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Migrações e música cabo-verdiana

4.4. A música na sociedade cabo-verdiana: os principais géneros

Pode afirmar-se, sem sombra de dúvidas, que a música de Cabo Verde, um dos veículos privilegiados de expressão da identidade cabo-verdiana, ou da caboverdianidade, como se preferir, resulta da convergência e sobreposição de elementos musicais europeus, sobretudo de origem portuguesa, com elementos musicais africanos, aquando do povoamento das ilhas. Contudo, a ciência certa, não se sabe o momento em que se teria verificado, na sociedade cabo- verdiana, o processo de misicigenação musical (Wikipedia, 2008) resultante do encontro de tais populações portadoras de diferentes tradições musicais.

Sabe-se ainda que a natureza aberta, dinâmica e sincrética da própria sociedade cabo- verdiana viria a reflectir-se sobre o seu tecido musical, tornando-o cada vez mais diversificado e ecléctico e, tal como no passado, continuando a receber fortes influências externas, sempre num processo de fusão85. Sendo assim, a música cabo-verdiana é um sector de difícil definição, em termos conceptuais, e delimitação, pois aparece compartimentada e classificada em géneros musicais, de forma inconsciente, e em modalidades específicas, com influências tanto europeias como africanas e com um conjunto de características86 próprias e distintivas.

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Em entrevista concedida ao jornal A Semana on line, na sua edição de 2 de Dezembro de 2006, o conceiturado multinstrumentista cabo-verdiano Kim Alves, a propósito da música fusão, afirmava que a cultura de Cabo Verde é híbrida, pois, “consegue-se meter tudo na música cabo-verdiana e ela recebe. Numa morna pode-se meter jazz, acordes de bossa nova, de música africana, erudita ou rock, dentro de um funaná ou batuque. Às vezes, pode ser bom, outras vezes pode ser mau. Pode-se fazer fusões, mas o importante é conservar o alicerce, o eixo. Isso faz-se em todo o mundo. Podes estar a tocar um batuco e pôr outros ingredientes em cima, mas a base, a tchabeta, tem de estar lá. Acho que a minha geração – eu, Tito, Albertino, Totinho, essa malta, acho que foi uma geração de ouro, que conseguiu dar a volta dentro da música de Cabo Verde. Composições com harmonias mais evoluídas, mas sem sair do alicerce, isso é que é importante”.

86 Do ponto de vista de caracterização estritamente sonora, a música de Cabo Verde é considerada sobretudo

polifónica, ou seja, a melodia desenvolve-se sobre uma base constituída por uma sucessão de acordes e, sendo assim, “contrasta com a música da África Ocidental, que se caracteriza por uma sobreposição de contrapontos”, sendo escassos os géneros monofónicos (Wikipedia, 2008: 2). As escalas musicais empregadas são escalas musicais europeias e, frequentemente, a morna, a coladeira, a mazurka e o landum usam escalas cromáticas, enquanto o funaná, “em contrapartida, usa frequentemente escalas diatónicas” (ibidem). Tanto na melodia, como na harmonia, nota-se, sobretudo, a influência europeia, enquanto o ritmo é marcado pela influência africana. Os ritmos são sincopados e, geralmente, os géneros musicais têm compassos pares (binários ou quaternários), a excepção do colá, da mazurka e da valsa que usam um compasso ternário. De referir ainda, em termos de caracterização, que o batuque é o único género musical que emprega a polirritmia, muito presente na música da África Ocidental.

De entre tais géneros performativos, pertencem ao universo musical cabo-verdiano e são considerados “géneros genuinanmente cabo-verdianos” (Wikipedia, 2008) a coladeira, a morna, o batuque, o funaná, tabanka, o kolá e cantigas relacionadas com as mais diversas actividades (cantigas de trabalho e as rezas, por exemplo). Igualmente, fazem parte do património musical cabo-verdiano, já com características próprias, outros géneros musicais: mazurkas, lundus, valsas, marchas, polcas, valsas, sambas, melopeias, cantigas de roda, se bem que originários da Europa ou da América. De facto, a marca da presença da cultura europeia na música cabo- verdiana foi também importante, particularmente através da morna, um dos géneros performativos cabo-verdianos tradicionais, cujo surgimento é situado pelos estudiosos entre meados do século XVIII e meados do século XIX (Dias, 2004: 21) e cujas tentativas de conceptualização87 têm sido as mais diversas, (Lima, 2002: 181). Todavia, a julgar pelas referidas tentativas de definição conceptual, pode afirmar-se que, em termos estritamente rítmicos, a morna, de cariz sentimentalista, romântico, nostálgico e dolente, por vezes, se desenvolve num compasso quaternário simples88, mais ou menos lento (Adágio ou Andante) e procura identificar-se com os vários momentos sociopolíticos, socioeconómicos ou culturais de Cabo Verde.

De raiz popular, em termos de génese, e produto da mistura de culturas, a morna89 terá nascido na Boa Vista, e, durante a primeira fase do processo, “esteve estreitamente vinculada às experiências musicais dos habitantes” (Dias, 2004: 21) não só dessa ilha, mas também das da Brava e São Vicente, tendo passado, já numa fase posterior, para as restantes, adaptando-se e

87 Pedro Cardoso, por exemplo, define a morna como “música, dança e canto; compasso quaternário, atitudes

langues, andamento vagaroso” (1982: 44), enquanto para J. B. Amândio Garcias, em carta dirigida ao próprio Pedro Cardoso e reproduzida na obra deste intitulada Folclore Caboverdiano, as mornas são “cantares dolentes, langorosos, enternecedores, ardentes na paixão que reproduzem, suaves nas saudades que evocam”. No entanto, a definição mais completa do conceito de morna viria a ser apresentada por Armando Napoleão Rodrigues, assim: “canto e dança dolente, em compasso quaternário, impregnado de melancolia em que o povo soluça e canta o seu pesar, a sua tristeza e o seu queixume em tom plangente, dolente e soluçante” (1940: 108).

88 Para além dessa importante característica estritamente musical do andamento lento da morna, em termos de

execução, predomina nesse género musical a tonalidade menor e o tom de Lá menor é o mais frequente. De acordo com o musicólogo cabo-verdiano Vasco Martins, o esquema ABA é “o mais usado na morna”, podendo, por vezes, aparecer “um esquema mais complexo ou pelo menos diferente que é o ABCA” (1989: 28-29).

89 Relativamente à sua origem, Baltazar Lopes da Silva defende a tese corroborada por Moacyr Rodrigues e Isabel

Lobo (1996), segundo a qual o termo morna deriva do termo português morno, ou seja, “[…] substantivou-se a forma feminina do adjectivo (morna) e com ela se designa a música e a dança típica do arquipélago. Derivou o termo «morna» (mornar), isto é, «dançar a morna», e deste o substantivo e adjectivos «mornador» e «mornista»” (1957: 323).

tomando a feição psíquica das suas gentes, em função do meio, das circunstâncias e da própria estrutura social e assumindo especificidades próprias.

Distanciando-se do conteúdo daquela morna satírica boavistense, a morna como género musical aperfeiçoa-se em São Vicente (Monteiro, 1987; Martins, 1988), numa cidade já cosmopolita, devido ao seu porto de mar e às influências que, através dele, chegavam de diferentes paragens. Contudo, o processo evolutivo desse género musical tradicional cabo- verdiano não é linear e, ao longo dos tempos, tem vindo a ser marcado por compositores90 muito influentes como Eugénio Tavares, B. Léza91, Jorge Monteiro92, Manuel d’Novas93 ou Betú, entre outros. Não obstante a sua eventual origem boavistense, na verdade a Brava foi das ilhas de Cabo Verde que maior expansão deu à morna, graças ao mérito do seu grande compositor e poeta, Eugénio Tavares, que lhe confere uma matriz estável, particularmente no seu período áureo entre os finais da década de vinte ao início dos anos trinta do século passado.

Já em S. Vicente, a morna vai ser influenciada, nesse período, através do contacto de músicos da ilha com ritmos de outras paragens que ancoravam o Porto Grande, destacando-se os do Brasil e das nações que compõem a América Central e Antilhas e perde aquele cunho original satírico boavistense e adquire uma identidade própria. Entretanto, nos finais dos anos 40 e princípios dos anos 50, surge, nessa ilha, a partir da morna, outro género musical – a coladeira - cujos fundadores são Ti Goy, Frank Cavaquinho94 e Manuel d´Novas, que, à semelhança da morna, conquistaria Santiago, onde pontuam compositores de mérito como sejam Ano Nobu e Djodja, ambos naturais dessa ilha e já falecidos. Mais leve, mais solta e menos sentimental, a coladeira pauta a sua linha melódica e os temas abordados pela sátira e pela crítica sociais, com

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B. Léza esteve nos Estados Unidos da América, no Brasil e em Portugal e terá recebido influências musicais nesses países. Assim, B. Léza introduziu o meio-tom brasileiro na morna, alternado a sua estrutura musical. Posteriormente, na mesma senda, Manuel d´Novas e Betú modernizam-na trazendo inovações de grande mérito.

91 A propósito de um dos maiores compositores cabo-verdianos de sempre – B. Léza -, consultem-se os trabalhos de

Veladimir Romano, B. Léza: Cadernos de um Trovador e de Glaúcia Nogueira, O Tempo de B. Léza: Documentos e

Memórias editados, respectivamente, em 2004 e 2005.

92 Veja-se o trabalho de Jorge Monteiro intitulado Mornas e Contra-Tempos (Coladeras de Cabo Verde): Recolhas

de Jótamont, 1987.

93 Veja-se, a propósito, a obra de César Augusto Monteiro Manuel d´Novas: Música, Vida, Caboverdianidade,

editada em 2003.

94 Veja-se, a propósito deste compositor e intérprete de cavaquinho e bateria, o trabalho da autoria de Moacyr

uma certa carga humorística e veicula o lado folgazão, brejeiro e satírico do cabo-verdiano, mas também tem incursões de conteúdo sério e reflexivo.

É claro que a música cabo-verdiana não se restringe apenas à morna e à coladeira, pelo contrário o sistema musical vai-se progressivamente consolidando com o surgimento de outros géneros ou práticas musicais com forte influência africana e graças ao contributo de prestigiados compositores e intérpretes musicais95. Assim, de ascendência africana, afirma-se o batuque96 em Cabo Verde, considerado quiçá a expressão musical “mais antiga” das ilhas e, “porventura, a forma de música tradicional que mais define as nossas raízes” (2006: 16), e cuja origem se circunscreve em particular à ilha de Santiago, onde as movimentações culturais pós-25 de Abril de 1974 se encarregaram de o transportar do meio rural para o urbano, à semelhança do funaná, por exemplo. Abordando temas que vão do elaborado à improvisação e plasmando sobretudo vivências rurais, sociais e de importância nacional, a música do batuque97, explica o musicólogo Lima da Cruz,

está bem próxima das melopeias africanas bantus, e pontuada por elas, achando-se por vezes nitidamente apenas ao serviço do pensamento e em função dela, garantindo-lhe o suporte diccional, sem portanto um casamento total entre letra e música (2003: 270).

Tendo como lugar próprio o “terreno” (de terra batida), prossegue Lima da Cruz, a dança do batuque desenvolve-se até atingir o clímax no rebolar frenético das ancas (o auge do “torno”),

95 Para além dos nomes atrás referidos, importa destacar outras figuras de proa que impulsionaram a música cabo-

verdiana e lhe deram outra roupagem como sejam Katchass, na estilização do funaná, trazendo-o do meio rural santiaguense para o espaço urbano praiense, na década de 70, e, depois, divulgando-o por todo o país; Orlando Pantera, na estilização do batuque; Tcheka, na linha do Pantera, também aprofunda o batuque, modernizando-a ainda mais.

96 Em termos estritamente musicais, o batuque, de origem africana e considerada uma variante do ritmo de San Jon,

é executado num ritmo de tipo binário, mas de divisão ternária, “marcado pela percussão das «tchabetas e palmas» acompanhadas pela cimboa monocórdica, às quais se juntam o canto e a dança” (Brito, 1998: 19).

97 De acordo com vários estudiosos, o batuque é constituído por várias parte e elementos, a saber: o finaçon, que,

segundo Napoleão Fernandes, é o canto singelo, porque dá início ao batuque, um prelúdio a solo acompanhado pela viola ou pela cimboa (1991), ou melhor, um cântico improvisado; a tchabeta, ou chabéta, a parte principal do batuque, que consiste na elaboração do ritmo com o bater de palmas e das mãos sobre um pano enrolado que se coloca entre as pernas com vista à obtenção de uma caixa de reossonância; o torno, literalmente do crioulo significa saracotear com as nádegas e é uma dança tipicamente africana na qual se simula o acto sexual com o rebolar das nádegas (Gonçalves, 2006: 19).

enquanto o tórax permanece imóvel, ao som das melopeias ou melodias, suportadas ritmicamente pela “tchabeta” ou “cabeta”, isto é, um chumaço de pano, envolto, por vezes em sacos de plásticos, que se metem entre as pernas e de que, em batimentos, as batucadeiras arrancam o suporte rítmico (2003: 270). O batuque integra uma dança ritual utilizada também em outras manifestações festivas como casamentos, baptismos, etc. e o seu cenário actual “pouco mudou em relação às descrições datadas do século XIX”, assinalando-se apenas “alterações quanto aos instrumentos, como as guitarras que desapareceram” (Cruz, 2003: 265). Outro género musical de ascendência africana também reprimido durante o período colonial e que, a partir de 1978, foi difundido publicamente em Cabo Verde foi o funaná, um género de música e dança cabo- verdianas típico da Ilha de Santiago, que tem servido para veicular argumentos de vária natureza, do lúdico ao reflexivo.

De referir ainda que o sistema musical cabo-verdiano não se limita tão-só à existência dos géneros ou formas musicais atrás referenciados, mas há outras expressões como sejam os ritmos da tabanca98, o colá San Jon, as cantigas de trabalho (Osório, 1980), a mazurca99, a valsa, a polca ou o fox e o rabolo100, entre outras, que enformam, diversificam e enriquecem este universo cultural, identitário e simbólico de valor inestimável, além de instrumentos musicais apropriados e classificados101 de acordo com determinados critérios básicos. Segundo Margarida Brito, os instrumentos usados na música tradicional de Cabo Verde não são muitos e quase todos eles são de cordas, podendo dividir-se nos seguintes grupos, com base na classificação univeral de Hornbostel-Sach: Idiofones (reco-reco, racordai, chocalhos, ferrinho, panos no uso da

98 Provavelmente de origem africana, a tabanca da ilha de Santiago, tal como na ilha do Maio, onde também exista, é

um agrupamento muito complexo e, de acordo com Margarida Brito, possui o ritmo binário, executado por tambores, cornetins e búzios (1998: 20).

99 A mazurca é uma dança originária da região polaca da Mazúria e em Cabo Verde e tocada em quase todas as

ilhas, sobretudo em Santo Antão, S. Nicolau e Boavista.

100 Variante da mazurca, o rabolo é uma forma que existe na ilha do Fogo.

101 De acordo com a denominada organologia, ramo da musicologia, cujo objecto de estudo são os instrumentos

musicais, enquanto “dispositivo susceptível de produzir som, utilizado como meio de expressão musical”, existem muitas classificações dos instrumentos que podem ser agrupadas em três categorias gerais, baseando-se em método de execução, estrutura ou material e uso ou estatuto. No entanto, a classificação de Hornbostel-Sach, baseada em princípios físicos e acústicos que regem o modo como os instrumentos produzem som (Oling & Wallisch, 2004), continua a ser o sistema mais usado e universalmente aceite para fins científicos por musicólogos, antropólogos e músicos e nele os instrumentos dividem-se em quatro grandes categorias: idiofones, membranofones, cordofones,

aerofones e electrofones. Para além do agrupamento dos instrumentos musicais em cinco categorias, a classificação

Hornbostel-Sachs de base contempla também subdivisões de cada categoria, que tornam complexo o sistema (Henrique, 2006: 3-16).

tchabeta-batuque, catrêba, pilom com colexas); Membrafones (tambores e bombos, bateria, percussão/carnaval, correpi); Aerofones (flautas de caniço e de flolhas de papeira, apitos de S., Jom, búzios da tabanca, instrumentos vários de sopro como sejam o clarinete, o saxofone e trompetes, cornetim e trombetas, acordeão diatónico, acordeão cromático; Cordofones (violino, violão, cavaquinho, viola de 5 cordas duplas, cimboa, berimbau, rabeca de coque, banjo, guitarra portuguesa, bandolim, piano; Electrofones (órgão eléctrico,. guitarras eléctricas, sintetizadores (1998: 29-30). De entre os instrumentos usados na música tradicional e principalmente na morna é o violino, que deve ter chegado a Cabo Verde nos finais de 1700 ou princípios de 1800 proveniente de Portugal. Popularmente designado rabeca, o violino assume um papel de solista, acompanhando ou fazendo contra-solos do canto.

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