa capacidade interpeladora da música ao nível das identidade sociais resulta do facto de ela trabalhar

com experiências emocionais particularmente intensas, de resto consideradas “muito mais potentes do que as processadas por outras vertentes culturais”, a exemplo da dita música popular, cuja apropriação para fins pessoais se revela mais intensa (Vila, 1996). De facto, a música popular responde a questões de identidade, razão pela qual as pessoas desfrutam dela (Frith, 1996). A importância e a complexidade da música como interpeladora das identidades poderão ainda ser explicadas pelos múltiplos códigos que intervêm num evento musical, sem que, contudo, alguns deles sejam estritamente musicais, (Vila, 1996), bem assim pelo “sentido” da música atribuído pelas próprias pessoas que a apreciam (Frith, 1996).

em termos comportamentais e em função de estratégias identitárias79 próprias. Nesta perspectiva, a identidade, que se constrói e “se transforma ao longo da nossa existência” (2002: 33) e engendra um sentimento de pertença identitária sob o inevitável impacto da globalização, apresenta-se como uma “estrutura polimorfa, dinâmica, cujos elementos constitutivos são os aspectos psicológicos e sociais em relação à situação relacional num determinado momento de um agente social (indivíduo ou grupo) como actor social” (Kastersztein, 2002: 28).

Já Martin Stokes (2003) assinalava que a construção musical do lugar mexe com questões de etnicidade e identidade, isto é, da construção musical do lugar de emigração emergem novas identidades sociais, conceito considerado eminentemente relacional, entendido enquanto produto do relacionamento dos indivíduos em sociedade. A abordagem de processos identitários das populações migrantes requer uma análise de todos os factores sociais e culturais que envolvem os indivíduos em contexto migratório, bem como o modo como os mesmos se relacionam com a multiplicidade de referências identitárias80 com que se confrontam num dado momento e num determinado contexto específico, razão por que a definição de identidade se reveste de uma extrema complexidade. Dito de outro modo, o estudo das identidades culturais deve, necessariamente, ter em linha de conta os contextos espaciais e relacionais em que estas se inserem, já que tais contextos, mais do que “meros suportes das relações sociais” (Guerra, 1987), são produtores de efeitos vários que contribuem para os processos dinâmicos e em permanente redefinição de construção e reconstrução identitária, ao longo de trajectórias (Vasquez, 2002) não lineares e em função de estratégias mais ou menos definidas. Nesta perspectiva, enquanto agente activo de inscrição das práticas sociais, o espaço figura como uma realidade complexa, cuja análise deve abranger uma imensidão de variáveis sociais e culturais, para além das características do próprio espaço físico.

79 A estratégia corresponde a um conjunto de acções coordenadas, de manobras, com vista a uma vitória ao nível

interaccional e dinâmico, segundo Kastersztein. e daí que falar de estratégias identitárias pressuponha a clarificação de “vitórias identitárias”, isto é, “aquelas finalidades que perseguem os actores quando está em jogo a sua actual estrutura identitária”, já que, a julgar pelos trabalhos realizados sobre alguns temas concretos como sejam a visibilidade social (Goffman, 1988), a diferenciação e a identidade, “uma das finalidades estratégicas essenciais para o actor é o reconhecimento da sua existência no sistema social” (2002: 30-32).

80 O indivíduo não é portador de uma única identidade, de um único “sentimento de identidade”, pelo contrário,

dispõe de um feixe de identidades possíveis que vai actualizando, de acordo com os constrangimentos da situação onde se encontra e em função dos seus desejos e interesses, na perspectiva de Goffman (1993).

Seja qual for a modalidade que possa assumir, individual ou colectiva (Wieviorka, 2002), a identidade não pode ser encarada como algo de único, uma espécie de verdade profunda e básica, inculcada bem no fundo dos indivíduos, e muito menos como algo predeterminado à nascença, imutável e fixo. Em todo o caso, a identidade deve ser concebida como uma construção permanente, um processo “basicamente discursivo” (Vila, 1996), algo de dinâmico, multifacetado, “multidimensional e estruturado”(Lipiansky et al.: 2002: 23) e nunca como o culminar de um processo construtivo ou pré-construção essencialista.

Longe de se apresentarem como um todo, as identidades nunca se unificam e, nos tempos da modernidade tardia, estão cada vez mais fragmentadas e fracturadas, singulares e sujeitas “a uma historicização radical e num constante processo de mudança e transformação”, no entendimento de Hall y Gay (1996: 17). Neste sentido, a identidade não é uma coisa, mas, na perspectiva de Frith, “um processo exponencial que se capta mais vividamente como música” (1996: 185), considerada esta última uma das chaves fundamentais para se entenderem os contornos do processo de identificação. Em sociedades pluriétnicas, emerge, igualmente, o conceito de identidade étnica sempre que o grupo étnico entre em contacto com outros grupos e que os sistemas culturais se afrontem, depende, em parte, de como o grupo interpreta a sua história e repousa em dados culturais objectivos criteriosos que só fazem sentido no seio da consciência colectiva que deles se apropriou e os interpretou. Na prática, a identidade étnica significa a consciência que anima o grupo, ou seja, uma consciência colectiva que lhe transmite uma singularidade própria e a sua preservação é condição necessária à coesão e à sobrevivência de um grupo étnico, podendo constituir uma forma de resistência à assimilação, “quando este se encontra inserido num contexto social regido por padrões de cultura e normas sociais que se diferenciam dos seus” (Albuquerque et al., 2000: 32).

À semelhança do conceito de identidade, tão usado nas ciências sociais e humanas com significados diferentes, emerge dentro do vocabulário antropológico nos anos 60 do século XX a categoria de etnicidade (Eriksen, 2002)81, também ela intimamente associada à problemática da música. Trata-se, pois, de um conceito relativamente novo e “essencial em ciências sociais” (Fenton, 2003), mas “quiçá o mais problemático” (Stokes, 1994), que é definido basicamente

81 O termo “etnicidade”, que, de acordo com Eriksen (2004:7), se refere a relações entre grupos, cujos membros se

consideram diferentes entre eles e hierarquizados no seio de uma determinada sociedade, foi usado pela sociologia americana, pela primeira vez, em 1953, através de David Riesman.

pela consciência de se pertencer a um grupo humano determinado por uma série de atributos predominantemente de natureza sociocultural que faz com que tal grupo possa ser considerado ou não uma “etnia”, ou parte de uma “etnia” (Martí i Pérez, 1995: 1).

A etnicidade, emergida nos países ocidentais a partir da constituição de minorias étnicas, muitas vezes em condições sociais desfavorecidas e contrastantes (Machado, 2002) e em resultado de dinâmicas de fluxos imigratórios mais ou menos recentes, designa, em termos gerais, a relevância que a pertença a determinados grupos étnicos pode adquirir no plano das desigualdades sociais, das identidades culturais e das formas de acção colectiva” (Almeida et al, 1994: 159). Enquanto categoria conceptual, a etnicidade aplica-se sempre que dois grupos ou sociedades estabelecem diferentes formas de relação espacial, política, económica, social e cultural e refere-se a “práticas culturais e a modos de entender o mundo que distinguem uma dada comunidade das restantes” (Giddens, 2004: 248). Nesta perspectiva, essa consciência de pertença, que se desprende de uma dimensão afectiva, implica uma determinada percepção socialmente subjectiva do grupo, bem como um sentimento de colectividade, pelo que falar de etnicidade, em termos sociológicos, significa falar de atitudes. Assim, a etnicidade82, um fenómeno decididamente marcado pela situacionalidade, pode ser definida como sendo um processo dinâmico que se insere num determinado momento histórico e que resulta da oposição ou contraste entre diversos grupos. Dito doutro modo e de forma sucinta, a etnicidade, derivada do termo “étnico83”, é “a organização social da cultura da diferença”, que a marca e a distingue.

A etnicidade é tanto mais forte quanto maiores são os contrastes (Machado, 2002) das minorias com as populações das sociedades receptoras, que se traduzem num conjunto de dimensões sociais (localização residencial, estrutura etária e sexual, níveis de escolaridade e composição de classe) e culturais (diferença no plano religioso, linguístico, racial, matrimonial e

82. Herbert J. Gans, baseando-se no fenómeno da etnicidade que se manifesta a partir da chamada terceira geração de

imigrantes nos Estados Unidos da América, referiu-se à “etnicidade simbólica” (1979), uma forma marcada pela sua fragilidade ou inexistência, tendo em conta, por um lado, que esses imigrantes sofreram um forte processo de assimilação e, portanto, perderam muito dos seus conteúdos culturais originais e, por outro, possuem uma fraca estruturação grupal. A propósito da manifestação da etnicidade, Martí i Pérez refere-se a duas modalidades diferentes: a instrumental e a expressiva (1996: 9).

83 O termo “étnico”, que tem a sua origem na palavra do grego clássico ethnicos, “pagão”, refere-se, de acordo com

o Compact Oxford English Dictionary (1993), àquele que possui características raciais, culturais, religiosas ou linguísticas comuns, especialmente designando um grupo racial ou outro no interior de um sistema mais vasto. Importado do grego, o termo “étnico” (em inglês ethnic) entrou para a língua inglesa com a primeira citação de uma obra escrita em 1473 e toma regularmente o significado de “pagão e estrangeiro” (Fenton, 2003: 26-27).

modos de vida). Contudo, pese embora o incremento e a diversificação das minorias étnicas, o fenómeno da etnicidade em Portugal não atingiu, até agora, o nível de que assume noutros países da Europa, em virtude de as minorias étnicas estabelecidas cá não exibirem “níveis de contraste social e cultural com a população portuguesa tão acentuados como os que se verificam em algumas das comunidades imigrantes residentes nos demais países europeus, como sejam as minorias árabes em França ou a minoria turca na Alemanha” (Almeida et al, 1994: 163. Do ponto de vista social, a população imigrada cabo-verdiana em Portugal é considerada a mais contrastante em Portugal, se bem que, já plano cultural, não sejam tão acentuados esses contrastes. Ao nível geral das comunidades de imigrantes em Portugal e a despeito da diversidade de características que apresentam, reconhecem Almeida et al., nenhuma das minorias étnicas se encontra numa situação de “etnicidade forte” (ibidem: 165).

Entendida, sobretudo, como consciência de identidade de grupo, a etnicidade, portadora de uma componente fortemente subjectiva, estabelece, por isso mesmo, uma relação com o fenómeno musical, expressa, nomeadamente, através de um nexo de identidade entre produção sonora e grupo étnico, ou seja, à partida, nenhuma música é étnica por natureza, mas pode tornar-se “música étnica”, em determinadas circunstâncias e se, entre outros requisitos, for portador de “valor étnico”. Ou melhor, como diria Josep Martí i Pérez, nem toda a música é “étnica”, mas “sim toda a música pode ser em potência etnicitária, ou seja, pode expressar valor étnico” (1995: 4).

Contudo, salienta Martí i Pérez, a clara relação entre a música e a etnicidade não se manifesta apenas nos produtos musicais concretos, mas também implica atitudes que podem condicionar certos usos dos diferentes códigos musicais, porquanto a música, como fenómeno cultural, perpassa a mera dimensão da partitura ou a dimensão propriamente sonora e, curiosamente, quando adquire o estatuto de “música étnica”, converte-se em “símbolo etnicitário, tal como as bandeiras”, pelas suas significações (ibidem: 5). Nesta linha de raciocínio, uma música torna-se etnicamente significativa não apenas devido ao seu processo de gestação, mas sobretudo pelo seu contexto de inserção, isto é, pela sua situacionalidade, a exemplo das músicas dos imigrantes que acabam por adquirir significações especiais e acrescidas nos espaços simbólicos que eles próprios constroem na respectiva sociedade receptora.

Ao tentar estabelecer esta comunhão entre a etnicidade e a música, Josep Martí i Pérez esclarece que a noção de “música étnica” tem muito mais a ver com o conceito de etnicidade do

que com o de “etnia” em si, nas sociedades da cultura ocidental, outro conceito considerado polémico, conflituoso e pouco operativo. Assim, na linha de Martí i Pérez, o conceito subjectivo de “música étnica” não se refere a todconta a música pertencente a um grupo definido como “etnia”, mas apenas uma parte muito concreta e restrita da sua produção e cita, a título exemplificativo, o caso catalão em que a música de Mompou ou Montsalvatge é música catalã, mas não se lhe considera “música étnica”. Habitualmente, fala-se e ouve-se falar de “música étnica catalã”. Para além das chamadas “músicas étnicas”, que entranham um valor étnico cuja marca é predominante, Martí i Pérez refere-se, igualmente, às “músicas etnicitarias”, que também contêm um valor étnico consubstancial, se bem que não seja tão predominante, e cita os exemplos do tango, do samba, do noh e do gagaku (1996: 3-5). Por outro lado, o conceito de música étnica foi aprofundado por Adelaida Reyes-Schramm num interessante artigo intitulado Etnhic Music, the Urban Área and Ethnomusicology, publicado na Revista Sociologus (1979).

Associada aos conceitos de etnicidade e identidade, emerge também na investigação etnomusicológica a categoria de transculturação84 inventada por Fernando Ortíz, nos anos quarenta do século XX,

para exprimir os variadíssimos fenómenos que têm a sua origem em Cuba a partir das complexíssimas transmutações de culturas que aqui se verificam e que sem as conhecer é impossível compreender a evolução do povo cubano, tanto nos aspectos económico, institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, linguístico, psicológico, sexual como nos demais aspectos da vida (1963: 99).

Basicamente, a transculturação para Ortiz significava a introdução de elementos novos numa cultura estabelecida, a exemplo da cultura cubana que recebeu no seu interior ritmos africanos. Assim, a transculturação pode ser definida como o acto de difusão que implique mudanças formais, semânticas e funcionais como resultado da própria constituição e dinâmica interna do novo entramado cultural no qual se produz a difusão, ou melhor, “um intercâmbio

84 No âmbito etnomusicológico, utiliza-se, igualmente, o conceito de aculturação, em alternativa à categoria de

transculturação, já que, apesar de ambos se referirem ao mesmo fenómeno de contacto intercultural, na verdade não têm o mesmo significado (Martí, 2004: 2).

dinâmico entre duas culturas do qual resultam novas ideias e configurações culturais” (Martí, 2004).

Outline

Documentos relacionados