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CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA

CAPÍTULO 2 – A VIDA VIRTUAL DOS SUJEITOS TDAH

2.2. A direção do site

No endereço eletrônico da ABDA é frequente a propaganda das vendas do livro No

Mundo da Lua do psiquiatra Paulo Mattos. Logo na página inicial há um cartaz divulgando o

desconto de 20% na compra do livro e em outras seções a mesma mensagem é veiculada. Este pesquisador é uma das principais autoridades no país nas discussões sobre o TDAH e frequentemente aparece na mídia para fornecer explicações didáticas sobre o Déficit de Atenção71. É também um dos criadores da ABDA e permanece envolvido com ela desde a fundação, ocupando atualmente a presidência do conselho científico. Mattos é professor da UFRJ e membro das associações brasileiras de psiquiatria e neurologia, além de fazer parte da

American Psychiatric Association (APA). É coordenador do GEDA (Grupo de Estudos de

Déficit de Atenção) que foi criado em 1999 e recebe suporte de pesquisa do Laboratório Janssen-Cilag, fabricante do medicamento Concerta72. É ainda membro do comitê consultivo,

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Paulo Mattos já foi entrevistado em programas como:

Programa do Jô (https://www.youtube.com/watch?v=5jV796ovgVI). Acesso em 01 de Janeiro de 2017. Globo News (https://www.youtube.com/watch?v=Ylqh_3UVtzM). Acesso em 01 de Janeiro de 2017.

De Frente com a Gabi (https://www.youtube.com/watch?v=NTyD2-63BWM). Acesso em 01 de Janeiro de 2017.

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Concerta é um medicamento a base de metilfenidato de liberação prolongada. Ao contrário da Ritalina, a substância do comprimido é absolvida em partes, fazendo efeito ao longo do dia. Segundo a bula: ―Parte do comprimido de Concerta dissolve-se logo após a ingestão, pela manhã, proporcionando uma dose inicial do

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palestrante ou recebe verba de pesquisa clínica das indústrias Janssen-Cilag, Eli Lilly, Novartis e GlaxoSmithKline (ITABORAHY, 2007). Na contracapa de No Mundo da Lua há a indicação de que a obra também recebeu patrocínio da Novartis.

Este livro é um guia para portadores do transtorno e pessoas próximas, escrito em forma de perguntas e respostas, que tem como intenção auxiliar no convívio com o transtorno. Ele intenciona traduzir o linguajar do conhecimento técnico-científico das ciências da saúde para o público em geral, tornando este discurso mais claro e conciso (MATTOS, 2005). O autor argumenta ainda que a estrutura didática do livro se deve ao fato de que portadores de TDAH não leem por muito tempo e não gostam de textos longos. O conteúdo aborda a definição convencionada sobre o transtorno, baseando-se nos critérios diagnósticos do DSM; as principais evidências sobre as causas para o seu surgimento; as diferenças entre as idades; e quais as principais formas de tratamento. Além disso, fornece um guia comportamental que sugere uma série de técnicas para diminuir o impacto do TDAH na vida de seus portadores e familiares.

Essas técnicas que Mattos prescreve perpassam sugestões sobre múltiplos aspectos da vida desses sujeitos, focando não apenas no âmbito escolar, haja vista o impacto nessa área, mas também sobre questões afetivas e sexuais das pessoas com o transtorno. Ele menciona, por exemplo, o caso de um homem que sentia a necessidade frequente de ter relações extraconjugais, justificando que isso era devido à característica própria ao transtorno de estar ―sempre à procura de novas emoções‖ (MATTOS, 2005, p.137). Ele dá dicas, nesse sentido, sobre quem seria o (a) parceiro(a) ideal para pessoas com o transtorno:

Aqui vai um conselho difícil: o companheiro ou companheira tem que ter um perfil determinado não só para poder conviver bem com um portador de TDAH e aproveitar ao máximo a vida a dois, como também para ajudar em diferentes aspectos da sua vida. [...] São características desfavoráveis: pessoas muito críticas e exigentes (consigo próprias e com os outros), pessoas submissas e complacentes com tudo, pessoas muito detalhistas, ―certinhas‖ e pouco flexíveis no pensar. Um companheiro ou companheira também com TDAH, então é melhor pensar duas vezes. Outra coisa: a vida sexual é importante em qualquer relacionamento a dois, mas para quem tem TDAH isto pode ser vital. Procure alguém com quem você tem sintonia no sexo. (MATTOS, 2005, p.142)

medicamento; o restante é liberado lentamente durante o dia, para manter o efeito do medicamento‖. Fonte:

http://www.janssen.com/brasil/sites/www_janssen_com_brazil/files/product/pdf/concerta_pub02_vp_0.pdf. Acesso em 02 de janeiro de 2016.

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Mattos fornece, portanto, orientações bastante detalhadas que tocam em múltiplos aspectos da existência desses indivíduos. Seu livro pode ser considerado um manual que encoraja uma série de práticas de cuidado com o corpo e que intervém nos sujeitos de maneira global. Este profissional da medicina atua como um tipo de guru que aconselha aspectos pedagógicos, indica formas de organizar o cotidiano, modos apropriados para se relacionar com as pessoas, substâncias que devem ser ingeridas, grupos políticos para serem associados e material informativo que deve ser conhecido. Considera inapropriada a intervenção de não- médicos nas discussões sobre TDAH, mas invade questões mais próprias a outros domínios de conhecimento ainda mais sem levar em consideração as discussões que já acontecem nas outras áreas. Isso se torna claro, por exemplo, nas explicações detalhadas de aspectos pedagógicos que não considera a produção teórica da educação. Quando Mattos trata da utilização de prêmios como forma de parabenizar um bom comportamento, escreve que:

Tem muita gente que implica com esta história de prêmios, pelos motivos mais variados (alguns até estranhíssimos e complicadíssimos, que não vamos abordar aqui). Não se trata de ―comprar‖ ninguém. Acontece que a vida é exatamente assim. Se você é um bom funcionário, não falta e se dedica ao trabalho, tem grandes chances de ser promovido, ganhar um aumento ou até ser convidado para outro emprego melhor. O mesmo vale para a forma como você trata sua namorada ou seu vizinho. (MATTOS, 2005, p.85, grifos nossos)

O que ele considera como motivos ―estranhíssimos‖ e ―complicadíssimos‖ provavelmente dizem respeito às críticas ao método pedagógico behaviorista. Bastante criticado nas discussões próprias ao campo da educação é considerado adequado por Mattos para os sujeitos com TDAH. As orientações desse psiquiatra, membro da ABDA, ilustram adequadamente o processo social denominado de medicalização, em que há uma expansão do alcance da medicina para outras áreas. Este profissional passa a exceder a função do tratamento de doenças para atuar como um mentor capaz de guiar seus pacientes nas múltiplas práticas de suas vidas.

Ao ter contato com o texto No Mundo da Lua, é possível perceber que várias partes do conteúdo do site da ABDA são semelhantes ao conteúdo desse livro. A argumentação insistente de que o transtorno é legítimo, a crítica agressiva contra as alegações de que TDAH não existe e o tom casual na escrita estão presentes nos dois âmbitos. Além disso, os direitos

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autorais do livro foram cedidos para a ABDA e em alguns momentos o autor sugere aos portadores a filiação a esta associação. E a defesa do pensamento científico e das instituições de pesquisa norte-americanas que podemos ver no site é frequente também no livro de Paulo Mattos, como podemos ver em:

Esta História de TDAH não é uma invenção para vender remédios, ganhar dinheiro com tratamentos etc.?

Para responder a esta pergunta instigante e não me acusarem de estar ―puxando a sardinha para o meu lado‖, o melhor mesmo é reproduzir o que a Associação Médica Americana, uma das mais rigorosas e influentes do mundo, disse a este respeito em 1998, quando se levantou a mesma questão por aquelas bandas de lá: ―O TDAH é um dos transtornos mais bem estudados em medicina e os dados gerais sobre sua validade são muito mais convincentes que a maioria dos transtornos mentais e até mesmo que muitas condições médicas‖. (MATTOS, 2005, p.16 e 17)

Em outro momento, para justificar o tratamento com estimulantes em detrimento de abordagens alternativas, Mattos desenvolve uma argumentação semelhante: ―A ideia de se ‗tentar‘ alguma outra coisa antes dos medicamentos é comum, mas ela se baseia em preconceitos, não em evidências científicas. [...] Por vezes, o próprio médico, geralmente por falta de informação atualizada, acha que o medicamento deve ser reservado para ‗casos mais difíceis‘‖ (MATTOS, 2005, p.146 e 147).

Ainda a crítica agressiva contra a alegação de que o transtorno não existe também pode ser vista no livro:

De uma vez por todas: o TDAH não é secundário a problemas com a mãe (ou o pai, ou o avô, ou quem quer que seja), não é um conflito inconsciente de medo do sucesso e não é um problema de personalidade. É um transtorno com forte influência genética em que existem alterações na química do sistema nervoso. (2005, p.46).

Em outro momento, acrescenta:

Aliás, sempre tive uma curiosidade: como é possível alguém saber que existem inúmeras doenças ‗orgânicas‘ no resto do corpo (diabetes, hepatite, asma, câncer, hipertensão, etc.) e nenhuma do pescoço para cima? Ali só temos doenças psicológicas? [...] Com bilhões de circuitos que utilizam milhares de neurotransmissores diferentes, nunca nada falha? Francamente... (ibid, p.49)

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Embora a argumentação desse psiquiatra defenda critérios de validação do conhecimento marcadamente cienticifistas e rejeite explicitamente a contribuição de outras áreas, algumas de suas colocações merecem atenção. Alguns pesquisadores que denunciam a inexistência do TDAH ou fazem críticas ao uso de Ritalina, frequentemente nem sequer consideram a possibilidade da existência do transtorno ou de que a medicação pode facilitar a vida de algumas pessoas. Ao tentar combater o determinismo biológico, este discurso crítico à medicalização parece se colocar numa pretensa posição de porta voz da verdade que é ocultada pelo discurso psiquiátrico. Segundo Adriano Aguiar, essa argumentação ―acaba apelando mais uma vez à ideia de uma ‗verdadeira causa dos transtornos mentais‘, caindo novamente em um pensamento ‗essencialista‘ que reivindica a verdade e a natureza das coisas‖ (AGUIAR, 2004, p.140).

Por outro lado, uma questão deliberadamente esquecida por Mattos e tangenciada pela ABDA, é a existência de falsos diagnósticos que poderiam explicar os altos índices de indivíduos sob tratamento. Há uma forte confiança nos critérios diagnósticos que, se seguidos à risca parecem produzir de fato um diagnóstico confiável. Porém, já existe no Brasil uma série de pesquisas de cunho etnográfico produzidas no ambiente escolar que demonstram situações em que crianças foram identificadas com o transtorno e posteriormente isso foi repensado (MOURA, 2015). O que antes era considerado déficit foi relacionado a falhas na formação escolar ou fatores da dinâmica familiar dessas crianças. Foi observado que os docentes eram atores bastante responsáveis por categorizar os discentes como portadores de transtornos, quando não havia uma outra causa mais adequada (CARDOSO, 2007). Essas reflexões poderiam enriquecer o pensamento de Paulo Mattos sobre o déficit de atenção, porém, não se sabe se é de interesse desse pesquisador divulgar informações que possam diminuir o consumo da Ritalina, tendo em vista que o mesmo recebe financiamentos das empresas que comercializam esse medicamento.

Este livro faz parte de um gênero da literatura científica bastante comum na atualidade que tem como objetivo a difusão dos conhecimentos neurológicos para um público mais amplo do que o dos especialistas. A tradução dessa linguagem para pessoas leigas exige a simplificação de um vocabulário técnico para termos mais cotidianos. Esse procedimento faz com que muitas pessoas tenham contato com a produção científica dessas áreas e passe a utilizar o seu acervo semântico. Segundo Azize (2012), tal literatura é responsável pela

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disseminação e popularização da neurociência na sociedade, estimulando uma noção de pessoa fundamentada nas funções cerebrais. No próximo tópico veremos como essa autoidenficação a partir de condições biológicas ocorre no fórum do portal da ABDA.

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