• Nenhum resultado encontrado

Emergência e configuração do campo musical cabo-verdiano na AML: uma breve caracterização qualitativa

A desterritorialização da música cabo-verdiana: o caso português

5.3. Emergência e configuração do campo musical cabo-verdiano na AML: uma breve caracterização qualitativa

Produto dos intensivos fluxos migratórios direccionados para Portugal a partir de finais da década de 60, os quais se prolongam até à actualidade, emergiu em Portugal uma expressiva significativa população de migrantes de trabalho e profissionais, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, marcada já, no domínio cultural, pela configuração de um campo artístico, ou melhor, de um campo musical, na expressão de Bourdieu (2001b), que se foi consolidando progressivamente, transformando-se com o tempo num campo transnacional de

119 Refira-se que, em finais de 1983, Dany cria o espaço musical Clave de Tó, ao pé do Castelo de S. Jorge, que

acaba em Dezembro de 1986, e, em Janeiro do ano seguinte, o Clave di Nós, no Bairro do Alto, um espaço musical que encerra em 1988. Entretanto, nessa altura, Tito Paris, que pertencia ao então Voz de Cabo Verde, junta-se a Dany e passa a actuar no Clave di Nôs. Finalmente, em 1990, Dany Silva cria o Pilón, no Largo da Alcântara, projecto que conhece o seu término cinco anos depois.

120 O projecto Sons da Fala nasce em Lisboa e é integrado por nove cantores e nove músicos acompanhantes

nascidos nos países africanos de expressão portuguesa e em Portugal. Cabo Verde está representado por um grupo de prestigiados intérpretes dos quais se destaca Tito Paris. Em 2007, o projecto chega às edições num fantástico CD, com a participação de Sérgio Godinho, Vitorino e Salomé, estes três primeiros de Portugal, Filipe Mukenga (Angola), André Cabaço (Moçambique), Guto Pires (Guiné-Bissau), Juka (S. Tomé e Príncipe) e Madeira Júnior (Brasil), o que dá a ideia da grandeza e da transnacionalidade deste projecto musical.

produção musical, que viria a moldar a produção da cultura expressiva de Cabo Verde, interligando “músicos, performs, públicos, editores discográficos e produtores de espectáculos, vivendo em Cabo Verde, em diferentes centros migratórios ou deslocando-se regularmente entre estes pontos” (Cidra, 2005: 1).

Constituída por três gerações de emigrantes e alargada pelos seus descendentes já nascidos e criados em Portugal (Alves et al, 1999), a população cabo-verdiana em Portugal e, em particular, na Área Metropolitana de Lisboa é, de facto, uma das mais numerosas e representativas “comunidades” imigrantes donde emergem diversos grupos sociais, resultantes de cada uma das gerações que foram chegando a este país e que se integraram num quadro histórico e económico adequado a cada período. Assim, o significativo crescimento da população imigrante cabo-verdiana em Portugal decorrente de processo migratórios ocorridos particularmente no período pós-independência, é responsável, em parte, pelo incremento e diversificação de “práticas expressivas em contextos informais de experiência musical”, para além, naturalmente, da formação de um circuito profissional e dum mercado discográfico atrás assinalados (Cidra, 2005: 17), com reflexos evidentes sobre a organização e a estruturação da actividade musical.

Assiste-se, pois, principalmente na área lisboeta, no período que se segue à independência nacional das ilhas, ao desabrochar de um “mercado da diversidade”, como teria afirmado alguém, ou melhor, à formação de um panorama musical cabo-verdiano diversificado marcado, essencialmente, pela presença de práticas expressivas, tanto em circuitos formais, como informais, pela formação de um mercado discográfico, cujos reflexos sobre a organização e a estruturação da actividade musical são por demais evidentes, bem assim pela emergência de uma identidade (des)territorializada em situação de imigração e em resultado de uma deslocação entre contextos espaciais diferentes. Mais do que uma identidade propriamente (des)territorializada, estar-se-á perante “identidades em diáspora”, ou melhor, “identidades interterritoriais”, marcadas pelo vai e vem entre os locais de pertença e, sobretudo, pela emergência de um campo musical (Bourdieu, 2003; Hennion,1993) integrado pela “enigmática figura do artista enquanto trabalhador” (Menger, 2005: 7), que se foi consolidando progressivamente e ganhando alguma autonomia interna com o passar dos anos.

Saliente-se, por outro lado, que a fixação em diferentes sociedades de acolhimento de migrantes cabo-verdianos originou redes de produção musical e práticas musicais, a exemplo da população imigrante em Portugal, cujo panorama musical se caracteriza, essencialmente, pela sua dinâmica e diversidade, seja do ponto de vista da sua composição, seja do ponto de vista das práticas e estilos musicais que o enformam, bem como pela configuração do campo musical cabo-verdiano na AML, enquanto factor de afirmação cultural e elemento socializador e congregador da população imigrada na vasta área lisboeta. Na verdade, a música121 transnacional cabo-verdiana em Portugal constitui uma presença permanente e marcante no seio dos cabo- verdianos imigrantes e ocupa um lugar central, não só por aquilo que significa e representa, mas também pela carga identitária122 e simbólica que transporta consigo, numa “experiência identitária musical em movimento” (Contador, 2001: 110), ao longo de um percurso não linear, feito de processos de adaptações e resistências às tendências globalizantes. Em linhas gerais, pode afirmar-se que o campo musical cabo-verdiano em Portugal e, em especial, na AML, onde se concentram maioritariamente os agentes musicais, visto na perspectiva da produção (Peterson, 1997; Campos, 2008), é híbrido, diferenciado, assimétrico, atravessado por desigualdades de género e dominado apenas por um punhado de actores, que beneficiam de alguma posição relativamente privilegiada estável no interior do mercado de trabalho, em confronto com alguma precariedade, em termos laborais e de condições de vida, que afecta certas franjas do aludido campo.

Do ponto de vista da definição do seu perfil social neste espaço geográfico, convém sublinhar que, relativamente à sua dimensão socioprofissional, o músico imigrante na área lisboeta não se limita exclusivamente ao exercício da actividade musical propriamente dita, mas, paralelamente, exerce outras profissões, já que, em Portugal, a música, enquanto actividade artística e acto de criação (Menger, 2005), salvo casos pontuais, não é uma grande fonte de rendimento, nem sequer uma actividade suficientemente autónoma e tão lucrativa. Refira-se, aliás, que alguns dos agentes que se dedicam à música apenas a tempo parcial, gostariam de ter condições materiais e objectivas que lhes permitissem entregar, de corpo e alma, à música a

121Nos últimos anos, graças à renomada cantora Cesária Évora, a música cabo-verdiana, que constitui um dos

símbolos identitários da Nação cabo-verdiana, seja em Cabo Verde, como nos países de acolhimento da sua diáspora migratória, passou a pertencer à chamada world music.

122 Simon Frith (1996) estabelece a ponte entre os conceitos de música e de identidade, colocando o enfoque tanto no

tempo inteiro, mesmo que se vissem forçado a preterir ou sacrificar outras actividades suplementares.

Na prática, os músicos cabo-verdianos considerados mais velhos, ocupam posições centrais no campo, mais ligadas à produção e, logo, aos poder simbólico e de recrutamento e de mobilização, mantêm estratégias de preservação e de legitimação do poder, algumas vezes em confronto mais ou menos velado com os mais jovens acusados por alguns daqueles de transgressão musical, na acepção etnomusicológica. Neste sentido, alguns músicos assumem, no interior de um sistema de produtores, mediadores e consumidores, um inegável poder legitimador que lhes é conferido pelo carisma, pelo prestígio e, sobretudo, pela sua extraordinária capacidade musical.

Por outro lado, o campo musical cabo-verdiano na Área Metropolitana de Lisboa, que abrange, em primeiro lugar, intérpretes e compositores, marcado, do ponto de vista estrutural, pela presença de uma fraca mobilidade social interna, caracteriza-se maioritariamente pela presença masculina, aliás, à semelhança do que ocorre em Cabo Verde, embora não deixe de ser relativamente significativa a presença de mulheres, em especial no domínio da interpretação vocal, mas também no da preservação e resgate da música tradicional cabo-verdiana em contexto migratório. Aliás, esta meritória tarefa de preservação da música cabo-verdiana pela mulher em Portugal, associada, em certa medida, à inovação, reflecte-se, particularmente, ao nível do batuco, onde grupos de batucadeiras, autênticas escolas de reprodução da identidade cultural, como diria alguém, têm vindo a fazer um trabalho meritório em vários bairros periféricos de Lisboa, no sentido da divulgação e valorização desse género musical e dançante.

Todavia, perante a ainda prevalência da dominação masculina, aliada à persistência de estigmas, à discriminação, a estereótipos e a uma acentuada divisão de papéis no interior do campo musical, a imigrante cabo-verdiana, por paradoxal que pareça, não se tem afirmado no domínio da criatividade musical, lado a lado do seu parceiro, à excepção da participação criativa e interpretativa das batucadeiras, se bem que ela continue a crescer progressivamente no domínio do canto, no âmbito deste processo emaranhado, nem tão-pouco se tem distinguido na actividade empresarial ligada à música, enquanto protagonista, como, de resto, seria desejável, pelas mesmas razões. Ou seja, não obstante o evidente protagonismo feminino, no domínio específico da interpretação vocal, a mulher radicada em Portugal, paradoxalmente, não pertence ao

chamado núcleo duro do campo musical cabo-verdiano, dito de outro modo, não está posicionada nos seus lugares decisórios e de comando.

A despeito das limitações e constrangimentos de vária índole, o certo é que o campo musical cabo-verdiano se vai reproduzindo essencialmente através de inputs externos e dinâmicas várias e adquirindo uma configuração interna própria, comparada, por exemplo, com aquela que assumira nos anos 70 e 80 do século pretérito, com uma clara tendência para o seu rejuvenescimento, bem como para a melhoria progressiva do seu capital ou qualificação escolar, e, logo, do perfil do músico, sobretudo a partir dos últimos anos da década de 90. Também não é menos verdade que muitos dos compositores e intérpretes que o enformam não são profissionais da música, dedicando-se, simultaneamente, ao exercício de outras actividades circulares para dentro e fora dele, designadamente, nos sectores da construção civil e da restauração, como é o caso, por exemplo, de alguns executantes de violino residentes maioritariamente na linha de Sintra, que são coagidos a se dedicar à construção civil como operários em virtude de a actividade musical se revelar manifestamente insuficiente como meio de vida. Curiosamente, o violino, um instrumento de cordas de difícil afinamento, que confere à morna uma melodia impressionante, confina-se, hoje em dia, à periferia de Lisboa, por razões que importa conhecer melhor, e apenas é utilizado na animação dos chamados “bailes de rabeca” ou “rabecadas”, sobretudo no seio de naturais da ilha de São Nicolau, na linha de preservação da cultura musical tradicional em contexto imigratório.

À semelhança de outras estruturas, o campo musical dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal é uma zona de partilha de objectivos comuns e de laços de afinidade, e, concomitantemente, um espaço relativamente autónomo de concorrência e conflitualidade, no interior do qual se verificam, ainda que de maneira velada, disputas de espaço e de visibilidade entre os recém-chegados e os instalados, dentro, obviamente, das regras do jogo e dos parâmetros aceitáveis. É certo que, a par de pequenas disputas mais ou menos discretas que possam ocorrer aqui, ali e acolá entre os principais actores do sistema musical e de pequenos enredos de bastidores, aliás, típicas de campos profissionais desta natureza heterogénea, verificam-se, no interior deste espaço de interacção, laços de cooperação e solidariedade, que, na diversidade dos artistas, transmitem alguma ideia de unidade, apesar das divergências resultantes do posicionamento e do papel de cada um no xadrez.

A despeito de alguns sinais evidentes de abertura em relação exterior, no sentido da consolidação do campo musical, continuam, todavia, a prevalecer, no seu interior, constrangimentos de vária índole que condicionam e dificultam a afirmação desse processo transnacional e, logo, a projecção do músico, do mesmo passo que se assiste, conquanto de forma gradual e tímida, à sua recomposição social interna, marcada ainda, como já se referiu, pela sua renovação ou rejuvenescimento, por alguma mobilidade geográfica e, ainda, pela diversificação cada vez mais forte da paisagem musical, através da incorporação de géneros, estilos e sensibilidades diferentes, numa articulação tanto quanto possível entre a linha tradicional e a moderna.

Assim, nesta linha, esforços vêm sendo envidados, particularmente no seio da chamada comunidade musical cabo-verdiana em Portugal, no sentido da preservação da música tradicional, ao mesmo tempo que se assiste a tentativa de criação de novas formas de expressão e práticas musicais da parte dos sectores imigrantes mais jovens, o que vem complexificar ainda mais o campo transnacional em que se movem os actores radicados em Portugal que transportam consigo a sua identidade musical de origem e a sua memória colectiva. É, pois, no seio de um campo musical diversificado e tendo em mira a construção ou a reconstrução da identidade transnacional cabo-verdiana na diáspora transportada pelos agentes da actividade musical que se situa o papel da dita “segunda geração”123 constituída pelos descendentes de imigrantes em Portugal (filhos de imigrantes nascidos e socializados no país de acolhimento dos pais), portadores de uma identidade musical singular e aberta.

123

Num passado recente, foi habitual designar os jovens nascidos de pais migrantes por emigrantes de “segunda geração”, uma designação hoje em dia inapropriada e substituída, preferencialmente, pela expressão descendentes de emigrantes (Rocha-Trindade, 1995: 50). Objectivamente, esses jovens filhos de imigrantes não são imigrantes, pois, esclarecem Machado e Matias, “nasceram ou chegaram ao país de acolhimento dos seus progenitores ainda na fase de infância, cresceram aí, frequentaram ou frequentam as suas escolas, têm alcance a um mercado de trabalho mais amplo e diversificado do que aquele que se oferece aos imigrantes, interiorizam referências culturais que são as da família, mas também as da sociedade de acolhimento e têm estilos de vida que, em muitos aspectos, e para condição social idêntica, são os mesmos que observamos na juventude nativa” (2006: 4). Falar de “segunda geração”, afirma Witthol de Wenden, citada por António Leal, é partir do princípio de que estes nasceram no país de origem dos seus pais, no qual o seu processo de socialização e integração cultural estruturalmente terá tido lugar (2004: 15). Trata-se pois, na opinião de Pottier (1993), de uma concepção simplificada e reducionista da cultura.

Capítulo 6

Outline

Documentos relacionados