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A penetração da música cabo-verdiana no espaço português

A desterritorialização da música cabo-verdiana: o caso português

5.2. A penetração da música cabo-verdiana no espaço português

Na diáspora, o cenário musical cabo-verdiano é híbrido e diversificado e constitui, pelas suas origens, um prolongamento da própria música em Cabo Verde, embora assuma características específicas dos contextos em que se inserem os imigrantes. À semelhança de outros espaços imigratórios, a música também viajou com cabo-verdianos para Portugal e conseguiu penetrar e afirmar-se neste país, através de um processo faseado e gradual que se inicia na primeira metade da década de 30 do século passado com a primeira apresentação de músicos das ilhas no continente, numa altura em que se procurava dar a conhecer “a públicos na metrópole a diversidade cultural e a autoridade política do «império colonial» ou «ultramarino» português” (Cidra, 2008: 111).

Assim, mais precisamente em Junho de 1934, decorre na cidade do Porto a Primeira Exposição Colonial Portuguesa, no recinto do Palácio de Cristal, onde a então colónia portuguesa de Cabo Verde se faz representar por um agrupamento liderado pelo violista e compositor Luís Rendall, bem como por um grupo de cantaderas da Ilha da Boavista, o qual integrava, entre outros nomes populares, a célebre Maria da Purificação, esta última popularmente conhecida por Maria Bárbara, uma figura consagrada na memória musical do

arquipélago110. Em 1940, realiza-se a Exposição do Mundo Português, desta feita no Palácio de Belém, em Lisboa, e nela participou, em representação de Cabo Verde, o violista e compositor B. Léza, acompanhado de um grupo de prestigiados “tocadores”111 de instrumentos de corda que viviam na altura na Ilha de S. Vicente interpretando um reportório recheado de géneros como mornas, mazurcas e valsas. Terminada a Exposição de Lisboa, o grupo regressa a Cabo Verde sem a presença do seu líder B. Léza, que, entretanto, adoece em Portugal, onde conhece a portuguesa Maria Luísa, com quem casa mais tarde e de quem viria a ter dois filhos varões. Durante a sua permanência em Lisboa, B. Léza actua em diversos espaços públicos e divulga lindas mornas 112, muitas delas da sua lavra.

Por seu turno, em 1962, o chamado Grupo Folclórico de Cabo Verde113 desloca-se a Portugal, desta feita a convite do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, percorre quase todo o país em espectáculos e participa no programa na Emissora Nacional, tendo gravado alguns singles. Mas, na verdade, quem desbrava o terreno para futuras incursões da música cabo- verdiana em Portugal é Fernando Quejas, que chega a Lisboa em Novembro de 1947, transportando na bagagem mornas e coladeiras, onde grava o seu primeiro disco, volvidos três anos. Através das suas actuações na Emissora Nacional, no famoso Programa da Manhã, onde permanece durante uma carreira de vinte e cinco anos, Quejas (1998)114 tem uma influência decisiva na divulgação da morna junto do púbico português, cantando-a em português, o que lhe fez merecer duras críticas da parte de alguns dos seus detractores, acusando-o de ter afadistado a

110 De acordo com Otília Leitão, citando uma fonte familiar muito próxima da extinta cantora, Maria da Purificação

era filha de Maria Bárbara, mas, “o decurso do tempo e a força repetida do costume acabaram por sobrepor o nome «Maria Bárbara» e assim ficou para toda a gente, inclusive para as duas únicas filhas ainda vivas” (2008). Portadora de uma “voz de ouro”, Maria Bárbara contava apenas 16 anos quando, em 1940, integra o Grupo Folclórico de Cabo Verde, tendo, nesse evento realizado na Cidade invicta interpretado a célebre morna Maria Bárbara, cuja letra tradicional foi inventada e cantada no local da Povoação Velha. Natural da Ilha da Boa Vista, regressa à sua ilha natal após à sua participação na Exposição e, mais tarde, emigra para a Guiné-Bissau, onde faleceria ao fim de 34 anos, precisamente em 1974, quando se aproximava a independência de Cabo Verde.

111 Escolhido pelo próprio B. Léza, do grupo musical faziam parte ainda Tchuf, Djack Baliza, Djuto, Lela Maninha,

Luís Rendall , Mochim de Monte e Edy Moreno, entre outros.

112 Acossado pela saudade do seu torrão, B. Léza compõe, nesse mesmo ano de 1940, a morna Bejo de sôdade,

também conhecida por Ondas sagradas di Tejo, soberbamente interpretada pela Titina e considerada pelo produtor e editor discográfico, Alberto Rui Machado “talvez a maior manifestação de saudade e amor à Terra surgida na música cabo-verdiana e o mais lindo hino a Lisboa e ao rio que a banha”.

113 O agrupamento musical era constituído por Celso Estrela, Taninho Évora, Luís Rendall, Titina , Djosinha, Mité

Costa, Arlinda Santos, Agostinho Fortes e Luís Rendall.

morna. É certo que, em Lisboa, já se encontrava o seu companheiro, Marino Silva, que chegara a esta cidade em 1942, mas que, no entanto, só gravaria em 1958. Desbravado o terreno, chegam a Portugal novas figuras musicais115 com destaque para Celina Pereira, Frank Mimita e Norberto Tavares, entre outros, onde já se encontrava Titina que permanecera neste país, aquando da digressão do aludido Grupo Folclórico de Cabo Verde, em 1962, enquanto a música cabo- verdiana vai, passo a passo, penetrando no seio da sociedade portuguesa, sobretudo em Lisboa, a cidade onde sempre se concentrou maioritariamente a população imigrante cabo-verdiana.

Entretanto, em 1972, Bana116, considerado um dos maiores intérpretes cabo-verdianos de sempre da morna, viria fixar residência em Portugal, sendo decisiva a sua presença na divulgação da música cabo-verdiana neste país, através, nomeadamente, da discografia e da abertura do Restaurante/Discoteca Monte Cara, a actual Enclave sita nas imediações do Rato. Estabelecido em Lisboa, procedente de Roterdão, Bana reedita o mítico Voz de Cabo Verde tendo, para o efeito, chamando de Cabo Verde Paulino Vieira, Leonel, Cabanga, Bebeth, Armando Tito, Toy Pires e Tito Paris, entre outros, que se juntam a ele, com o intuito de divulgar em terras portuguesas a música cabo-verdiana, através de uma rede migratória de músicos117 que ele próprio conseguiu pôr de pé em colaboração com o próprio Luís Morais. Assim, com a chegada do Bana a Portugal, inaugura-se uma nova era da música cabo-verdiana neste país, no âmbito da divulgação da cultura musical tradicional, reforçada com a presença marcante e inconfundível de Paulino Vieira, no que respeita à composição, arranjos, orquestração e direcção musical.

A música cabo-verdiana havia ganhado novo impulso. Norberto Tavares, que havia emigrado para Portugal em 1973, edita, em 1976, o seu primeiro LP, acompanhado do famoso

115Ainda na década de 60 do século XX, também residiu em Portugal o grande intérprete de mornas e coladeiras,

Amândio Cabral, tendo, posteriormente, rumado para os Estados Unidos da América, onde radica até agora. A efémera passagem de Amândio Cabral por Lisboa não deixou qualquer rasto, em termos musicais

116 Nos anos 70 e antes do ingresso do Bana na cena musical cabo-verdiana em Portugal, o violinista Malaquias

Costa chegou a residir em Lisboa, durante algum tempo, e actuava semanalmente num espaço musical também cabo-verdiano denominado Andaluz.

117 O conceito de músico deve ser aqui tomado na sua acepção sociológica mais lata possível, abrangendo, por isso

mesmo, todos os agentes ou actores, sejam eles profissionais, semiprofissionais ou amadores, que se dediquem à actividade musical, por razões de índole económica, social, cultural ou política, independentemente de terem ou não frequentado uma escola de música e do grau de solidez, consistência e sistematicidade dos seus conhecimentos teóricos.

Black Power118, conjunto musical ao qual pertencia e, norteado pelo princípio da busca da “autenticidade” cultural e dominado por uma lírica terra-a-terra, contribui, de forma significativa, para a mudança do paradigma da música cabo-verdiana, quer como compositor, quer como estilista do funaná, enquanto género musical então emergente. Antes da sua partida definitiva para os Estados Unidos da América, onde reside actualmente, Norberto, considerado, por muitos, um dos primeiros a estilizar o funaná, grava a solo o disco Voltá pa fonti, que tem grande sucesso, ao mesmo tempo que Frank Mimita editava, também em Portugal, no longínquo ano de 1976, o seu primeiro LP intitulado Forti Trabadja pa Alguém.

Para além de personalidades musicais emblemáticas que foram decisivas na penetração e na afirmação da música cabo-verdiana em Portugal, no passado, importa destacar ainda o papel não menos importante de alguns agrupamentos musicais cabo-verdianos na divulgação da música nacional, tanto no seio da dita comunidade, como na sociedade portuguesa, em geral, designadamente, Les Amis (1977-1979), Africa Stars (1977-1995) e Tulipa Negra (1978), este último influenciado sobretudo pelo reggae da Jamaica e pela música da Martinica, nos anos subsequentes à independência nacional, através da realização de espectáculos e da animação de bailes em salas alugadas, particularmente na zona do Campo de Ourique. Já nessa altura, a música cabo-verdiana em Portugal recebia, através desses agrupamentos musicais, influências externas, nomeadamente, da Jamaica, Nigéria, Angola e Zaire.

Nos anos 80, o ambiente musical cabo-verdiano em Portugal, marcado pela presença da música tradicional, é forte, sendo de registar, já nessa altura, a presença do funaná, através particularmente da influência do Bulimundo, bem como do notável papel assumido pelo grupo Os Tubarões, sobretudo através de Ildo Lobo, na transnacionalização da música cabo-verdiana. Até finais da década de 80, S. Bento, em Lisboa, era uma atractiva zona de cabo-verdianos e funcionava como uma ilhazinha da Cabo Verde, preservando a música tradicional em espaços de socialização (bares, tascas, mercearias, etc.), onde se consumia tudo, desde a música até à comida típica cabo-verdiana. Saliente-se ainda que é nesse período em que a música cabo- verdiana em Portugal ganha maior fôlego rumo à internacionalização com a entrada em cena da

118 O grupo musical Black Power foi criado em Lisboa entre 1976 e 1977 por um grupo de imigrantes cabo-

verdianos. Ainda na década de 70, aparece, também na capital portuguesa, um espaço musical angolano chamada

Cesária Évora, que, aliás, residiu algum tempo em Lisboa, actuando no Restaurante Monte Cara de Bana, antes de se projectar universalmente.

Neste período, a música cabo-verdiana em Portugal é reforçada com o ingresso de Dany Silva119, que, sucessivamente, cria alguns espaços musicais em Lisboa, os quais contribuirão ainda mais para a divulgação da música cabo-verdiana. De recordar ainda que, neste processo gradual de penetração e divulgação da música cabo-verdiana em território português, o cantor alentejano Vitorino grava a morna Joana Rosa e Rui Veloso também faz incursões na música cabo-verdiana, em parceria com Tito Paris. Ainda nos anos 90, este processo de afirmação musical ganha maior fôlego com o despontar da Lura, Nancy Vieira, Maria Alice, Ana Firmino e Ritinha Lobo, entre outras vozes femininas, que imprimem nova dinâmica à música cabo- verdiana rumo a outros desafios. Em 1994, alguns músicos cabo-verdianos estabelecidos em Portugal integram o projecto denominado Sons da Fala120, “numa festa de cruzamento de culturas ligadas pela música e pela história”, onde se cantam, alternadamente, músicas de Portugal, África e Brasil.

5.3. Emergência e configuração do campo musical cabo-verdiano na AML:

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